Tudo começou em 1967, em Coimbra. Sopravam no Mundo ventos de mudança, e esses eram fortes, mesmo em países sob ditadura, como o Brasil, que a tinha fresca, e Portugal, que a tinha eterna. As plácidas margens do Mondego assistiam, nesse ano, a uma não menos idílica confraternização de portugueses e brasileiros. A universidade coimbrã tomara a iniciativa de um Primeiro Simpósio sobre a Língua Portuguesa Contemporânea, que haveria de ficar também único, mas ninguém o sabia então. Reunia ele a fina flor da linguística e da cultura no nosso idioma: os brasileiros Antenor Nascentes, Mattoso Câmara, Sílvio Elia, Gladstone Chaves de Melo e os portugueses Jacinto do Prado Coelho, Vitorino Nemésio, Maria de Lourdes Belchior, Luís Lindley Cintra e Herculano de Carvalho. Só faltavam realmente Celso Cunha, ausente por motivos desconhecidos, e Manuel Rodrigues Lapa, impedido de pôr pé na universidade pelos subservientes ao regime.
Numa resolução firmada por nomes sonantes, o Simpósio propôs uma «unificação da ortografia portuguesa». Considerava-se urgente «um verdadeiro e eficaz acordo» na matéria, sacrificando «preconceitos e hábitos há muito adquiridos».
Defendia-se uma grafia «simplificada», não menos «científica» que «a dita etimológica». Isto soava a revolucionário, e era-o. Atacava-se o «problema» das consoantes não articuladas (factura, recepção) por simples eliminação delas, resolviam-se as acentuações divergentes (fenómeno,fenômeno) com a geral supressão de acentos nas esdrúxulas, e encorajava-se uma futura, suplementar «simplificação» desse sistema ortográfico já «unificado».
As Actas do Simpósio surgiram no ano seguinte, 1968, e continham estas destemidas sugestões. Mas a ditadura brasileira entrara em fase raivosa, enquanto a portuguesa iniciava um descongelamento. Não era altura de atentar-se em consoantes e acentos. A semente ficara, porém, lançada, e bastava aguardarem-se tempos propícios.
Eles surgiram em Julho de 1975, quando a Academia das Ciências de Lisboa (ACL) e a Academia Brasileira de Letras (ABL) abraçaram o programa traçado em Coimbra. Na proposta conjunta, desapareciam as consoantes não articuladas e confirmava-se a eliminação de acentos em esdrúxulas, só com o cosmético recuo de mantê-los quando idênticos em Portugal e no Brasil (ânimo,fêmea). Era uma regra, esta, que obrigaria brasileiros e portugueses a conhecerem, ao pormenor, a pronúncia uns dos outros. Simplesmente, no agitado Verão político português de 75, uma reforma ortográfica era a menor das prioridades, e o assunto morreu ali.
Anos transcorreram. Num congresso linguístico brasileiro, em 1981, fez-se o premente voto de uma «ortografia simplificada» que uniformizasse a representação gráfica de cada som. Ante tal radicalismo, o linguista Antônio Houaiss lembrou a vantagem de contactar os demais utentes do idioma. Pela mesma altura, em entrevista ao Expresso, Lindley Cintra afirmava deverem os portugueses «habituar-se» a escrever ativo, adotar, objeto, correção. Tempos depois, falando ao semanário O Jornal, o excelente filólogo confidenciava ser intenção das Academias o retomar das negociações que a revolução portuguesa intempestivamente estorvara.
À primeira vista, dir-se-ia lógico, e desejável, suprimir na escrita letras que não soam. O cenário que Cintra descrevia figurava-se sedutor, paradisíaco. Mas nem tudo são rosas. Alertado por estas movimentações na frente ortográfica, o autor destas linhas publicou no Jornal de Letras, em Setembro de 1984, um artigo sobre estes temas. Era um texto longo e convenientemente discreto, intitulado «Ortograficamente adeus». Enunciava as vantagens e os limites de uma «ortografia simplificada» do português, propondo o cavalheiresco assumir das divergências que se revelassem fatais. A «simplificação» exigiria exame ponderado, e a «unificação» não era opção indiscutível. A eliminação das «consoantes mudas» (de que se fazia uma exposição circunstanciada) era matéria não negociável. Apelava-se a que nenhuma decisão fosse «produto de conclaves», descrevia-se um programa de debate aberto e bem conduzido, e propunham-se «testes exaustivos» às propostas, assim como um plano de «exequibilidade pedagógica». Tão sensatas razões iriam ficar desatendidas.
Os deuses iam em adiantado enlouquecimento, como logo em 1986 se provaria.
Pergunta-se: o que pode levar indivíduos de reconhecida qualidade científica a propor, e tornar a propor, medidas que um exame crítico, mais ou menos aturado, demonstra serem descabeladas, irresponsáveis, quando não idiotas? A resposta poderá espantar, mas tem de ser dita: tudo nasce desse embalador e entorpecente aconchego chamado «Lusofonia».
Envoltos nessa doce quentura, mesmo os mais perspicazes espíritos perdem o tino. Em nome de uma fraternidade» que só existe nos seus delírios, exercem um poder duradouro que ninguém controla, nem eles próprios.
A persistência em propostas como as geradas naquele encontro coimbrão só se entende postulando uma obnubilação mental colectiva, um clima muito espontâneo e inofensivo, que se gera (que «rola») em congressos, festivais, jantares e serões «lusófonos», mas é desastroso na hora das decisões que condicionam décadas, ou séculos, e que exigiriam a cabeça fria dos sábios académicos e o concurso de outra gente competente. Só que o aconchego lusófono se alimenta de forças primárias, fetichistas, para lá de toda a racionalidade, em pleno obscurantismo.
Exemplo recente é a euforia com o exotismo «presidenta», como se adoptá-lo operasse um amplexo transatlântico a dona Dilma.
Eduardo Lourenço disse-o, há muito, com outra diplomacia: «A comunidade luso-brasileira é um mito inventado apenas pelos portugueses. Nunca formaremos um conjunto.» E mais: «Para o nosso presente mútuo seria urgente rever, de uma ponta à outra, toda essa história imaginária, hipócrita e nefasta nos efeitos produzidos, que se esconde sob a etiqueta de relações culturais entre Portugal e o Brasil.»
Isto foi escrito em 1989, em «Imagem e miragem da Lusofonia». Mas não ajudou.
A nossa Academia funciona já cronicamente em «modo» lusófono. Os políticos não quiseram ficar atrás, e foram assinando de cruz tudo quanto prometesse mais «lusofonia».
O ano de 1986 foi inesquecível. Em Maio, as Academias portuguesa e brasileira tornaram público um Acordo de «Ortografia simplificada», gizado no Rio de Janeiro.
Era o regresso das propostas coimbrãs em todo o seu esplendor. Seriam abolidos os acentos gráficos em todas as palavras esdrúxulas (fabrica, palacio) e num bom número de graves (facil, album). Permitia-se, sim, a resolução de «ambiguidades contextuais», abrindo largas portas à criatividade individual.
Suprimia-se quase totalmente o hífen, gerando curiosas grafias (bemestar, malingua). Neste ponto havia insistido o negociador português João Malaca Casteleiro, da Universidade de Lisboa, com grande pesar do colega Lindley Cintra. Sem grande novidade, eliminavam-se as consoantes não articuladas (cf, ct, pç, pt., etc.), mas agora facultativas quando articuladas «numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente», o que, na prática, deixava a inteira decisão ao escrevente. No texto, tudo isto vinha formulado em bizantinos volteios.
Em confidência a Francisco Belard, jornalista do Expresso, dizia Antônio Houaiss, secretário-geral do convénio, que o «excesso de acentos agudos» acabara. «Tira-se o acento e cada um fala como sempre falou, sem problemas culturais.» Custa associar tamanha leviandade a um dos maiores e mais influentes filólogos brasileiros do seu século. Na realidade, Houaiss estava ali a fazer um frete. Sabemos hoje que as propostas mais subvertoras haviam sido levadas ao Rio pelos negociadores portugueses.
Sabemos também que, um mês após assinatura do Acordo, Cintra se distanciaria delas. «Lamento profundamente», declarava, «não termos apresentado publicamente o que se ia fazer». Agora era tarde, e restava ao bom Houaiss proteger os desvairados companheiros de aventura.
Se ratificadas, as propostas viriam, no dizer de José António Saraiva, director do citado semanário, criar «quase uma nova língua». Nova? Melhor se diria «extraterrestre». Tive oportunidade de ilustrá-lo num artigo no JL, onde incluía esta pilhéria: «A secretaria está hoje doente, disse o chefe da secretaria. Eu ultimo a agenda, e você… secretaria? Seria uma solução. Seria e pratica. Pois, você quanto mais pratica melhor. Pratica e eficiente, ajuntou, pousando a pasta aos pés da secretaria. Incomodo? Nenhum, disse ela. Duvidas? Muitas, disse ele, e continuas. Ainda assim publicas… Sim, sem estimulo publico. E, claro, estimulo o publico. Mas sobre isto silencio.»
Hoje, passado um quarto de século, é-nos quase comovente a ingenuidade daqueles académicos portugueses e brasileiros, nitidamente convictos de que uma cidadania adulta iria submeter-se a semelhante barafunda. Na altura, porém, um enternecimento seria a pulsão menos esperável nos muitos portugueses atentos e críticos.
O linguista Ivo Castro foi o autor (com Inês Duarte e Isabel Leiria) desse pequeno monumento ao nosso idioma que se chamou A Demanda da Ortografia Portuguesa (João Sá da Costa, 1987). O professor declarava não procurar a polémica, sobretudo «não estando ainda fechadas as apostas», mas percebia-se-lhe uma descrença no êxito da sua intervenção. Estava, sim, ultrapassada uma adesão inicial ao Acordo. «A nova Ortografia não passa de um conjunto de hábitos a adquirir e a mecanizar», dissera à imprensa, pedindo uma célere ratificação. Passado um ano, no livro, vincava que os negociadores do Acordo haviam evitado qualquer consulta aos colegas linguistas portugueses, entretanto quase unânimes na rejeição do mesmo. Insistia em pontos irrecusáveis: a previsível influência da nova escrita sobre a pronúncia, o enganoso de uma «simplificação» que vinha exigir especiosas operações mentais, a patente falta de coerência do próprio texto acordado. A obra de Ivo Castro informava, ainda, abundantemente sobre os longos meses do debate, informação que uma antologia, A Questão do «Acordo Ortográfico» (Maia, 1988), viria complementar.
Pela calada, as propostas académicas foram retiradas para «reformulação». Não sem um empurrãozinho político. No Verão de 1986, os chefes da diplomacia brasileiro e português tinham declarado: «As duas partes entendem que o acordo recente a que os técnicos chegaram não é definitivo.» No primeiro dia do ano seguinte, Carlos Reis, catedrático em Coimbra, escrevia no Diário de Notícias: «Mau, mesmo mau, em 87, seria que o Acordo fosse ratificado às escondidas, sem se aproveitar o capital de empenhamento e reflexão que a sua discussão provocou.»
Pouco depois, em inícios de 1988, a Academia tinha pronto um «Anteprojecto de Ortografia Unificada» mais um. Sobre ele se debruçou a Comissão Nacional da Língua Portuguesa (CNALP), criada na dependência directa do primeiro-ministro Cavaco Silva, visando a auscultação, em matéria de idioma, de linguistas, professores e instituições. Num parecer de Junho de 1989, a Comissão congratulava-se por as novas propostas serem menos «controversas, inadequadas e incorrectas» que as anteriores, mas tinha de apontar-lhes «numerosas insuficiências» linguísticas e técnicas. O parecer desaconselhava, entre mais, a eliminação das «consoantes mudas» (adoptar, efectivo) pelo seu previsível efeito: o fechamento (os linguistas chamam-lhe «elevação», «recuo» ou «redução») da vogal anterior.
Teriam os nossos académicos aprendido, finalmente, com tantas saídas em falso? Tudo iria mostrar que não.
Em meados de Outubro de 1990, desta vez em Lisboa, reuniram-se delegações dos países de fala portuguesa. Um novo Acordo ia ser elaborado. Do Brasil chegou Antônio Houaiss, novamente sozinho. Pelo nosso país tomavam parte Malaca Casteleiro, autor do «Projecto de Ortografia Unificada» ali sobre a mesa, o infatigável Lindley Cintra e mais cinco membros da agremiação lisboeta.
Ao contrário do Encontro no Rio, acessível à imprensa, este era secreto. As suas resoluções ficariam em sigilo até 1 de Novembro, permitindo que fossem os Governos os primeiros informados. Em duas sessões diárias, no vetusto edificio da Academia das Ciências, foram sendo analisadas e aprovadas’ as «Bases» do Acordo. Logo no primeiro dia de trabalhos, 9 de Outubro, ficava estabelecida a eliminação das consoantes não articuladas. A duração prevista dos debates foi respeitada, tudo correu sobre rodas. «A unanimidade e o consenso foi [sic] a tónica das sessões», anotava um participante, num emocionado «diário». Ao terceiro dia, na sessão da tarde, era definitivamente aprovado o Acordo. Tomava-se, ainda, um «compromisso» (termo do nosso diarista): produzir e publicar um «Vocabulário Ortográfico Comum» até 1 de Janeiro de 1992. As novidades passariam a vigorar dois anos mais tarde.
Ali tínhamos, pois, naquele Outono de 1990, um novo conclave, a resguardo de olhares estranhos, ultimando um produto para ávidos e submissos utentes. O grande lexicógrafo Houaiss havia sublinhado, na primeira sessão de trabalhos, a conveniência de se terem em conta os «contributos, críticas e sugestões» publicamente expressos. Esta anotação do diarista é preciosa. Ela demonstra que o «Projecto» ali apreciado não resultara de qualquer «aprofundado debate» nos países signatários, como depois se lerá no texto do Acordo. Nem podia, de resto, resultar, já que, em Portugal, tal debate jamais se deu. O Acordo conteve, pois, desde o início, uma falácia factual, tornada depois «mentira de Estado», como acertadamente escreveu António Emiliano, professor da Universidade Nova de Lisboa.
Não seria esta a única deselegância. Quando, mais tarde, for redigida por João Malaca Casteleiro uma «Nota Explicativa», saída em Agosto de 1991 no Diário da República, há-de ler-se que o Acordo de 1986 «ficou inviabilizado pela reacção polémica contra ele movida sobretudo em Portugal». É uma formulação de mau perder. Mas há mais. A propósito da «abolição dos acentos gráficos», lemos que «foi contestada por uma larga parte da opinião pública portuguesa, sobretudo por tal medida ir contra a tradição ortográfica». Era o menos ponderoso dos motivos da contestação.
Mas assim se geram as mitologias. Não, a Academia teve sempre razão, a medida era óptima (perdão, «otima»), e seria hoje de uso comum, não fossem os portugueses tão botas-de-elástico. O desportivismo, está visto, não é o forte dos académicos.
O Acordo de 1990 lucrou com alguma benévola desatenção dos críticos. Depois do desconchavo de 1986, qualquer texto mais ponderado era um alívio. O produto continuava decerto mauzinho, mas sentia-se que aquele levantamento colectivo debelara uma catástrofe. O pior tinha passado.
Adormentada grandemente a contestação (só o jurista Vasco Graça Moura, desde sempre mordaz analista do empreendimento, apostrofou como “pateta» a nova versão das antigas “calamidades»), a iniciativa passou para os impacientes da nova ortografia. Em 1995, aparecia o primeiro estudo em abono das mudanças, «Novo Acordo Ortográfico, Afinal o Que Vai Mudar?» (Texto Editores), obra de José Victor Adragão. O conhecido linguista (e excelente divulgador) declarava não ver «grandes objecções a que periodicamente se ajuste, simplifique e actualize a escrita das palavras». Confessava, sim, que as «explicações» (aspas no original) dadas na «Nota Explicativa» do Acordo deixavam mais dúvidas do que certezas. Só não informava quais. No Expresso, em Março de 1996, a pretexto deste livro, apontei as perplexidades técnicas que o Acordo suscitava.
Mas também eu estava atingido pelo sedativo. «Este Acordo, insípido, defensivo e tecnocrata constitui mesmo assim um mal menor, um passo a tremelicar de hesitações, mas na direcção certa.» Mais tarde, iria descobrir um «lado bom» ao Acordo. Mas não adiantemos.
As novas disposições ortográficas, não extasiando ninguém como produto linguístico, entusiasmavam os convencidos de que uma «unificação» da grafia do português garantiria algum protagonismo planetário. Em versão mais modesta, cria-se que a nova grafia ia trazer uma «aproximação» dos «povos irmãos» utentes do nosso idioma. Era a hora e a vez dos estratégicos e dos líricos.
O mais persistente paladino do Acordo como instrumento de «estratégia linguística» foi, até hoje, Carlos Reis. Interessa-lhe, escrevia em 2008 no JL, a «coesão» da presença no Mundo dos países de fala portuguesa, constatando que «o futuro da Língua Portuguesa depende hoje do Brasil, mais do que de Portugal», e apontando como fito «contrariar o poder hegemónico de duas ou três línguas» no concerto internacional. Já os líricos são mais primários. No último mês de Julho, no Público, Jorge Miranda lançava a pergunta: “Por que razão havia de ser o português europeu a determinar a língua escrita em confronto com o português do Brasil?» O grande constitucionalista diz-se convicto de que “a verdadeira defesa do português não pode consistir no conservadorismo ortográfico». Essa oratória não passa de um reconfortante assobiar para o lado.
Os prazos ambicionados em 1990 acabaram, sabemos, impiedosamente subvertidos. O Brasil, o primeiro país a adoptar o Acordo, fê-lo em 2009, com publicação simultânea, e unilateral, de um “Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa». Em Portugal, foram tomadas em 2008 as disposições legais para a entrada em vigor. No ano seguinte, a Porto Editora pôs no mercado um «Vocabulário» homónimo do brasílico, elaborado por Malaca Casteleiro. Mas só este ano, 2011, o país dispôs de uma ortografia oficial, a do «Vocabulário Ortográfico do Português», elaborado no Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC) por uma equipa chefiada por Margarita Correia. A Academia das Ciências informava, entretanto, ter iniciado a produção de um terceiro “Vocabulário», de que nada seguro transpirou. Certo é isto: que, em Portugal, a aplicação do Acordo só será obrigatótia em 2015. Precavidos, porventura sábios, Moçambique e Angola não deram ainda qualquer passo.
Hoje que dispomos de «Vocabulários» oficiais, brasileiro e português, muita coisa se esclareceu. E, antes de mais, que esses vocabulários nunca haveriam podido ser um único, o chamado «Comum», que só existiu no reino da falácia. Fomos então enganados? Claro que fomos. Só nos resta, pois, desenganarmo-nos. De caminho, concedamos que o engano também bateu à porta dos azarados académicos. Ainda em 2007 Malaca Casteleiro clamava pelo «vocabulário comum», um «instrumento necessário à implementação» do Acordo, que, insistia, continuava «válido e aplicável».
Muito em breve o Estado português iria subsidiar um vocabulário «português» da sua lavra, um passo lógico, inteligente, mas que era a total e pública desautorização de tudo quanto Casteleiro representara até aí, e até afirmara, como o ser «reduzido», em Portugal, o número de vocábulos afectados pelo Acordo, afirmação oportunista em que também insistia Evanildo Bechara, o académico que sucedera a Houaiss no comando brasileiro. De resto, a necessidade de tal «Vocabulário» era tão óbvia que, em Maio de 2008, em vésperas da votação parlamentar, o linguista João Andrade Peres, da Universidade de Lisboa, em artigo no Público, lançava um último e esperançado apelo. Nada conseguiu. O sonho «lusófono» dos políticos portugueses voava já em piloto automático.
A sério: teria sido perfeitamente viável uma lista internacional, em papel ou formato digital, das centenas de milhares de vocábulos do nosso idioma, com as suas eventuais variantes sonoras, e portanto ortográficas, válidas no espaço da língua portuguesa, até com indicação da sua aplicabilidade «geográfica». Essa lista mostraria, a quem ainda duvidasse, o falhanço de anos e anos de encenação académica «unificadora», mas mereceria um prémio de coerência. Mais ainda: uma lista assim existe de facto, e continua acessível, hoje, 18 de Agosto de 2011. Chama-se «Vocabulário de Mudança» e está, de há anos, no Portal da Língua Portuguesa, da responsabilidade do ILTEC, o mesmo que aloja o nosso «Vocabulário» oficial. Nessa lista, as formas próprias brasileiras são dadas como «não aconselháveis», mas obviamente legítimas, em Portugal. Consulte-se, pela sua espectacularidade, a letra «R», com largas dezenas de vocábulos nesta situação. Trata-se de um entendimento irrestrito, já denominado «terrorista», do Acordo (entendimento que os autores dele, honra lhes seja, nunca impugnaram). Os «Vocabulários» oficiais, o brasileiro e o português, decidiram-se, sabemos, por uma leitura restritiva, simpática, do texto do Acordo. Mesmo assim, uma comparação entre os dois permite descobertas assombrosas.
Um ponto de ordem: a análise que segue vai centrar-se na supressão das «consoantes não articuladas». Outros aspectos do Acordo afiguram-se muito menos problemáticos, como a omissão do acento em veem ou joia, o uso de minúscula nas estações e meses do ano (primavera, agosto), a eliminação do hífen em «haver» (hei de, hão de) ou em compostos como paraquedas e autoestrada. Mais discutível é a supressão do acento em para e pára, que soam diferentemente no português europeu e deveriam continuar desambiguados. Como ler doravante «João, para o carro!» sem informação extratextual? Bizarro é, também, o uso facultativo do acento em certas formas verbais, tornando indecifrável, em Portugal, um bilhete que diz «Pagamos hoje» ou «Não demos nada». Simplesmente, a questão das «consoantes mudas» tem bem maiores, e mais onerosas, implicações. Um exemplo disso, em versão simplificada: só a supressão do «c» em finais de tipo -acção (o cálculo é do investigador Francisco Miguel Valada, num artigo em Diacrítica) produz um aumento exponencial de «excepções», num sistema de regras que, até hoje, quase não as conhecia. Para um Acordo que visava «simplificar», é obra.
***
Um brasileiro não tem estes problemas. A sua norma vocálica sustenta-se numa regularíssima metafonia (variação no timbre da vogal, conforme for tónica ou não). No Brasil, as duas vogais pretónicas de recessão e recepção soam idênticas (é – è), distinguindo-se os dois vocábulos pelo «p» articulado do segundo vocábulo. Em Portugal, as pretónicas de recessão são insonoras, enquanto recepção soa «r’cèção»: sem «p» articulado, mas com «e» aberto.
Estas bizantinices portuguesas podem explicar uma atitude brasileira parecida com falta de solidariedade. E é pena. Porque estamos aqui no absoluto cerne destes problemas: o nosso magnífico idioma tem duas ortografias porque tem sistemas vocálicos divergentes. O fosso entre os dois vai-se, mesmo, alargando. Mil acordos ortográficos não conseguiriam uma reaproximação dos dois sistemas. Importa aceitá-lo com naturalidade e não interiorizá-lo como um drama. Hoje os brasileiros já precisam de legendar filmes portugueses, mas daqui a 200 anos os romancistas brasileiros ainda serão, como hoje, os que melhor lemos no original.
Mas há mais, e aqui se mostra o destempero deste Acordo. As sequências cç, pt e semelhantes são um terreno movediço, altamente instável, tanto no Brasil como em Portugal. As duplas grafias, mesmo as nacionais, sempre sem indicação de preferência, virão criar insegurança nas escolas, nos jornais, nas editoras, nos indivíduos. Mas não menos inquietante é constatar que as duas instabilidades, a portuguesa e a brasileira, são entre elas descoincidentes, e até irredutíveis. Os «Vocabulários» oficiais vieram pô-lo, sem dó, em evidência. Assim, há variações permitidas no Brasil (aspecto/aspecto, susceptível/susceptível) e impossíveis em Portugal. Do mesmo modo, há variações permitidas entre nós (conetar/conectar, assético/asséptico) mas vedadas a um brasileiro.
Não chegando já as perplexidades da variação portas adentro, seremos continuamente confrontados, em publicações e na Net, com a variação brasileira, e futuramente, com a africana. Se alguma «unificação» nos espera, é a de nos tornarmos crescentemente inseguros.
Para que a desgraça fosse realmente perfeita, o Acordo veio presentear-nos com descoincidências gráficas até agora inexistentes. A grafia pré-Acordo camuflava um bom número de divergências sonoras, como percepção, excepcional, invectivar. Na nova situação ortográfica, estas diferenciações tornam-se particularmente gritantes e geradoras de perturbação nos menos avisados, que poderemos ser todos. Único e triste consolo: as tabuletas com «RECEPÇÃO» no Brasil e «RECEÇÃO» em Portugal serão outras tantas caretas chasqueando, dia e noite, dos nossos inventivos «unificadores».
***
Em domínio menos quantitativo, sublinhe-se o facto de, nos 20 anos de suspensão do processo, não ter aparecido um único estudo «linguístico» em defesa do enxovalhado Acordo. Publicaram-se obras expositivas, mais ou menos apologéticas, como a citada de Adragão, A Questão Ortográfica (Editorial Notícias, 1993), de Edite Estrela, e O Acordo Ortográfico (Flumen/Porto Editora, 2009), de Francisco Álvaro Gomes. Mas todos os estudos técnicos e analíticos, levados a cabo em universidades e instituições profissionais, foram frontais na reprovação das propostas académicas. No árnbito da divulgação, destaquem-se Acordo Ortográfico: a Perspectiva do Desastre (Alêtheia, 2008), de Vasco Graça Moura, uma robusta ponderação jurídica, O Fim da Ortografia (Guimarães, 2008), de António Emillano, apavorante análise das consequências imediatas do Acordo, e Demanda, Desastre, Deriva (Textiverso, 2009), de Francisco Miguel Valada, uma exposição detalhada, e devastadora, das incongruências do produto. As intervenções de Emiliano na imprensa foram recolhidas em Apologia do Desacordo Ortográfico (Verbo, 2010).
O debate prossegue, empenhado, no diário Público, de posição redaccional anti-Acordo, mas acolhendo todas as opiniões em causa. A mesma largueza, com a suplementar dádiva do arquivamento, é patenteada no «Ciberdúvidas da Língua Portuguesa», o mais informativo sítio na Net em matérias correntes do idioma, sendo utilissima a sua secção de «Dúvidas linguísticas». Um idêntico serviço de esclarecimento é oferecido na página da Priberam. Nos blogues pessoais, o debate encontrou um clima particularmente animado.
Destaquem-se o «Linguagista», de Helder Guégués, porventura o melhor do género entre nós, e o acima referido «Bic Laranja».
E, todavia, o Acordo revelou um «lado bom», ainda que intrinsecamente perverso, ao inaugurar um conceito de «ortografia» de implicações ainda insuspeitadas. Até hoje, os critérios de grafia do português foram a «etimologia» e a «tradição», e só de forma implícita a «pronúncia» efectiva. Este Acordo subverteu drasticamente o esquema, consagrando a «pronúncia» (culta, obviamente) de cada comunidade de língua portuguesa como critério fundamental, e decisivo, da grafia. Parecerá incrível, mas um Acordo «unificador» abriu caminho para uma imparável diferenciação gráfica nos países que usam o nosso idioma. Precipitação? Ingenuidade colectiva? Um último ardil de Antônio Houaiss? Quem o souber um dia o dirá.
Está visto. Mesmo que agora, sensatamente, os políticos portugueses desactivem um processo ainda perfeitamente reversível, o primado da «pronúncia» (que ninguém questionou) está doravante firmado nos juízos e procedimentos da nossa grafia. E, para começar, e bem, ele conduzirá, em Portugal, à manutenção das consoantes não articuladas. (O aludido artigo de Francisco Miguel Valada, em Diacrítica, 24/1, 2010, esclarece como). Pode parecer um paradoxo, mas um tudo-nada de raciocínio leva lá depressa.
E o futuro? O futuro é risonho. Esta terá sido a última tentativa de «unificar» a ortografia do português. No Brasil, uma nova geração de linguistas apresta-se a tomar as rédeas. Ela vai já quebrando tabus morfológicos e sintácticos, e quebrará os ortográficos também. As várias pronúncias «cultas» em território brasileiro não escondem um vasto âmbito de uniformidade sonora, mormente em contraste com Portugal. Um dia, essa considerável uniformidade vai, sobretudo no âmbito das consoantes, reclamar a adequação gráfica que a etimologia e a tradição lhe sonegaram, e não é a pronúncia portuguesa, mesmo culta, que irá estorvar tal anseio. Os portugueses e outros «irmãos de língua» encontrarão aí um venturoso estímulo.
E pronto. Lançada esta promissora semente, e devidamente agradecidos os nossos aprendizes de feiticeiro, pode o infeliz e falacioso Acordo entrar agora, tranquilo, no esquecimento.
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