Rui Ramos, Historiador
Entrevista Rui Ramos
Contra o branqueamento do 5 de Outubro
29 09 2010 08.13H
Um dos nossos mais prestigiados historiadores, especialista na história política portuguesa do fim das guerras liberais à consolidação do Estado Novo, tem levantado a voz contra «a forma como nos andam a vender o regime saído do 5 de Outubro». «Ao arrepio de toda a investigação histórica», acusa. Ao Destak, explica o que foi a I República e como não há razões nenhumas para celebrar a traição do verdadeiro ideal de república.
Isabel Stilwell editorial@destak.pt
As suas posições sobre as comemorações do 5 de Outubro de 1910 têm sido polémicas. Acha que estão a branquear os factos?
O que é polémico não são o que chama «as minhas posições», mas a forma como nos andam a vender o regime saído do 5 de Outubro. Imagine que alguém falava do Salazar mencionando apenas as barragens, o abono de família, a neutralidade na segunda guerra mundial, sem jamais referir a PIDE, a censura, a guerra colonial. Está a imaginar a gritaria que já não iria para aí? Pois é o que temos visto sobre o domínio da vida pública portuguesa pelo Partido Republicano depois de 1910: nada sobre a retirada do direito de voto à maioria da população, nada sobre a negação do direito de voto às mulheres, nada sobre o "empastelamento" e apreensão dos jornais, nada sobre a política de genocídio no sul de Angola, e o menos possível sobre a perseguição ao clero e aos sindicatos. É esse branqueamento, ao arrepio de toda a investigação histórica, que é polémico. Porque a verdade é que se voltássemos aos tempos de Afonso Costa, a maioria dos portugueses de hoje teria um choque tão grande como se voltássemos aos tempos de Salazar.
O que era a monarquia constitucional?
A monarquia constitucional, governada pelos liberais, foi o regime político que nos últimos 200 anos mais tempo durou em Portugal, e não por acaso. Os liberais conseguiram um equilíbrio de correntes políticas que ressalvou o pluralismo e a liberdade e extinguiu a violência política, alargou a participação eleitoral dos cidadãos ao mais alto nível antes de 1975, e criou condições para períodos de grande prosperidade. Mas atenção: a governação liberal não instalou uma democracia, não conseguiu resolver o problema do desenvolvimento sustentado a longo prazo, gerou desequilíbrios financeiros graves e no fim tinha entrado numa crise política aparentemente sem remédio. Se devemos criticar o branqueamento da república, não devemos omitir os impasses a que chegara o regime anterior.
A situação política antes do 5 de Outubro era complicada. A monarquia foi boicotada pelos próprios monárquicos?
Não havia monárquicos. A chamada monarquia era governada por políticos que se classificavam a si próprios como "liberais", e raramente como "monárquicos". Os liberais eram "republicanos teóricos", isto é, consideravam a república a melhor forma de regime, e só aceitavam a monarquia provisoriamente, porque pensavam que os portugueses ainda não estavam suficientemente instruídos para se governarem a si próprios. A monarquia era apenas um expediente, até ver. Por isso, os liberais nunca cultivaram qualquer espécie de fidelidade à dinastia. Pelo contrário. Aqueles a quem as opções do rei desagradavam habituaram-se a atacá-lo e a ameaçá-lo com uma revolução. Em 1910, tudo isso tinha chegado a um ponto extremo. Os políticos detestavam D. Manuel e a rainha D. Amélia. Repare: quando os republicanos avançam, ninguém de facto defende a monarquia.
O Partido Republicano tinha lugar nas Cortes e concorria a eleições livres. O 5 de Outubro foi um golpe de Estado?
Foi uma sublevação militar, apoiada por civis, que só pode ser compreendida no contexto da crise da monarquia constitucional no ano de 1910. Em Junho desse ano, o rei D. Manuel tinha concedido o governo à esquerda liberal. Isso irritou a direita conservadora, que se divorciou do regime. Alguns republicanos decidiram apoiar o governo contra os conservadores; outros, porém, viram uma oportunidade para derrubar o regime, já que sabiam que a direita conservadora não defenderia a monarquia. Foi o que aconteceu. Os republicanos não derrubaram um regime próspero e estável. O que verdadeiramente fizeram, em 5 de Outubro, foi preencher um vazio de poder. Nesse momento, ninguém estava certo do tipo de república que viria. Havia quem esperasse um regime tolerante.
A facção que ficou no poder era a mais radical?
Aquilo a que é costume chamar I República corresponde ao domínio do País pelos militantes do chamado Partido Republicano. Depois de tomar o poder, em 1910, esse partido dividiu-se no ano seguinte e, a pouco e pouco, o novo regime passou a ser hegemonizado pela facção dirigida por Afonso Costa. O problema da república esteve nesta hegemonia. Aquilo que tornou o regime odioso para muitos esteve no monopólio do poder por um partido que excluía e perseguia todos os outros da maneira mais violenta. Essa política de sectarismo brutal de Afonso Costa e do seu partido não teve só a Igreja ou os defensores de uma restauração da monarquia como vítimas, mas também o movimento sindical e sobretudo os outros republicanos. Muitos republicanos, na chamada "direita republicana", acreditavam que era possível e necessário fazer outro tipo de república, aberta a todos os portugueses. Era o caso, por exemplo, do primeiro Presidente da República, Manuel de Arriaga, um homem decente, obrigado a resignar o mandato e enxovalhado. É importante lembrar que entre os republicanos que mais combateram Afonso Costa e o seu partido estiveram precisamente os que fizeram o 5 de Outubro: Machado Santos, o herói da Rotunda, e José Carlos da Maia, que comandou a tomada do couraçado D. Carlos. Por causa disso, foram assassinados na "noite sangrenta" de 19 de Outubro de 1921.
Diz que, se o que se pretende celebrar é o ideal de República, se escolheu a data errada. Porquê?
Porque o ideal da república não começou com o 5 de Outubro nem se reduz ao Partido Republicano, nem a haver um chefe de Estado eleito. Pelo contrário: em muitos aspectos fundamentais, o domínio do Partido Republicano foi a negação completa desse ideal.
O primeiro-ministro vai inaugurar nesse dia 100 escolas - a educação é, de facto, a bandeira da I República?
A assimilação entre a educação e o monopólio do poder pelo Partido Republicano não faz sentido. Todos os regimes dos últimos 200 anos quiseram escolarizar os portugueses. O Partido Republicano distinguiu-se por ter sido o que menos fez por isso. Não por qualquer intenção obscurantista, mas porque não teve meios para grandes investimentos públicos. A sua grande bandeira, depois do anti-clericalismo, foi a ortodoxia financeira. Para além de Salazar, Afonso Costa foi o único governante português do século XX a apresentar um orçamento sem défice. A melhor maneira de o primeiro-ministro celebrar a hegemonia sectária e intolerante do Partido Republicano, se é isso que quer, seria com um orçamento fortemente restritivo, à Afonso Costa.
Defende que quando se percebeu que a I República não tinha nada que ver com a democracia pós-25 de Abril, isso cortou as pernas às comemorações. Acha que as pessoas perceberam isso, ou que simplesmente estão com a cabeça na crise?
Provavelmente, tudo isso. Por um lado, todos viram esta coisa aberrante que é estarmos a celebrar como exemplo e inspiração para o futuro um regime de exclusivismo partidário que, quando as pessoas começaram a ler coisas sobre a época percebem que é estranho a princípios básicos do regime actual. Por outro lado, creio que todos sentimos, da parte dos mais exaltados manipuladores do centenário, um mau hálito sectário, a que já não estávamos habituados: para alguns deles, basta alguém expor o que honesta e rigorosamente investigou sobre uma época histórica para o acusarem de "fascista", "monárquico", "clerical" e não sei que mais crimes e pecados mortais. A comemoração está a ser explorada por aqueles que querem substituir o sistema científico de debate por um regime de suspeição política, de caça às bruxas, de agressão pessoal. Isso acabou por tornar toda esta celebração bafienta e antipática. É como descer a uma cave há muito tempo fechada e sem ventilação, onde só vivem coisas que se dão bem com o bolor e a podridão.
Mas, então, quem é que acredita estar tão interessado em comemorar a I República?
As esquerdas no século XX foram quem pior disse da I República. Enquanto foram marxistas, trataram os velhos republicanos como burgueses ou "pequeno-burgueses", que se tinham distraído com perseguições à Igreja e até combatido a "classe operária", em vez de destruírem o capitalismo e implantarem o socialismo em Portugal. Só depois de terem deixado de ser marxistas, com o fracasso das ditaduras comunistas na Europa, é que importaram a política de guerra cultural da América do Norte. Foi por essa via que descobriram uma admiração pelo sectarismo anticlerical dos republicanos radicais de 1910. Os mais facciosos estão a tentar perverter as comemorações no sentido de identificar a actual democracia com essa tradição velha e já morta, de modo a poderem tratar como marginais e sob suspeita todos aqueles que, por vários motivos, não estão dispostos a dar vivas ao defunto.
A rainha D. Amélia e muitos com ela argumentavam que o povo não queria a República, que lhes foi imposta. Fazia sentido um referendo?
O "povo" em Portugal nunca foi e não é único. Havia povo que queria a República, e até a República que existiu, e havia povo que não queria. Temos de nos habituar à ideia de que vivemos num país plural, que os portugueses com direito a Portugal não são só aqueles que pensam como nós. Esta comemoração revelou que esse simples princípio de decência e respeito ainda não iluminou algumas cabeças mais primitivas. Mas, atenção: o actual regime democrático nada tem a ver, felizmente, com o domínio exclusivista e repressor do Partido Republicano. É mesmo o contrário daquilo que existiu em Portugal nesse tempo. Nós hoje vivemos em democracia, o sufrágio é universal, as eleições são livres, há rotação no poder por via eleitoral, etc. Creio que isso é o mais importante para a maioria dos cidadãos.
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Nome Rui Ramos Profissão Historiador, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Marco Importante Doutoramento em Oxford Livros Coordenou a mais recente História de Portugal, escreveu a biografia de D. Carlos, entre muitos outros. Época Histórica Favorita História política nacional entre 1834 e 1936 (fim das guerras liberais ao Estado Novo).
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Há alguns anos que tenho andado um pouco inquieto e preocupado, para não dizer irritado. O que, de há uns tempos a esta parte, se tem passado neste país, no que respeita a comemorações de datas, acho que é suficiente para sentirmos aquele estado de alma. Expliquemo-nos.
Vim ao mundo num tempo em que a república só ainda não tinha barbas porque é representada por uma figura feminina. Talvez por isso, durante muitos anos, nunca me interroguei se seria republicano ou monárquico, deixando-me conduzir pela lógica do meu nascimento: seria republicano porque nasci no tempo em que a república já era aceite como a coisa mais natural deste mundo. Estou convicto de que a muitos dos meus compatriotas terá acontecido o mesmo.
Mas, ultimamente, tenho meditado muito sobre o assunto e comecei a interrogar-me sobre qual será o melhor sistema para a democracia e o desenvolvimento do país. Encontro-me num ponto em que admito que qualquer deles poderá servir, dependendo o êxito ou o fracasso de cada um deles do comportamento dos políticos e do povo que somos.
No entanto, o que me faz hoje vir abordar este tema é que começo a estar farto da comemoração do cinco de Outubro e dos moldes em que ela se desenvolve.
Para início do mote, tomo a liberdade de perguntar : – Justificar-se-á que ainda se mantenha o 5 de Outubro como feriado nacional? Para uns, sim; para outros, não – como é normal nestes casos. Alinho pelos que vão pela negativa. Feita esta afirmação com tanta frieza e, segundo o entender de alguns, tanto descaramento, bom será que me justifique para satisfazer a natural curiosidade de algum leitor que ainda não desistiu de acompanhar a dissertação da crónica.
Ora, de 1143 a 1910, decorreram setecentos e tal anos, o tempo em que Portugal foi uma Monarquia. Considerando já o próximo ano, a nossa estimada república completará um século de vida. Ou nem tanto, se considerarmos o tempo da ditadura, (1926 a 1974), em que, em boa verdade, não foi uma coisa nem outra. Ditadura é ditadura e o resto é cantiga.
Vem esta menção aritmética a propósito de se pretender demonstrar que o tempo monárquico vence o tempo republicano por 7 a 1, o que , em termos futebolísticos, costuma designar-se por uma estrondosa derrota para a república.
Após estas primeiras considerações, seja-me permitido expressar de modo mais explícito o que pretendo transmitir.
O que está em causa nem é comemorar o aniversário da implantação da república. Ponho reservas, isso sim, ao triunfalismo exibido, à agressividade manifestada, ao apoucamento mesquinho, às acusações sórdidas, aos achincalhamentos impudicos, como se todos os malefícios que nos vão atingindo tenham origem no facto de termos tido, ao longo de vários séculos, um sistema político monárquico.
Até porque hoje já nos habituámos, no dia a dia, a uma convivência natural, salutar e democrática, (e não digo tolerante porque não temos nada que nos tolerar neste campo), já que somos todos membros da mesma pátria. Passado este século republicano e fazendo uma retrospectiva honesta e sincera, havemos de concordar que em ambos os regimes se fizeram boas obras e se cometeram muitos erros, pela simples razão de que, quer um sistema quer o outro, são interpretados por homens.
Olhando o mundo da Europa Ocidental em que, por uma questão geográfica e cultural, nos inserimos, nada demonstra que o bem-estar, o progresso e o desenvolvimento – seja ele de que natureza for –, dependam essencialmente de ser republicano ou monárquico. E, se bem repararmos, talvez notemos que estes têm alguma vantagem sobre aqueles. Não me consta que aqui a vizinha Espanha esteja, apesar da sua Monarquia, menos desenvolvida do que o nosso Portugal, e até, segundo rezam as estatísticas, está uns bons furos acima de nós. Não quero com isto dizer que se tivéssemos uma Monarquia a coisa seria diferente ou ao contrário.
Felizmente, a liberdade está instalada entre nós. Bom será que saibamos aproveitar as virtualidades que ela contém e não a deturpemos, dando-lhe um uso que a possa transformar em geradora de pequenos e iluminados ditadores de meia tigela.
Não queiram os que se dizem republicanos dogmáticos reescrever a história alterando-a ao ponto de afirmarem que quem lutou, sofreu e morreu para conseguir a consolidação territorial do país foram os republicanos. Ou que foram também eles que se entregaram à ingente e heróica aventura dos descobrimentos, que fizeram de Portugal um país diferente no contexto das nações já existentes na época ou formadas no futuro. Ou que foram os republicanos que fizeram a revolução do 1º de Dezembro de 1640, com muitos e muitos sacrifícios à mistura com umas tantas traições. Ou que foram os republicanos que criaram e consolidaram a mais velha nação do mundo, em termos territoriais. E não vamos enveredar por argumentações falaciosas, porque telhados de vidro todos o regimes políticos têm.
Passada a bagunçada do recente período eleitoral – nunca se foi tão baixo como desta vez! – estou tentado a registar, com alguma simpatia, o que terá dito o Rei de Espanha, D. Juan Carlos, ao socialista, Filipe Gonzalez, quando o nomeou para formar o futuro governo : – “Sei que os socialistas espanhóis são republicanos, mas não se preocupem por termos hoje uma Monarquia, pois zelarei para que a constituição seja respeitada, e, além disso, a Monarquia tem pelo menos uma vantagem sobre a República: não é necessário andar, de cinco em cinco anos, a gastar dinheiro em campanhas eleitorais, nem pôr os espanhóis a atacarem-se uns aos outros para eleger um novo presidente da república…” Frase bem humorada, mas, convenhamos, com alguma lógica no conteúdo.
É bom que termine, não venha aí algum republicano a insultar-me e, quem sabe, até a apodar-me de traidor.
Mas sempre vou dizendo que, enquanto se continuar a comemorar o 5 de Outubro nos moldes em que tem sido até aqui, insultando maléfica, injustificada e estupidamente a Monarquia, vou-me mesmo pela adesão a esta.
Querem comemorar os aniversários da república (que foi imposta e não referendada, nem na implantação nem “à posteriori“), pois que o façam. Mas com dignidade e respeito pelos que têm concepções diferentes sobre a melhor forma do sistema governativo. O que interessa é que, em qualquer deles, seja dada liberdade ao povo para escolher os que nos hão-de governar, ou até desgovernar, como por vezes acontece…
Para comemorar o nosso aniversário, não vamos, com certeza, começar a desrespeitar ou a vilipendiar os nossos ascendentes. Era o que faltava! Para vergonha, já chega o que por aí vai.
Vem aí o centenário da imposição (implantação) da república, já no próximo ano. Pois que se festeje, mas com elevação, dignidade, nobreza e equilíbrio emocional. E, acima de tudo, com respeito pelos heróis monárquicos que nos legaram, ao longo de muitos séculos, o orgulho de sermos portugueses. E, se assim acontecer, quem sabe se não voltarei a virar-me para o republicanismo? Não prometo nada, mas todos sabemos que, nisto da política, a histrionia e o mimetismo andam muito aconchegadinhos para ajudarem os oportunistas no seu calculismo para o proveito próprio. Não me tenho nessa conta, mas nunca se sabe… - A. Pires da Costa -Crónica escrita para o semanário albicastrense “ RECONQUISTA” e publicada em Outubro de 2009
Vim ao mundo num tempo em que a república só ainda não tinha barbas porque é representada por uma figura feminina. Talvez por isso, durante muitos anos, nunca me interroguei se seria republicano ou monárquico, deixando-me conduzir pela lógica do meu nascimento: seria republicano porque nasci no tempo em que a república já era aceite como a coisa mais natural deste mundo. Estou convicto de que a muitos dos meus compatriotas terá acontecido o mesmo.
Mas, ultimamente, tenho meditado muito sobre o assunto e comecei a interrogar-me sobre qual será o melhor sistema para a democracia e o desenvolvimento do país. Encontro-me num ponto em que admito que qualquer deles poderá servir, dependendo o êxito ou o fracasso de cada um deles do comportamento dos políticos e do povo que somos.
No entanto, o que me faz hoje vir abordar este tema é que começo a estar farto da comemoração do cinco de Outubro e dos moldes em que ela se desenvolve.
Para início do mote, tomo a liberdade de perguntar : – Justificar-se-á que ainda se mantenha o 5 de Outubro como feriado nacional? Para uns, sim; para outros, não – como é normal nestes casos. Alinho pelos que vão pela negativa. Feita esta afirmação com tanta frieza e, segundo o entender de alguns, tanto descaramento, bom será que me justifique para satisfazer a natural curiosidade de algum leitor que ainda não desistiu de acompanhar a dissertação da crónica.
Ora, de 1143 a 1910, decorreram setecentos e tal anos, o tempo em que Portugal foi uma Monarquia. Considerando já o próximo ano, a nossa estimada república completará um século de vida. Ou nem tanto, se considerarmos o tempo da ditadura, (1926 a 1974), em que, em boa verdade, não foi uma coisa nem outra. Ditadura é ditadura e o resto é cantiga.
Vem esta menção aritmética a propósito de se pretender demonstrar que o tempo monárquico vence o tempo republicano por 7 a 1, o que , em termos futebolísticos, costuma designar-se por uma estrondosa derrota para a república.
Após estas primeiras considerações, seja-me permitido expressar de modo mais explícito o que pretendo transmitir.
O que está em causa nem é comemorar o aniversário da implantação da república. Ponho reservas, isso sim, ao triunfalismo exibido, à agressividade manifestada, ao apoucamento mesquinho, às acusações sórdidas, aos achincalhamentos impudicos, como se todos os malefícios que nos vão atingindo tenham origem no facto de termos tido, ao longo de vários séculos, um sistema político monárquico.
Até porque hoje já nos habituámos, no dia a dia, a uma convivência natural, salutar e democrática, (e não digo tolerante porque não temos nada que nos tolerar neste campo), já que somos todos membros da mesma pátria. Passado este século republicano e fazendo uma retrospectiva honesta e sincera, havemos de concordar que em ambos os regimes se fizeram boas obras e se cometeram muitos erros, pela simples razão de que, quer um sistema quer o outro, são interpretados por homens.
Olhando o mundo da Europa Ocidental em que, por uma questão geográfica e cultural, nos inserimos, nada demonstra que o bem-estar, o progresso e o desenvolvimento – seja ele de que natureza for –, dependam essencialmente de ser republicano ou monárquico. E, se bem repararmos, talvez notemos que estes têm alguma vantagem sobre aqueles. Não me consta que aqui a vizinha Espanha esteja, apesar da sua Monarquia, menos desenvolvida do que o nosso Portugal, e até, segundo rezam as estatísticas, está uns bons furos acima de nós. Não quero com isto dizer que se tivéssemos uma Monarquia a coisa seria diferente ou ao contrário.
Felizmente, a liberdade está instalada entre nós. Bom será que saibamos aproveitar as virtualidades que ela contém e não a deturpemos, dando-lhe um uso que a possa transformar em geradora de pequenos e iluminados ditadores de meia tigela.
Não queiram os que se dizem republicanos dogmáticos reescrever a história alterando-a ao ponto de afirmarem que quem lutou, sofreu e morreu para conseguir a consolidação territorial do país foram os republicanos. Ou que foram também eles que se entregaram à ingente e heróica aventura dos descobrimentos, que fizeram de Portugal um país diferente no contexto das nações já existentes na época ou formadas no futuro. Ou que foram os republicanos que fizeram a revolução do 1º de Dezembro de 1640, com muitos e muitos sacrifícios à mistura com umas tantas traições. Ou que foram os republicanos que criaram e consolidaram a mais velha nação do mundo, em termos territoriais. E não vamos enveredar por argumentações falaciosas, porque telhados de vidro todos o regimes políticos têm.
Passada a bagunçada do recente período eleitoral – nunca se foi tão baixo como desta vez! – estou tentado a registar, com alguma simpatia, o que terá dito o Rei de Espanha, D. Juan Carlos, ao socialista, Filipe Gonzalez, quando o nomeou para formar o futuro governo : – “Sei que os socialistas espanhóis são republicanos, mas não se preocupem por termos hoje uma Monarquia, pois zelarei para que a constituição seja respeitada, e, além disso, a Monarquia tem pelo menos uma vantagem sobre a República: não é necessário andar, de cinco em cinco anos, a gastar dinheiro em campanhas eleitorais, nem pôr os espanhóis a atacarem-se uns aos outros para eleger um novo presidente da república…” Frase bem humorada, mas, convenhamos, com alguma lógica no conteúdo.
É bom que termine, não venha aí algum republicano a insultar-me e, quem sabe, até a apodar-me de traidor.
Mas sempre vou dizendo que, enquanto se continuar a comemorar o 5 de Outubro nos moldes em que tem sido até aqui, insultando maléfica, injustificada e estupidamente a Monarquia, vou-me mesmo pela adesão a esta.
Querem comemorar os aniversários da república (que foi imposta e não referendada, nem na implantação nem “à posteriori“), pois que o façam. Mas com dignidade e respeito pelos que têm concepções diferentes sobre a melhor forma do sistema governativo. O que interessa é que, em qualquer deles, seja dada liberdade ao povo para escolher os que nos hão-de governar, ou até desgovernar, como por vezes acontece…
Para comemorar o nosso aniversário, não vamos, com certeza, começar a desrespeitar ou a vilipendiar os nossos ascendentes. Era o que faltava! Para vergonha, já chega o que por aí vai.
Vem aí o centenário da imposição (implantação) da república, já no próximo ano. Pois que se festeje, mas com elevação, dignidade, nobreza e equilíbrio emocional. E, acima de tudo, com respeito pelos heróis monárquicos que nos legaram, ao longo de muitos séculos, o orgulho de sermos portugueses. E, se assim acontecer, quem sabe se não voltarei a virar-me para o republicanismo? Não prometo nada, mas todos sabemos que, nisto da política, a histrionia e o mimetismo andam muito aconchegadinhos para ajudarem os oportunistas no seu calculismo para o proveito próprio. Não me tenho nessa conta, mas nunca se sabe… - A. Pires da Costa -Crónica escrita para o semanário albicastrense “ RECONQUISTA” e publicada em Outubro de 2009