A Monarquia Britânica excita a ignorância da mentalidade republicanaPalácio de Buckingham, onde nunca tomei chá (nem whisky)
A ignorância se converte em vício quando exposta publicamente travestida de opinião qualificada. Parece-me que hoje em dia é mais penoso dizer não sei a desincumbir-se da tarefa de comentar temas sobre os quais repousa o mais absoluto e desonesto desconhecimento. A propósito do casamento do Príncipe com a duquesa de Cambridge foi monumental a quantidade de tolices e de manifestação desabrida de estupidez que li e ouvi ao longo das últimas semanas sobre a função política e sobre a legitimidade da Monarquia Britânica.
É compreensível que o vulgo, entendido como um ignorante no assunto, tenha a impressão de que a Monarquia Britânica seja apenas um adereço excêntrico de um país de Primeiro Mundo, classificação hoje antiquada. Mas não me parece adequado que profissionais contratados para desenvolver um trabalho específico sejam despreparados e destilem comentários alicerçados numa vulgata republicana. Assim, tendo a república por parâmetro, o telespectador tem reforçada a sua impressão de que aquilo é mesmo uma excentricidade sustentada pelos britânicos e que de vez em quando promove um casamento grandioso.
Uma incontinência verbal reiterada foi sobre a possibilidade de o casamento do Príncipe William renovar ou revigorar a Monarquia. God Lord! Que eu saiba, a Rainha Elizabeth II continua viva e saudável. E não me parece que o casamento do neto injetará um desnecessário espírito de renovação. E quando Sua Majestade se for, também não me parece que o Príncipe Charles, o sucessor direto ao trono, primará por um reinado diverso. Afinal, o que significa, sob o ponto de vista dos comentaristas brasileiros, uma renovação? Se é o espírito diabólico republicano que os move é perfeitamente natural que eu compreenda tal manifestação como o desejo de ver a Monarquia Britânica agindo contra ela própria, ou seja, sendo o agente de sua própria destruição.
(Parênteses: vejo com preocupação a proposta de mudança radical da ordem Constitucional levada a plebiscito pelo governo de coalisão do Partido Conservador com o Partido Liberal-Democrata (http://www.economist.com/node/18617926?story_id=18617926). Transformar a Câmara dos Lordes num Senado com membros eleitos pelo voto popular não me parece uma ideia politicamente decorosa sob um sistema que vem funcionando. Fecho o parênteses).
Há uma visão duplamente equivocada nas opiniões que li e ouvi a respeito da Monarquia Britânica, sob as perspectivas histórica e política. Há uma certeza inabalável de que a Monarquia é antiguidade, coisa do passado, e a República, um sistema moderno e eficiente. Tal visão é oriunda de um exercício de ficção baseado num recorte histórico que estabelece o mesmo parâmetro de julgamento para toda e qualquer Monarquia. Se somos ensinados que as Monarquias européias eram Absolutistas e, quase todas, foram muito bem substituídas pelas Repúblicas a informação que registramos é que todas as monarquias ao longo da história eram execráveis e passíveis de abolição e substituição. Deixamos de aprender, portanto, que as Monarquias absolutistas na Europa Ocidental tiveram seu período histórico específico, do século XVII a meados do Século XIX, portanto, tal sistema não foi uma constante ao longo da história. Também não aprendemos na escola que o caso da Inglaterra é emblemático porque a Revolução Gloriosa de 1688, que depôs o Rei James II, foi justamente uma ação para restaurar o sistema e ratificar o equilíbrio político com o Parlamento e que resultou na Monarquia Parlamentar e Constitucional que vigora até hoje.
Espanta-me, assim, que um jornal como O Estado de S. Paulo publique uma reportagem que comece dessa forma constrangedora:
Não deixa de ser intrigante que uma Grã-Bretanha moderna, multicultural e democrática mantenha uma instituição elitista como a monarquia. Ainda assim – e apesar dos escândalos envolvendo a realeza – os britânicos parecem estar satisfeitos com a coroa. Diferentes pesquisas indicam que a popularidade da monarquia tem variado entre 70% e 80% nos últimos anos.
Para a repórter, uma Grã-Bretanha moderna, multicultural e democrática só poderia escolher, preparem-se!, estão preparados?, sim, senhoras e senhores, só poderia escolher a república! Instituição elitista? Pergunto: a expressão é adequada ou faltou à jornalista um vocabulário mais rico? Depois, vem o melhor: a insatisfação da repórter pela Monarquia esbarra na preferência da maioria da população britânica. Que piada de mau gosto, não? E que estúpidos esses ingleses que discordam da opinião gabaritada da repórter brasileira.
E o jornal foi além ao publicar um panfleto antimonárquico, Para que serve a monarquia?, do suspeito de sempre, Gilles Lapouge, que afirma, sem citar a fonte, que muitos britânicos consideram a monarquia obsoleta, contrariando a pesquisa citada na reportagem que o jornal publicou. Ignorância ou desonestidade? Ao escrever que a Monarquia Britânica “não serve para absolutamente nada” e “que o rei tem três funções apenas” (outorgar honrarias, nomear o primeiro-ministro que o Parlamento lhe diz para nomear e dissolver, nas mesmas condições, o Parlamento) Lapouge manifesta ratifica ambas as qualificações.
O equívoco de análise histórica, aliás, não se restringe à Inglaterra. Aproveito a presença do intelectual francês para notar que é comum a Revolução Francesa ser saudada como um marco da Liberdade em vez de ser encarada como o fim de uma Monarquia despótica e o início de uma República autoritária e sangrenta. Para os interessados no assunto recomendo, a título de introdução ao assunto, os seguintes livros sobre a Revolução Inglesa:
- The Glorious Revolution, de John Miller;
- 1688: The First Modern Revolution, de Steve Pincus;
- The Glorious Revolution: 1688 – Britain’s Fight for Liberty, de Edward Wallace.
(Não encontrei traduções publicadas no Brasil)
Sobre a Revolução Francesa, recomendo:
- Reflections on the Revolution in France and on the Proceedings in Certain Societies in London Relative to that Event, de Edmund Burke.
(Há uma tradução não recomendável publicada anos atrás pela UnB sob o título Reflexões sobre a Revolução em França)
- Citizens, de Simon Schama;
(A edição publicada pela Companhia das Letras, sob o título Cidadãos, é muito boa)
- Fatal Purity: Robespierre and the French Revolution, de Ruth Scurr;
(Há uma tradução da Record, sob o título de Pureza Fatal, mas que não li para avaliar. A capa é bem bonita)
- Ancien Regime and the French Revolution, de Alexis de Tocqueville.
(Há duas traduções publicadas no Brasil com o o título O Antigo Regime e a Revolução: uma pela UnB, lançada em 1989, e outra pela Martins Fontes, publicada em 2009. Desconheço ambas, mas tendo a recomendar a da Martins Fontes porque desenvolve um ótimo trabalho editorial).
Parece-me que a maioria dos comentaristas brasileiros desconhece que a Monarquia, personificada na Rainha, funciona como um dos contrapesos do poder político na Grã-Bretanha e exerce a função de conselheira do Primeiro-Ministro e de grande árbitra das questões políticas, estando livre da alternância de poder dos membros do Ministério e do Parlamento, que passam, enquanto a Monarquia fica. Livre da obrigação de ir a votos e com a responsabilidade de preservar as conquistas e garantir o respeito aos modos de vida e a liberdade do povo, a Monarquia, por ser permanente, não pode se arriscar em aventuras políticas e decisões desnecessárias por causa de eventuais clamores contingenciais.
Qualquer um está livre para preferir a república à Monarquia, britânica ou qualquer outra, ou de criticá-la. Mas, por favor, que apresente argumentos claros, não falseie a história nem recorra ao polilogismo na vã tentativa de vencer o debate sem ter razão.
Fonte Blog do Professor Bruno Garschagen