quarta-feira, julho 02, 2014

O Torrão no contexto da Guerra Civil: A Batalha de Alcácer do Sal e o Episódio de Algalé

Aqui de tua pátria defensores
Tragárão do martirio, inteira a taça!
Viandante, leva as lagrimas e as flores;
Lê só! Dobra o joelho, adora e passa!
 António Feliciano de Castilho (1800-1875)

Obelisco de Algalé que marca o local onde se deu a execução dos oficiais liberais capturados pelo exército miguelista após a Batalha de Alcácer. Situado na Herdade de Algalé, freguesia do Torrão, actualmente encontra-se em propriedade privada


Pormenor do Epitáfio da autoria de António Feliciano de Castilho


1. Prólogo

A Guerra Civil portuguesa que decorreu entre 1832 e 1834 constitui indubitavelmente uma das páginas mais negras da História de Portugal. Na verdade, o século XIX foi pródigo em acontecimentos terríveis para Portugal; múltiplos conflitos, invasões, epidemias, fome e de tão funesto que foi que este será porventura sem sombra de dúvida o «saeculum horribilis» português.
 O conflito, que opôs portugueses a portugueses e semeou o ódio no coração do reino e do qual Portugal talvez nunca mais tenha recuperado e sarado completamente a ferida que surgiu do dissídio, surge duas décadas depois das Invasões Napoleónicas, no contexto da Guerra Peninsular, que deixaram o país enxague. A contenda opôs os partidários de D. Miguel, chamados Legitimistas, Realistas, Tradicionalistas, Miguelistas ou, como ficaram comumente conhecidos, Absolutistas, aos partidários do seu irmão, D. Pedro, os quais eram designados por Pedristas, Constitucionais ou Constitucionalistas, ou, como ficariam conhecidos, Liberais.
D. Pedro e D. Miguel eram filhos d'el-Rei D. João VI e de D. Carlota Joaquina.
D. Pedro IV, de Portugal (Imperador D. Pedro I, do Brasil), declarou guerra ao seu irmão D. Miguel, a quem os liberais chamavam de usurpador, a pretexto de defender os direitos da sua filha, D. Maria da Glória, futura rainha D. Maria II.
Este singelo artigo tem a humilde pretensão de tão somente dar a conhecer um facto desconhecido da maioria dos torranenses e alcacerenses e vai abordar os ecos da guerra que opôs Liberais a Absolutistas nos territórios que são hoje a freguesia do Torrão e o concelho de Alcácer do Sal, nomeadamente a Batalha de Alcácer do Sal, que decorreu no dia 2 de Novembro de 1833 e o chamado episódio de Algalé, decorrido dois dias depois, onde no referido local os Absolutistas, vencedores da contenda, executaram sumariamente quase três dezenas de oficiais liberais. Para tal socorremo-nos de testemunhos narrados na primeira pessoa, por um oficial subalterno, ao serviço do exército constitucional, de seu nome Francisco José de Almeida, e das crónicas de Bulhão Pato.

 D. JoãoVI e D. Carlota Joaquina, pais de D.Pedro e D. Miguel


D. Pedro IV de Portugal  e imperador do Brasil, com o título de D. Pedro I. Vencedor da Guerra Civil, morreria no mesmo ano em que ela terminou (1834) com 36 anos de idade, vítima de tuberculose. Sucedeu-lhe a sua filha, D. Maria II.


D. Miguel I, de Portugal. Derrotado na Guerra Civil de 1832-1834, depois de assinar a Convenção de Évoramonte embarcou para o exílio aí falecendo em 1866


D. Maria da Glória, filha de D. Pedro IV. Com a morte do seu pai, sobe ao Trono de Portugal em 1834 como D. Maria II


Retrato de D. Maria II em 1833


 Bandeira Nacional usada pelos Miguelistas


 Bandeira Nacional usada pelos Liberais. Foi a Bandeira Nacional entre 1830 e 1910


Bandeira Regimental Portuguesa de 1806 a 1833



2. A Batalha de Alcácer do Sal

A Batalha de Alcácer do Sal teve lugar no dia de 2 de Novembro de 1833. Na verdade, chamar batalha parece um tanto ou quanto exagerado sendo talvez mais correcto chamar refrega ou escaramuça tal não era a desproporção de forças em termos de preparação e equipamento o que levou a que a contenda fosse breve. 
A força liberal era quase, como se diz na gíria, uma tropa fandanga. Era composta por homens de mais idade oriundos de vários contingentes. Para além disso era ainda composta por duas companhias de soldados ingleses do Batalhão do Alentejo, de uma companhia de franceses, alguma cavalaria e alguns marinheiros, perfazendo um total de 1.500 praças. A somar a tudo isso, a força estava extremamente mal equipada em termos de armamento e de munições.
Ao invés, a força miguelista, comandada pelo General José António de Azevedo Lemos, um dos principais comandantes das forças afectas a D. Miguel e um dos oficiais portugueses mais prestigiados, era composta por melhores soldados apoiados por guerrilheiros e encontrava-se bem equipada. 
Perante o desequilibrio evidente, mal equipados e quase sem munições, bastaram alguns disparos da artilharia miguelista para a resistência liberal quebrar. A força desmoronou-se e em vez de retirar debandou desordenadamente e de forma caótica enquanto o inimigo caiu em sua perseguição. Muitos soldados liberais tentaram desesperadamente a fuga atravessando o Rio Sado em barcos mas com a maré baixa era impossível navegar pelo que tentaram atravessar o rio a nado, morrendo afogados no lodo. Os outros acabaram capturados pelos Absolutistas, foram feitos prisioneiros e encarcerados na prisão e no celeiro da vila de Alcácer do Sal de onde partiriam para Porto de Rei.
Francisco José de Almeida, oficial ao serviço do exército liberal, participou na acção e relata na primeira pessoa, em «Apontamentos da Vida de um Homem Obscuro», escrito em 1883, cinquenta anos depois, os factos então ocorridos. Vejamos o testemunho do alferes Almeida.



O combate de Alcácer do Sal. Vitória Miguelista. Prisioneiro do inimigo


Passados três ou quatro dias, veio ordem de marcharmos para Belém, e fomos aquartelar-nos no Convento dos Jerónimos, quartel em que não me demorei, por isso que, às onze horas da noite, marchei com um destacamento, de dois capitães, para a Torre de Belém, onde estava governador o bravo barão de Pico de Celeiro.

Fizemos ali serviço de campanha e, passados dias, teve ordem o destacamento para marchar até Setúbal, o que fizemos, vindo embarcar ao Arsenal da Marinha, às cinco horas da tarde, e indo desembarcar à Moita, onde chegámos era meia-noite.

De madrugada, marchámos para Setúbal, onde chegámos, às três horas da tarde. O sr. tenente João Augusto Marques e eu fomos, como aquartelados, para casa dum genovês, que se chamava José Estrafaz e que tinha uma loja de bebidas.

O nosso patrão era um encarniçado miguelista e, segundo alguém nos disse, tinha ele oferecido gratuitamente a madeira precisa para a forca que ali se levantara, e que mandara fazer um palanque para onde ia ver mais sossegadamente as execuções!

Julgo que, por isso, se fará ideia de quanto mal seríamos recebidos e tratados pelo nosso patrão, o que nos proporcionou um episódio de pequena guerra assaz engraçado, que seria aqui agora ocioso narrar.

De Setúbal marchámos, embarcados, para Alcácer e fomos desembarcar às Faias. O inimigo, à nossa aproximação, retirou e nós entramos em Alcácer, terra onde todos eram constitucionais e que nos receberam com franqueza e alegria. Os sinos repicaram, e a vila, apesar da copiosa chuva que caía, iluminou-se.

O tenente Marques e eu ficámos aboletados em casa dum sujeito que se chamava Silva, recebendo-nos, tanto ele como a sua boa família, dum modo que ainda desperta gratidão, não só pela sua generosa franqueza mas também por outro motivo de maior monta, o qual foi interessarem-se por mim, quando depois fui feito prisioneiro.

Conservámo-nos em Alcácer sem acontecimento nenhum digno de notar-se, a não ser umas peças que nos enviaram e num tal estado que nunca saíram do lugar onde desembarcaram, até chegar, afinal, o desgraçado dia 2 de Novembro de 1833, em que, depois da descoberta, marchou a força de que eu fazia parte para um lugar chamado Porto da Lama e outra parte da força para um lugar, à esquerda, de cujo nome agora não me recordo, por isso que o nosso comandante, o coronel Florêncio, tinha sido prevenido que o inimigo nos atacava nesse dia, como, de feito, nos atacou.

Cumpre aqui agora dizer alguma cousa acerca da organização da força que fora mandada para Alcácer porque, como ela foi infeliz, torna-se necessário procurar saber a verdade, para se poder fazer justiça.

A força parece-me que era em número de 1500 praças, composta de contingentes tirados dos sete corpos fixos de Lisboa, que eram assim chamados por serem formados de gente de mais idade e menos aguerrida, de duas companhias de soldados ingleses, do Batalhão do Alentejo, duma companhia de franceses, dalguns marinheiros e soldados da antiga brigada de marinha, de vinte e três cavalos de Cavalaria nº11 e de uma força do 4º Móvel, de que eu fazia parte, bem como o tenente Marques, o tenente Facadas (de Évora) e o major graduado Assis, que era o nosso comandante, e o capitão Morais.

Vê-se bem claramente que os elementos de que a força se compunha eram os mais heterogéneos possíveis, o que é sempre prejudicial ao bom resultado duma acção. Além disso, o seu estado de munições era péssimo, pelo que observei em relação à força do meu batalhão, pois tinha pouca pólvora e estava ainda com as mesmas pederneiras nas armas com que tinham feito fogo no dia 5 de Setembro, e constou-me que os outros contingentes não estavam em melhor estado. Era este, se bem agora me lembro, pouco mais ou menos o estado da força e esta a sua organização, quando marchou ao encontro do inimigo.

Cumpre-me dizer que, tendo eu ficado prisioneiro e perdido a minha bagagem, perdi por isso os meus apontamentos. Releve-se-lhe portanto alguma inexactidão que cometa no que deixo dito.

Chegados ao ponto onde devíamos esperar o inimigo, tomámos posição num pequeno monte, no cimo do qual estava principiada uma cousa a que chamavam forte. O terreno era arenoso e a falta de terra e pedra faziam com que tal construção fosse pouco regular. Estava ali uma pequena peça, e deram-me para a servir doze soldados de brigada e um sargento, que de artilharia nada entendiam, e para guarnição catorze soldados do meu batalhão. O resto da força retirou para a rectaguarda a postar-se no pinhal que ficava próximo.

Logo que tomei posse do meu posto foi o meu primeiro cuidado examinar a peça e suas munições. Infelizmente fiquei sumamente surpreendido vendo que o reparo da peça estava partido, que não havia espoletas nem morrão, que só havia nove balas, oito cartuchos e um barril pequeno meio de pólvora solta.

Fui imediatamente procurar o coronel Florêncio e particularmente dei-lhe parte do que encontrara, ao que ele me respondeu, um pouco bruscamente: «Pois sim! Vá para lá. Que já se vão dar as devidas providências!»

Voltei ao meu lugar e mandei acender uma pequena fogueira, onde conservava paus acesos para me servirem de morrão. Da pólvora solta mandei humedecer alguma e fazer uns «amassados» de forma piramidal para servirem em lugar de espoleta, e mandei carregar a peça, esperando a minha sorte. Era uma hora, pouco mais ou menos, da tarde quando isso sucedia.

Pouco depois apresentou-se um soldado das milícias de Baleizão que tinha desertado do inimigo, e deu notícias exactas da aproximação deste. Tive dó do mau estado do apresentado e promovi-lhe uma subscrição entre as pessoas presentes e reparti com ele do lauto almoço que as minhas boas patroas haviam mandado para o tenente Marques, para mim e para os meus camaradas.

Seriam umas duas horas, passava o inimigo na minha frente, em um sítio chamado as Cortiças e postou a sua artilharia numa azinhaga, um pouco para a esquerda, fazendo-nos dali um fogo terrível e bem sustentado, por isso que a sua artilharia estava muito bem servida, e, ao segundo tiro, a bala matou, se bem me lembro, o oficial da brigada de marinha, que era comendador e julgo que capitão. Este oficial vinha para me falar quando foi alcançado pela bala que o matou.

Como podemos, foram-se disparando os oito tiros correspondentes aos oito cartuchos que tínhamos; mas infelizmente fui, nesse intervalo, ferido na perna esquerda por um estilhaço, o que me inutilizou por algum tempo. Felizmente o meu sargento, que se chamava Paulo Jorge, era um homem valente e brioso, e por isso continuou a fazer fogo com a tal peça, como pôde. Tiros de fuzilaria não se davam porque não se via a quem.

Tornando a ser um pouco senhor de mim voltei ao meu posto e vi que não havendo mais munições para se continuar a fazer uso da peça era inútil continuar ali. Por consequência mandei encravar a peça com a bala que restava e retirei-me dirigindo-me ao pinhal, onde esperava encontrar a força. Infelizmente já ela se havia retirado. Segui então com a minha gente pela estrada que conduz a Alcácer, a qual é flanqueada à direita pelo rio e (era-o naquele tempo) à esquerda por um valado.

Na estrada encontrei duas companhias de ingleses, que eram comandados por dois oficiais, que, segundo me parece, se chamavam Bailey e outro Fitz Patrick.
Juntei-me a eles com os soldados que me acompanhavam, e com essa força reunida resistiu-se a uma força de cavalaria inimiga que nos foi perseguindo até ao rossio da vila. Ali o bravo capitão inglês, vendo que lhe era impossível resistir por nos faltar o abrigo dos flancos, não sei que ordem deu. O que sei é que tudo debandou, e eu meti-me por um beco que conduz ao rio, e, chegado ali, vi já muita gente em desordem querendo atravessar o rio, o que era quase impossível, por estar a maré vazia e os barcos em seco. Infelizmente os que tentavam passar afogavam-se no lodo, e foi esse talvez o modo porque mais gente se perdeu.
O que se passou na esquerda não sei; é provável que o digno oficial, o tenente Reis, que me constou fora encarregado duma peça igual à minha, que lá estava postada, não fosse mais feliz do que eu em relação a munições. Creio porém que, a despeito disso, cumpriu o seu dever.
Pelo estado em que eu vi as coisas, reconheci que estávamos perdidos e, o que era peior, que tínhamos sido cortados. Em tais circunstâncias, fui andando como pude até ao sítio em que havia uma marinha e uma barraca. Pedi à gente que ali estava que, por caridade, me recolhessem para ver se assim escapava a ser feito prisioneiro e mesmo ao fogo que o inimigo fazia aos fugitivos. Desgraçadamente aquela gente repeliu-me e pouco depois dois guerrilheiros e um soldado de cavalaria, a pé, fizeram-me prisioneiro, que, sem me maltratarem, me levaram até um alto, onde estava o comandante da força inimiga, o célebre general Lemos.
Quando ali cheguei, vi já ali também prisioneiros os dois oficiais ingleses, o meu major Assis, o capitão Manuel José Gomes, o capitão de caçadores Morais que estava adido ao meu batalhão, os meus dois sargentos Paulo Jorge e Ferro, D. Joaquim (irmão do conde de Penafiel), os srs. Pachecos (de Setúbal), muitos soldados do meu batalhão e dos outros corpos, muitos ingleses, etc., que ao todo eram quatrocentos e trinta e dois. Logo em seguida a mim chegava também prisioneiro, nu e muito maltratado, o infeliz Carlos Cavigioli.
Passado algum tempo, levaram-me a mim e aos dois oficiais ingleses à presença do general Lemos, que estava, a certa distância, a cavalo, de sobrecasaca azul e chapéu armado de oleado. Ele perguntou aos ingleses se queriam ficar ao serviço do sr. D. Miguel, ao que os briosos oficiais responderam que não. Chegando-se a mim o sr. Bailey, disse-me: «Jamais!»
Depois chamou-me o sr. Lemos a mim e perguntou-me:
- Você quer ficar ao serviço?
Respondo que não e que sofreria com resignação a sorte dos meus camaradas.
A isto respondeu o general, sorrindo-se:
- Tirem-lhe lá essa banda e essa espada… que há-de seguir a sorte dos seus camaradas!
Depois disso, chegou-se a mim um oficial e deu-me uma tremenda bofetada, dizendo:
- Grandíssimo maroto, que foi apanhado com a boca na botija!...
Em seguida os soldados tiraram-me a banda e a espada, despiram-me a sobrecasaca e as calças, deixando-me só em ceroulas e camisa! E como tinha num dos dedos dois anéis de ouro e não os podiam tirar, por isso que o trabalho com a peça e agitação que tinha tido naquele dia me tivessem feito engrossar o dedo, queriam cortar-mo! Felizmente os anéis saíram, e eu fui completamente roubado!
Peço desculpa de contar minuciosamente estas cousas, porque conquanto não queira comentar o comportamento do defunto general, que já se não pode defender, quero porém que se saiba que houve um homem, que se dizia cavalheiro – um general, um militar, um português! – que deixou que na sua presença se praticasse na pessoa dum prisioneiro, dum português que combatera lealmente, o que eu fielmente acabo de contar!
Releve-se-me que eu interrompesse a história dos infelizes prisioneiros com esta divagação que só a mim diz respeito.
Reunidos os prisioneiros, mandou-me um oficial de cavalaria que eu assumisse o comando dos meus companheiros e os comandasse até à vila. Respondi que eu não os podia comandar, porquanto que havia entre eles alguns com patente superior à minha.
O resultado desta minha justa observação foi o dito oficial enfurecer-se comigo e gritar-me:
- Faça o que lhe mando, ou meto-lhe esta espada pela boca dentro.
Voltei-me então para os meus desgraçados companheiros e disse-lhes:
- Bem vêem que sou obrigado!
Ao que todos responderam:
- Venha! Venha!
Em vista disso, disse então:
- Peço que se metam em ordem, e marchamos até à vila.
Dito e feito. Fomos até à porta da cadeia, onde nos dividiram. Depois foram-nos metendo em várias casas, por isso que não havia prisão em que coubéssemos todos. Foi, portanto, metida uma grande porção de prisioneiros num celeiro, da qual eu fazia parte, bem como os srs. Pachecos, um dos quais ainda hoje vive felizmente.
Devo declarar, para ser justo, que o oficial que comandava a força que nos escoltou até á vila se portou dignamente e não consentiu que nos fizessem mal. Aquele cavalheiro conversou comigo e disse-me que era de Bragança, e eu disse-lhe que também que tinha ali minhas tias e outros parentes, que lhe nomeei, os quais ele me disse que muito bem conhecia. Soube depois que ele, quando voltou a Bragança, dera notícias de mim às minhas tias. Sinto não saber o nome de tão digno militar, para aqui o escrever com gratidão, e muito estimaria que ele ainda vivesse, para ver que lhe faço justiça.
Quando separei os oficiais, o infeliz sargento Paulo Jorge pediu-me para o dar como oficial, porque cuidava ele, os oficiais seriam sempre mais bem tratados, e eu desgraçadamente anui ao seu pedido, e, com essa anuência, sem querer o matei! Pobre homem!, que pertencia a uma família de cavalheiros, de homens de bem, e por isso julgou que os seus assassinos pensariam como pensam os homens que se prezam de humanos e honrados.
 


A forma de fazer a guerra no período em estudo baseava-se em descargas de fuzil (tiro de fuzilaria), tiro de artilharia e combate corpo a corpo que resultava de cargas a pé. Para tal, no início do período napoléonico, ainda no século XVIII, surgia uma novidade: um pequeno punhal que se encaixava no cano do fuzil, denominado baioneta (ainda hoje em uso) com que se carregava sobre o inimigo.
Recorria-se ainda a cargas a cavalo de onde o soldado desferia golpes de espada. 
O vídeo abaixo é bem exemplificativo da forma como se combatia e pese embora o facto deste retratar as Invasões Francesas no contexto da Guerra Peninsular, que opôs as tropas anglo-lusas às tropas francesas de Napoleão Bonaparte, passadas duas décadas e meia, a doutrina e tácticas militares bem como uniformes e armamento usados na guerra que opôs Liberais a Absolutistas eram praticamente os mesmos pelo que a Batalha de Alcácer, de 1833, poderia muito bem ser retratada e ser em tudo semelhante ao que se pode ver aqui:
 




 Este outro vídeo, retrata uma recriação histórica levada a cabo pela Companhia de Teatro Viv'Art e incide justamente sobre a Guerra Civil de 1832-1834:







3. A jornada dos prisioneiros e o desfecho de Algalé

Os soldados liberais, em número de quase quatro centenas e meia, prisioneiros dos miguelistas, foram encarcerados na prisão e no celeiro da vila de Alcácer do Sal de onde partiram numa jornada penosa rumo a Porto Rei, pernoitando aí. No dia seguinte puseram-se em marcha rumo a Campo Maior porém, a pretexto de se poupar os oficiais a uma mais extensa jornada, foram estes chamados à frente e separados dos sargentos e praças, informando-os de que estes rumariam a Beja enquanto os restantes seguiriam para a vila raiana. A sua jornada terminaria de forma trágica em Algalé.
Dois dias depois da Batalha de Alcácer, a 4 de Novembro de 1833, vinte e cinco oficiais liberais e o sargento Paulo Jorge acabaram executados sumariamente ali. A inclusão do sargento Paulo Jorge deveu-se ao facto deste ter pedido ao comandante da força em que estava integrado, precisamente o alferes Francisco José de Almeida, para que este o desse como oficial pensando que por isso seria mais bem tratado. Enganou-se o infeliz sargento que assim acabou fuzilado. O alferes que o tinha em muito boa consideração lamentaria profundamente o facto de ter anuído ao pedido do seu subordinado e de, tal como diz nas suas memórias, como tivemos oportunidade de ver atrás, com a sua decisão tê-lo condenado à morte.
Inicialmente seriam 28 os militares constitucionais que seriam executados. Dois porém conseguiram evadir-se: o alferes Almeida e um outro militar de nome Silva. De referir que alguns oficiais, ao invés, deram-se como soldados.
Vamos socorrer-nos mais uma vez das memórias de Francisco José de Almeida e ver em que circunstâncias se deu a referida evasão e o que aconteceu desde que foram feitos prisioneiros em Alcácer do Sal.


A CAMINHO DA MORTE. UM INIMIGO PROTECTOR. A FUGA EM PORTO DE REI



Agora tenho de falar só de mim, e por isso diligenciarei ser breve.
Estava pois metido no celeiro: sentei-me no chão, a um canto. Caí, para assim dizer, então numa inacção filha do cansaço, em que me tinham posto os trabalhos do dia, e das vicissitudes de que estava sendo vítima. Pensei depois em mim, na minha posição e na minha sorte, e o meu espírito intimidou-se. Via-me sem fato, sem dinheiro e sem amigos… e contudo não me ocorria o peior que estava para acontecer. Via que estava prisioneiro, mas pensava que estava entre homens e não entre feras. Estava triste, sim, mas não abatido. Resignado, confiava na Providencia divina. E felizmente, essa confiança não foi ilusória. E a prova é que aqui estou agora escrevendo estas linhas. Pois foi a Providencia que nessa ocasião me deparou amigos que me deram meios e que me salvaram a vida.
Não conhecia pessoalmente o sr. João António José Pacheco, de Setúbal, e seu irmão, que eram oficiais do Batalhão do Alentejo. Estes dois cavalheiros, que também estavam prisioneiros, sentaram-se ao pé de mim. Principiámos, os três, a lastimar a nossa sorte. Então o sr. Pacheco (António) disse para mim:
- Olhe, camarada, eu tenho algum dinheiro, e por isso pegue lá estas três patacas, visto que está sem nada.
Deixo à avaliação dos meus leitores o valor de tal acção, que eu, pela minha parte, tenho mostrado que nunca ela me esqueceu, estimando e respeitando sempre, possuído da mais sincera gratidão, aquele cavalheiro.
A oferta teve o seu tal ou qual de providencial, porque, reanimando-me, fez-me lembrar do meu pai, da minha mãe, da minha família, dos amigos e dos meios que eu teria para me salvar. De repente, lembrei-me que o corregedor de Beja, Diogo José Vieira de Noronha, era casado com a filha do sr. Francisco Marques Torres, e que este senhor Torres era íntimo amigo do meu falecido amigo Tomás José Moniz. Este meu bom amigo até depois de morto me foi útil. Essa lembrança que tive foi a salvação da minha vida.
Eram pouco mais ou menos nove horas da noite. Levantei-me e cheguei à porta do celeiro. Olhei para fora e no largo vi um grupo de pessoas, entre as quais estava um sujeito alto e reforçado, de sobrecasaca verde, bonet à lanceira, canana e espada. Deu-me uma pancada o coração que era aquele o corregedor de Beja. Mas como falar-lhe? E, falando-lhe, atender-me-ia ele, que tinha fama de cruel? Nada me intimidou: e, chegando-me ao guerrilha, que estava de sentinela à porta, disse-lhe:
- Ó camarada, diz-me onde está o senhor corregedor de Beja?
- É aquele – respondeu-me ele, apontando para aquele sujeito que eu julgara ser o próprio corregedor.
- Faz-me o favor de lhe mandar dizer que está aqui um prisioneiro que lhe deseja falar?
O guerrilha mandou-lhe o recado e ele veio imediatamente ter comigo.
Chegando ao pé de mim perguntou:
- Quem é que me quer falar?
- Sou eu – respondi.
- Quem é o senhor?
- Eu sou um amigo do sr. Tomás José Moniz, amigo do seu sogro, o sr. F. M. Torres. A sorte da guerra decidiu-se contra mim. Se ela se tivesse decidido contra V. Sª e estivesse ao meu alcance fazer-lhe algum bem, dou-lhe a minha palavra de honra que o fazia. Nas circunstâncias em que me acho, peço-lhe que modere a minha sorte no que lhe for possível.
O sr. Noronha não respondeu nada. Deu-me o braço, levou-me para casa do carcereiro e mandou-me dar uma manta. Quando ele ia a retirar-se, disse-lhe:
- Sei que V. Sª se vai aquartelar para a casa das sr.as Silvas, onde eu estava aboletado. Por isso rogo o favor de lhe dizer que, se eu amanhã ainda aqui estiver, me mandem, por obséquio, alguma coisa para comer.
S. Sª tirou da algibeira três patacas, deu-mas e retirou-se.
Estava eu pois em via de salvar-me. Achava-me já possuidor de seis patacas (6$000 réis aproximadamente). Já se vê que a confiança na Providencia não me iludiu.
Mandei comprar um pão e papel, escrevi às sr.as Silvas, dei ao carcereiro 480 réis, sentei-me e esperei a minha sorte.
Passou-se aquela noite, amanheceu, e apresentou-se um belo dia. À porta da casa do carcereiro estava postada uma sentinela. Ao postigo, vinha uma afluência imensa de guerrilhas ver-me.
Haviam de ser dez horas, passou preso entre guerrilhas o infeliz soldado que se tinha apresentado e para quem eu tinha feito a subscrição, e, passado algum tempo, ouvi tiros. Soube depois que tinham fuzilado o pobre homem! Eu estava sentado defronte da porta e ouvi dizer a um dos guerrilhas:
- Aquele já está! E este também não tarda…
Quando disseram a última parte, apontaram para mim.
Eram onze horas quando me vieram buscar e me levaram para junto dos outros prisioneiros. Deu-se então um caso que ia sendo funesto. O infeliz Cavigioli estava ainda completamente nu. Os oficiais ingleses tinham ainda os seus capotes, e um guerrilha chegou-se a um dos oficiais e queria arrancar-lhe o capote – para cobrir o nu – dizia ele. O oficial não esteve por isso e o resultado foi travar-se luta entre os dois. Os outros guerrilhas, vendo isso, principiaram em gritar:
- Mata os prisioneiros!
Felizmente os oficiais principiaram a restabelecer a ordem, e nós, os prisioneiros, pedimos ao oficial inglês que cedesse o seu capote para cobrir o infeliz C. Cavigioli, que depois ele lho entregaria.
Meteram-nos em ordem para marchar, amarrando-nos primeiro com tamiça, a quatro e quatro.
Nessa ocasião contei vinte e oito oficiais: faltava porém D. Joaquim, os srs. Pachecos e não sei se mais algum, que se tinham dado como soldados, e não como oficiais que eram, indo por isso na leva dos soldados.
Pusemo-nos a caminho e passámos pela casa onde eu estivera aboletado e onde então fora bem tratado. Aquela boa família nem então deixou de ser generosa, pois mandou-me, quando eu passava por ali, um saco com pão, carne assada, nozes e queijo.
Quando chegamos ao sítio das Cortiças, no lugar onde corria um riacho, pediram ao senhor Noronha, que era quem comandava a escolta que os conduzia, que os deixasse beber água no riacho, ao que ele anuiu, mandando fazer alto. Os soldados de cavalaria (que, seja dito em abono da verdade, nos trataram pior que os guerrilhas), muito de propósito, pararam os cavalos sobre a corrente, o que fazia com que a água nos chegasse imunda pelo estravo dos cavalos.
Continuando a jornada, eu quasi que não me podia arrastar. O ferimento que tinha no joelho agravara-se e o cansaço fazia com que não pudesse andar. Um guerrilha, de Beja, teve dó de mim e disse-me se eu queria ir de ancas com ele, o que logo aceitei. Depois de passado algum tempo, um outro guerrilha chegou-se a nós e disse:
- Então que é isto? Você leva o prisioneiro a cavalo! Está-me parecendo que, dali a pouco, nem prisioneiro nem guerrilha… Não fosse você dos tais!
Continuando, dirigindo-se então a mim e empurrando-me:
- Já para o meio do chão!...
E assim me fez ir a pé.
Passando algum tempo, o guerrilha que me levava chegou-se a mim e disse-me:
- Peça licença ao senhor corregedor para eu o levar a cavalo… que aquele maroto há-de-mas pagar! Se fosse em outra parte metia-lhe uma faca nas tripas!
Todos os meus camaradas me animaram a que eu pedisse ao corregedor, porque viam que eu não podia andar. O joelho tinha-se-me inchado consideravelmente. Quando o corregedor passou perto de nós fiz-lhe o pedido e mostrei-lhe o meu estado físico. Respondeu-me:
- Se ele o quer levar, vá, que o cavalo é dele.
Todos os meus camaradas se alegraram e parece aplaudiram a acção do sr. Noronha, julgando que ele seria humano para com eles também. Infelizes! Como se enganavam!
Não seria necessário que eu contasse agora mais um facto de generosidade do capitão Manuel José Gomes, por isso que é de todos sabida a generosidade e bondade daquele digno homem e verdadeiro liberal. Todos os seus soldados lhe eram obrigados, porque a todos ele mais ou menos obsequiara. Que pena que a tão digno homem lhe dessem morte tão penosa, tão injusta e tão afrontosa! Maldição eterna sobre quem ordenou e cometeu tão feroz e cruel selvajaria!
Aquele nobre amigo não me conhecia antes. Mas era tal o seu instinto do bem, que, apesar de estar naquelas circunstâncias, quando viu a boa vontade com que o guerrilha me punha a cavalo, deu-lhe uma certa quantia de dinheiro, que não pude ver nem saber quanto era. Para que aqueles que não conheceram Manuel José Gomes possam fazer ideia da sua bondade bastará dizer que até na desgraça teve um amigo dedicado. O seu camarada, cujo nome não sei, não tinha sido prisioneiro e contudo não quis desamparar o seu oficial e acompanhou-o a pé, levando às costas a bagagem do seu bondoso capitão. Perdoem-me se sou prolixo nestas histórias. Mas é que actos destes tão heroicos e nobres praticados pelos homens do povo não devem ficar esquecidos como acontece quasi sempre.
Continuamos andando pela nossa «via dolorosa». Veio a noite fria e chuvosa. As dores na perna, a humidade e o frio faziam-me sofrer horrivelmente, como é bom de supor, em vista eu ir de ceroulas e camisa.
Chegámos a um sítio que, se bem me lembro, se chamava Vale Verde. Aí fizemos alto e foi ordenado que todos nos deitássemos, dando-se ordem aos vigias para que atirassem sobre todo aquele que se levantasse. Tal era o medo que tinham que nós nos levantássemos! De modo que tivemos que estar deitados sempre no chão molhado, sofrendo e aguentando com a chuva que caia sobre nós. Acenderam fogueiras em roda do grupo dos prisioneiros, para assim puderem ver os seus movimentos. Os guerrilhas formaram um cerco em volta de nós.
Teria decorrido uma hora, quando o sr. Noronha se chegou a mim, mandou-me levantar, levou-me a pouca distância e disse-me o seguinte que repito textualmente:
- Já estou informado de quem V. Sª é. Tenho, por isso, todo o interesse em salvá-lo. Quando chegarmos a Porto de Rei, ponha-se atrás de mim. E agora adeus, que vamos marchar.
E assim foi. Tocou a avançar e partimos, indo eu novamente a cavalo com o meu guerrilha protector.
Pelo caminho ia eu considerando no que me tinha dito o sr. Noronha e conversando com o guerrilha. De repente, diz-me ele:
- O corregedor parece-me que é seu amigo, o que me admira porque ele não tem amigos constitucionais.
Ouvindo isso fiquei como que assombrado por um raio! E eu, que ia pensando se havia ou não de pôr-me atrás, conforme me dissera, resolvi que não.
Chegámos a Porto de Rei e fomos metidos numa casa cujas paredes eram muito grossas e as janelas deitavam sobre o rio. No vão de uma das janelas escondi-me eu, e daí via o corregedor a acomodar os prisioneiros e ao mesmo tempo parecia que procurava alguém, como de facto procurava, e era a mim. Dando comigo, disse-me um tanto enfadado:
- Eu não lhe tinha dito que se pusesse atrás de mim?
Respondi-lhe já não sei o quê.
O corregedor chegou à janela, em cujo vão eu estava, e observou a altura, que seria, segundo me pareceu, dumas três ou quatro varas, e depois, voltando-se para mim, perguntou-me:
- O senhor tem ânimo para saltar daqui abaixo?
Respondi que sim.
- Pois bem; em se apagando as luzes salte daqui a baixo.
Antes porém delas se apagarem gritava o guerrilha com quem eu viera e que me trazia o saco de comida:
- Que é feito do homem da carne?
Eu ouvia-o, mas conservava-me muito bem calado.
Nisto apagaram-se as luzes. Acto contínuo dependurei-me da janela e deixei-me escorregar pela parede abaixo, indo cair sobre a areia. Quando aí me achei, já aí estava o sr. Noronha, que me conduzia para uma casa, onde me escondeu por detrás de uma cortina e onde já encontrei o sr. Silva, parente das sras. Silvas, de Alcácer.
Estávamos a felicitar-nos mutuamente – porque o sr. Silva disse-me que estávamos salvos, pois as suas primas haviam pedido por ele e por mim – quando ouvimos entrar o sr. Noronha e dizer:
- Eu tenho todo o interesse em salvar estes dois rapazes. O senhor ajuda-me a isso?
O recém-chegado respondeu:
- Com todo o gosto.
Então já podem sair cá para fora – disse o sr. Noronha, dirigindo-se a nós. Saímos. A pessoa que tinha entrado era o alferes da guerrilha, que, faça-se justiça, não parecia guerrilha, tal era a sua disciplina.
O alferes era o sr. Fernandes. Principiámos então a conversar, mostrando ele interesse em saber de várias pessoas por que me perguntaram, e, como tinha a felicidade de conhecer todas, dava-lhe notícias certas, o que fez com que aqueles dois cavalheiros me considerassem como pessoa de boa sociedade, a ponto de confiarem em mim e me fizeram algumas incumbências para Lisboa.
O sr. Fernandes, antes de se retirar, pediu-me para que, quando eu chegasse a Lisboa, procurasse seu pai, que era empregado (não me lembro onde) e morava na Travessa do Noronha, ao Colégio dos Nobres, e lhe desse notícias suas, com muitas saudades para sua mãe. Escusado será dizer que, assim que cheguei a Lisboa, logo que pude cumpri tão honroso como agradável encargo, como a honra e a gratidão me obrigavam.
O pai e a família do sr. Fernandes recebeu-me com alegria e delicadeza própria dum cavalheiro bondoso como ele era.
Não fui tão feliz com a incumbência do sr. Noronha. Porque, dando-me ele uma carta para a sua família, quando lha fui levar nem me receberam nem quiseram receber a carta, a qual tornei a entregar a S. Sª depois, quando veio de Roma.
Penso que o sr. Fernandes ainda vive e por isso, felicitando-o, chamo-o à autoria.
O meu protector continuou a falar comigo, e, entre outras coisas, disse-me:
- Eu podia arranjar-lhe que o sr. ficasse ao serviço… o Sr. quer ficar ao serviço do sr. D. Miguel?
Respondi-lhe prontamente que não.
- Bravo! – me disse ele. – Já esperava isso, e vejo que é um homem de bem. Hei-de salvá-lo. Em paga peço-lhe o favor de dar ao sr. D. Pedro um recado da minha parte.
Dei-lhe a minha palavra de que cumpriria o seu desejo, como efectivamente cumpri.
Disse-me então:
- Diga ao imperador que eu não sou seu inimigo e que o respeito como um membro da Casa de Bragança; que foram os malvados de Beja que me obrigaram a eu empenhar-me na luta e que agora, uma vez empenhada, hei-de defender até à morte o partido em que entrei.
S. Sª mandou fazer a sua cama e mandou deitar-me ao seu lado. Pouco dormimos. Levantou-se, almoçou galinha e caldo, repartindo connosco. Depois deu-me o que era preciso para eu cortar o bigode e a barba, que eu deixara crescer. E até, pedindo-me a tesoura, foi ele mesmo que ma cortou, o que fazendo me dizia:
- Não sei a sorte que espera os seus companheiros… Logo que eu me afaste com a força do meu comando, fuja. Recomendo-lhe que vá sempre duas léguas longe de Alcácer, que é até onde chegam os piquetes.
A isto objectei-lhe eu:
- Mas, senhor, eu não sei nada destes sítios e por isso em V. Sª me desamparando, estou certamente outra vez preso, quando menos por suspeito.
Mandou então chamar um mulato, que ali havia e que era guarda do celeiro, a quem ele disse, assim que chegou:
- Vocemecê acompanhe estes homens a Setúbal e vá sempre duas léguas longe de Alcácer. Cumpra bem o que lhe digo, que eu, na minha volta, lhe pagarei.
Tirou da algibeira três cruzados novos, deu-mos, e, apertando a mão ao sr. Silva e a mim, disse-nos adeus. Eram quatro horas da manhã.


 A CAMINHO DE LISBOA. PERDIDOS. A SALVO EM SETÚBAL

Ficámos nós os dois, eu e o sr. Silva. Os nossos infelizes amigos e camaradas partiram. Desgraçadamente vinte e cinco oficiais e o sargento Paulo Jorge foram fuzilados em Algalé! Os seus nomes estão gravados em uma lápida que se lhe erigiu naquele lugar, lápida que tem dupla significação: é um padrão de honra e saudade dedicado àqueles honrados e briosos mártires da liberdade e um estigma de execração perpétua para quem os mandou assassinar.
Faltam naquela lápida dois nomes, por isso que nós éramos vinte e oito: um é o meu, o outro nunca soube o fim que levou. Como eu milagrosamente escapei àquela hecatombe já os leitores sabem e vão agora saber o que mais me sucedeu até chegar a Lisboa.
Partimos os três, isto é, o sr. Silva, o mulato e eu, um quarto de hora depois de terem partido os prisioneiros em direcção a Algalé. Subimos uma pequena encosta, afastando-nos quanto possível da estrada.
Depois de uma hora e meia de jornada, em que pouco podíamos adiantar por causa do meu ferimento, sentimos uma descarga, e, após dessa descarga, tiros soltos, que faziam o efeito como se fossem disparados por uma linha de atiradores em ordem estendida.
Não podendo nós julgar qual seria o motivo daquele fogo, foram diversas as hipóteses que fizemos, qual delas a mais assustadora em relação às nossas aflitivas e perigosas circunstâncias, o que levou o nosso guia a afastar-se quanto pôde do caminho trilhado, obrigando-nos por isso a caminhar entre mato, bastante assustados e receiosos.
Mal pensávamos nós que aqueles tiros eram disparados sobre os nossos camaradas, sendo assim cruelmente assassinados, tiros que, se estivéssemos mais perto, sentiríamos misturados com o doloroso gemido das vítimas que foram, como depois soube, espingardeados sem serem vendados, atirando-se ao grupo dos vinte e seis até o destruir! Este género de morte não ocorreu, decerto, a nenhuns outros tiranos!


A execução fora presidida pelo corregedor de Beja, Diogo José Vieira de Noronha e, ao que parece, ordenada pelo general Lemos. Posteriormente tentaram enjeitar responsabilidades no acto trocando acusações mútuas na imprensa. Na verdade porém, à luz do código militar de então, os ditos oficiais, tendo desertado daquele que era para todos os efeitos o exército português para fazer guerra ao mesmo num exército considerado rebelde, incorriam na pena de morte. Por outro lado, havia entre os miguelistas uma enorme sede de vingança face a um episódio de contornos semelhantes perpetrado pelos Liberais, três meses antes, onde um grupo de companheiros de armas seus tinham sido vítimas depois de aprisionados pelos liberais em Panóias a 14 de Agosto de 1833. 
O  episódio viria posteriormente a ser muito explorado pela propaganda liberal, que lhe chamou o "massacre de Algalé", o "episódio de Algalé" ou o "massacre da Ponte de Algalé". 
Estes desfechos foram o culminar dos ódios extremos entre as duas facções contendoras e que resultaram em actos de extrema crueldade de parte a parte.
O episódio foi portanto e acima de tudo a resposta miguelista, ao massacre de Panóias por parte dos Liberais.
Bulhão Pato, célebre entre a maioria dos portugueses sobretudo pela famosa receita culinária de ameijoas, também faria referência ao caso no Tomo II do seu «Memórias - Homens Políticos», onde personalidades políticas portuguesas do século XIX, suas contemporâneas foram descritas, referindo-se à Batalha de Alcácer e ao episódio de Algalé da seguinte forma:



O desastre de Alcacer deveu-se á falta de um cabeça, e á pouca firmeza com que se bateram os liberaes. Podia haver actos de bravura pessoal, mas a acção foi uma lástima.
No dia seguinte ao combate, Noronha, á frente dos officiaes prisioneiros, manietados, partiu para Porto de Rei. O corregedor sabia o fim que ia dar áquelles desgraçados; mas a sua índole fatal queria exercitar ainda mais uma vingança. Entre os prisioneiros vinha o dr. Deodato Zuzarte de Mattos, seu condiscípulo de Coimbra. A politica tornara-os inimigos. Diogo de Noronha desviou-o, de noite, para uma vinha, e coseu-o a punhaladas!*

Como é que aquella alma ferina, n’essa mesma noite, se condoeu de dois moços adolescentes – Francisco José de Almeida, e outro rapaz de Alcacer, chamado Silva – proporcionando-lhes a fuga, procurando-lhes guia e dando-lhes dinheiro?!

* Nos Apontamentos de um homem obscuro, Francisco José de Almeida, seu autor, ocultando o nome de Noronha, a quem deveu a vida, diz:
            «Chegamos ás imediações do lugar onde na véspera tínhamos bicavado, e encontramos aí um cadáver, que se via tinha sido apunhalado, e, conquanto estivesse vestido, não podemos conhecer de quem seria. Disseram-me depois que era do filho da morgada de Ferreira».
            Almeida foi mal informado. O morgado de Ferreira, pai do actual possuidor d’essa ilustre casa, o meu prezado amigo Luiz Maldonado Passanha, estivera na acção, mas pode escapar milagrosamente ao morticínio, ordenado por Lemos e executado por Noronha.


Não queremos encerrar este capítulo sem dar a conhecer aos prezados leitores como terminou o calvário épico de Francisco José de Almeida. Retomemos então à sua narrativa no ponto em que havíamos ficado:

Chegámos às imediações do lugar onde na véspera havíamos bicavado, e, encontramos aí um cadáver, que se via tinha sido apunhalado, e, conquanto estivesse vestido, não podemos conhecer de quem seria. Disseram-me depois que era do filho da morgada de Ferreira.
Na posição em que nos achávamos, deve-se julgar que tudo nos impressionava, e por isso a nossa jornada era triste e vagarosa, visto que no espaço de uma hora eram já dois os incidentes assustadores.
Quando já, em distância, avistámos o Porto da Lama, vimos que vinham marchando em direcção da nossa frente uma força de cavalaria, que parecia ter saído de Alcácer.
O aspecto daquela força, que seria um esquadrão, era óptimo, tanto em cavalos como em equipamento, circunstância que eu já havia notado no dia da acção. Soube depois que aquela cavalaria era a que tinha acompanhado a Espanha uma pessoa real (julgo que D. Carlos) [n.r. Almeida referia-se provavelmente a D. Carlos de Bourbon, Conde de Molina, irmão de Fernando VII de Espanha e de D. Carlota Joaquina] e que fizera por isso a sua remonta e o seu equipamento naquele país, onde foram generosamente tratados.
Ao ver-se a força, mudámos de direcção, para não sermos vistos, tendo que descer quase de rastos por uma ribanceira e fomos entrar num rio, por onde caminhámos pelo espaço de mais de meia hora, dando-nos a água pelos joelhos. Deste modo rodeámos Alcácer em direcção a Vale de Reis, a cujas imediações chegámos por volta das quatro horas, quasi sempre embrenhados no mato.
Passado algum tempo, viu o nosso guia que à nossa esquerda caminhavam dois vultos, que apareciam de espaço a espaço e como que arrastando-se pelo mato, o que despertava em nós a ideia de que fôssemos espionados e o receio do bom êxito da nossa fuga e da nossa salvação.
Convencidos pois que era gente que nos seguia, fomos por isso cautelosamente caminhando, escondendo-nos quanto podíamos, de modo que deixámos por muito tempo de ver os vultos.
A direcção que seguimos era a de Palma. Qual não foi porém a nossa admiração, quando, ao saírmos do mato, deparámos com dois infelizes, que tinha sido horrivelmente acutilados no dia da acção em Alcácer! Eram os que nós julgávamos que nos vinham espiando! Estes dois infelizes tinham ficado abandonados no campo do combate como mortos; voltando a si, evadiram-se, arrastando-se como puderam até ali. O seu estado era horrível! Por isso creio, em vista da distância qua ainda estavam no povoado, que não chegariam a salvar-se. Infelizmente as terríveis circunstancias em que nós nos achávamos não permitiam que pudéssemos valer àqueles desgraçados: fomos forçados a abandoná-los cruelmente!
Continuámos a nossa jornada e chegámos a Palma eram seis horas. Daí tomámos o caminho em direcção a Marateca, onde chegámos às nove horas da noite. Tornou-se chuvosa a noite. A fome e a sede, especialmente a sede era devoradora. Não se via no povoado senão brilhar uma luz.
A nossa posição de fugitivos e a ignorância em que estávamos da opinião dos habitantes daquele sítio e mesmo porque o nosso estado (…) – tornava-nos receiosos de tudo e por tudo. Como, porém, a chuva era muita, abrigámo-nos em um coberto, onde estava um carro. Passado algum tempo, a sede tornou-se insuportável, e por isso, apesar do risco, resolvemos ir pedir água à casa, onde se via luz.
Depois de vencermos vários obstáculos que a escuridão nos ocultava, chegámos junto à casa onde estava a luz e batemos à porta, pedindo, pelo amor de Deus, um púcaro com água para um pobre doente que ia para o hospital.
Abriu-se a porta, e desgraçadamente depara-se-nos um espectáculo fúnebre: o homem que nos abria a porta velava junto a um defunto embrulhado num lençol, com duas luzes à cabeceira! Aquele triste quadro noutra qualquer ocasião talvez não nos impressionasse. Tornou-se porém naquele momento como que um acontecimento de superstição, a ponto que, dando-nos o homem a água pedida, nenhum de nós a pôde beber, o que me pareceu fizera certa impressão na pessoa que no-la dava.
Perguntámos em seguida qual o caminho para Águas de Moura. O homem fez-nos uma explicação que julgou talvez bastante para ali nos dirigirmos. Porém a escuridão da noite ou, talvez, a nossa alucinação, fez com que não encontrássemos o pinheiro que ele nos indicara como servindo de ponte para atravessar o rio; de modo que caminhámos durante o resto da noite sem nunca conseguirmos achar meio de o atravessar. Só quando a manhã vinha rompendo é que descobrimos um pau atravessado no rio, mas não em seco, porque a água quasi o cobria. Assim mesmo nos escarranchámos sobre ele e conseguimos passar o rio. Chegámos, portanto, à outra margem completamente molhados e o nosso guia altamente estafado. E creio bem que, se não fora o medo do corregedor, já nos teria abandonado.
Batemos a uma porta, perguntámos para dentro qual o caminho para Águas de Moura ao que respondeu uma voz:
- Ora essa! Vocês vão errados… Aqui é a Landeiras. Esperem lá que eu lhes vou ensinar o caminho.
Abriu-se a porta e apareceu um homem, que nos conduziu por entre umas vinhas até nos meter no caminho que ia dar a Águas de Moura.
Chegámos por consequência àquela localidade eram umas oito horas da manhã. Aí o nosso guia abandonou-nos, apesar de instarmos com ele para que nos acompanhasse até Setúbal; não houve forças que a isso o convencesse. Portanto, nós os dois metemo-nos à estrada em direcção a Palmela. Foi então que as forças nos começaram a faltar e o desânimo nos assaltou. Não pouco contribuía para isso o estarmos já livres do perigo. Faltando-nos, felizmente, esse poderoso incentivo, vendo-nos sós, sem sabermos os caminhos para onde íamos andando, extenuados pela fome, desconfiados de todos, era essa uma posição tão atribulada, que, confesso, me venceu. Deitei-me no chão no propósito de me deixar ali morrer, morte que nem, ao menos, era descansada, por isso que as dores na perna eram insuportáveis. O meu bom companheiro animou-me como pôde e fez com que eu me levantasse. A grande custo, pois, chegámos a Palmela.
Ali já havia autoridades liberais e fomos à presença do juiz de fora, que era do Batalhão Académico. Aquele cavalheiro, que nos tratou caridosamente, disse-nos que tinha ordem de não deixar passar ninguém para Lisboa, e que, por isso, nos enviava para Setúbal. Mandou em seguida embargar duas cavalgaduras, atendendo ao nosso deplorável estado, para nos conduzirem a Setúbal.  
Enquanto se davam estas providências, entrámos em uma venda, junta à igreja, e era tal a minha fome que, ainda me lembro, comi azeitonas que se estavam a retalhar, pão de rala cozido com alhos dentro. Alhos!, que até o cheiro me repugna e sempre repugnou, menos então. O que faz a fome! A dona da venda teve tanto dó de mim, vendo o meu lastimável estado, que me deu umas meias, pelo amor de Deus. Prontas as cavalgaduras, partimos, acompanhados por um oficial de diligências, para Setúbal, aonde chegámos por volta das quatro horas.
Ali, depois de apresentados ao exmo. Sr. Manuel Filipe de Moura Cabral, que era então o provedor em Setúbal, separou-se de mim o sr. Silva ficando eu em casa do sr. Cabral, de quem era amigo, e que, apesar disso, era tal o meu estado que, quando me viu, não me conheceu. Possuo um atestado de S. Exa., contando o exposto, que é para mim um documento e uma memória.
Setúbal era uma terra muito miguelista, e por isso, ao saber do desastre de Alcácer, agitou-se de forma que quase se sublevou, a ponto que destruiram fortificações. Como porém estava ali a fragata D. Maria II, de que era comandante o sr. Dória, conteve por isso a terra em respeito. Não obstante, eram obrigadas as autoridades a ir à noite para bordo da fragata, a fim de evitarem algum insulto.
Fui, portanto, com o sr. Moura Cabral para bordo, onde me receberam com toda a amizade, tanto o sr. Dória, como todos os oficiais, conquanto só de S. Sª e do sr. Caetano Rodrigues Batalha fosse conhecido e amigo particular.
Pela manhã voltámos para terra e foi-me o sr. Cabral comprar fato para eu puder voltar para Lisboa. Antes porém da minha partida dali deu-me o sr. Cabral uma carta para o juiz de fora de Almada me deixar passar, cuja carta ainda hoje conservo, por isso que me não foi necessário entrega-la.
Aluguei uma cavalgadura e parti de Setúbal seriam umas onze horas, em direitura ao Seixal. Fiz sem incidente aquela jornada, chegando à Quinta do Oiteiro às seis horas; e, como o bote da casa estava a partir para Lisboa, meti-me nele sem me ser necessário ir a Almada, chegando ao Cais da Areia (que hoje já não existe) às oito horas da noite. E tive o prazer de abraçar o meu pai e a minha mãe e todos os de minha família, que me julgavam morto.

NAS NECESSIDADES COM D. PEDRO. NO QUARTEL DA BOA HORA. O BAILE DO ARSENAL DO EXÉRCITO.

No dia seguinte, às sete da tarde, fui às Necessidades apresentar-me a Sua Majestade o imperador, para assim cumprir a promessa que tinha feito ao meu salvador sr. Noronha.
Sua Majestade estava a jantar, e com ele estavam o marquês de Santa Iria, que era então o general de armas, o comendador Almeida e dois oficiais do Comércio, que eram os oficiais da guarda do Paço. Mandei-me anunciar pelo meu nome e como vindo de entre os prisioneiros de Alcácer. Sua Majestade mandou-me imediatamente entrar. Quando me viu, disse-me:
- Então o que é isso? Você vem nesse estado!
- É verdade, senhor. E assim mesmo dou graças a Deus, porque fugi depois de estar prisioneiro pelo espaço de quarenta e oito horas.
- Então como foi isso? Você assistiu à acção? Conte-me como isso foi.
Contei então exactamente tudo o que se passara. O imperador, ouvindo-me com a maior atenção, não me fez a mínima reflexão. Depois dei-lhe o recado que o sr. Noronha me tinha dado para Sua Majestade. A isso é que o imperador respondeu:
- Pois, sim! Ele podia ter defendido o seu partido sem ter sido malvado.
Em seguida disse-me:
- Bem. Vá para casa e tem um mês de licença para se tratar.
E, voltando-se para o marquês, disse:
- Conceda um mês de licença ao sr. Almeida para se tratar.
Agradeci a Sua Majestade, e disse-lhe que trazia uma carta do sr. Noronha para a família e que pedia licença para lha ir entregar, não achando Sua Majestade nisso inconveniente; pois, se o houvesse, então nesse caso pedia licença para a queimar.
Sua Majestade respondeu-me:
- Entregue a carta. Que ele, decerto, não lhe dava carta com segredos.
Despedi-me, agradecendo, e recolhi-me a casa para me tratar.
No dia seguinte oficiei ao meu coronel que estava no quartel da Calçada d’ Ajuda, com o casco do batalhão.
Quando se completou um mês de licença, apresentei-me no quartel e no dia seguinte entrei de ronda. Acabado aquele serviço, participou-me o major que eu ficava retido no meu quarto, por ordem do sr. coronel. Estive assim retido três dias no meu quarto e, findo eles, tive ordem para sair. Fui, como é prática, agradecer ao coronel, e respeitosamente lhe pedi que me dissesse S. Sª o motivo da detenção que tinha sofrido. Respondeu-me que por ter gozado licença sem a requerer pelas vias competentes.
Ninguém, decerto, achará que eu, depois de ter sofrido tantos trabalhos e tormentos, fosse amavelmente tratado pelo meu exacto e ríspido comandante, que nem mesmo naquela ocasião se esqueceu de zelar a disciplina, por isso que essa circunstância só lhe podia acontecer quando se tratasse de elogiar os seus subordinados! Quer isso, portanto, dizer que ele dava mais ensino que recompensa.
O batalhão fazia, em Belém, o serviço de guarnição, o qual pela pouca força que havia, se tornava altamente pesado. Foi por isso que se ordenou fosse para ali mais força; e, por essa razão mudámos de quartel, indo-se para o extinto Convento da Boa Hora, onde, sem incidente razoável, se continuou o serviço até ao fim da guerra.
Durante aquele tempo, os empregados do Arsenal do Exército deram um baile à rainha, a sra. D. Maria II, ao qual assistiu o imperador e a imperatriz.
Para esse baile tive eu um convite. Infelizmente, nesse dia, estava eu de ronda, de modo que, para poder ir, foi necessário pedir ao tenente Silva, em quem confiava, para me fazer a primeira ronda, por isso que, por aquele tempo, os moleiros de Monsanto, e mesmo outros paisanos, tinham por vezes tentado desfeitear os guardas, no que, felizmente, foram sempre mal sucedidos, porque, ou eram presos, ou apanhavam fortes «tundas».
Fui, portanto, às nove horas da noite, para o baile, o que foi interessantíssimo e magnifico na extensão da palavra: foi um dos melhores bailes a que tenho assistido e é certo que, se teve algum defeito, foi de ter sido excessivamente concorrido. Era interessante e tinha um não sei quê de marcial e de ocasião aquele baile: era um baile em tempo de guerra, tendo lugar entre armas. Naquela noite esteve no Arsenal do Exército, cujas salas estavam elegante e primorosamente decoradas, a elite da boa sociedade de Lisboa, tanto em formusura como em nobreza
As pessoas reais dançaram muito e sem grande etiqueta, o imperador mostrava-se alegre, e jovial quasi. Via-se que estava satisfeito e uma bela esperança o animava. Foi pena que a multidão de gente não permitisse que as pessoas reais se passeiassem desafogadamente pelas salas.
Em uma das contradanças, tive a honra de dançar perto de Sua Majestade, o imperador, o qual ao ver-me, disse, dirigindo-se a mim com vivacidade:
- Olá! Você por aqui? Então já dança, hein? Então está bom!
Eram três horas da manhã, retirei para ir fazer o resto da ronda. Montei a cavalo, dirigi-me à Ajuda, tendo ido pela Calçada da Tapada. E quando já ia chegando perto daí ouvi tiros. Apressei o cavalo quanto pude, e, chegando ao largo, acho a guarda do palácio, que era de doze homens e um sargento, formada na frente da igreja, com um piquete a fazer fogo para o lado do vestíbulo do palácio e a dali ser correspondido.
Conquanto a escuridão da noite, muito mais espessa debaixo das arcadas, não permitisse ver quem era, disse-me o sargento serem uns paisanos armados, que tinham forçado a sentinela a retirar, e que ele tinha mandado avançar aqueles quatro homens para, juntos à sentinela, fazerem fogo a quem avançasse. A guarda era de doze homens e tinha três sentinelas; logo tinha ali dez homens e, portanto, mandei ficar três e o cabo no corpo da guarda, indo um ao quartel dar parte do acontecido, para de lá vir mais força.
Apeei-me em seguida, mandei calar baionetas, aos sete homens e sargento e avançar para o vestíbulo do palácio, a passo de carga, levando as armas carregadas. Ao entrar no vestíbulo, vi, de feito, um magote de gente no largo interior do palácio, que nos fez três ou quatro tiros, saindo em seguida dali precipitadamente para fora, tomando a estrada que vai para Monsanto, dispersando-se depois em diversas direcções. Eu, não podendo desunir nem comprometer a rectaguarda, nem tão-pouco desamparar o palácio, tive de mandar fazer alto e esperar que viesse mais força. Infelizmente, quando ela chegou, era já quase dia claro: fui ainda ver se descobria alguma cousa mas foi trabalho baldado, porque já não vi ninguém.
Demorei-me ali até à hora de se render a guarda, que foi reforçada, e retirei-me para o quartel, tendo passado uma noite cheia de bem diversos contrastes, e estimando todavia bem ter chegado a tempo e não ter trocado o serviço.
A divisão belga, comandada pelo coronel Lecharlier, viera aquartelar-se para o Quartel da Boa Hora, e o meu coronel mandou-me ir cumprimentar aquele senhor e ficar às suas ordens. Lecharlier era na verdade um cavalheiro delicado, inteligente e sobretudo era um bravo militar.
Era aqui talvez o lugar de contar o que sei da campanha e jornada ao Algarve. Nada porém direi a tal respeito por duas razões. A primeira é porque tudo o que ali se passou achou-se perfeitamente narrado no folheto que tem o título «Campagne de Six Mois Dans le Royaune des Algarves», que o inteligente coronel Lecharlier publicou, tendo eu a honra de ter sido contemplado com um exemplar que ainda possuo. Eu não podia, decreto, dizer mais nem melhor. A segunda é porque tenho alongado mais do que devera estas histórias, e resta-me ainda muito que contar.


4. O Obelisco de Algalé

Seis meses depois da Batalha de Alcácer e dos acontecimentos de Algalé, deu-se a capitulação do exército absolutista. A 26 de Maio de 1834, foi assinada a Convenção de Évoramonte que pôs termo à Guerra Civil, onde ficou estabelecida a rendição incondicional imposta pelos Liberais aos derrotados e a saída permanente de D. Miguel, de Portugal e a sua proibição de regressar ao reino.
A História é escrita pelos vencedores. Um novo poder emergiu em Portugal; precisava de legitimar-se e consolidar-se. Precisava portanto dos seu heróis, dos seus mártires e... dos seus demónios.
O episódio de Algalé, que a propaganda liberal designaria daí em diante por «massacre de Algalé», foi bastante explorado e motivou apaixonadas discussões na imprensa de então mesmo décadas depois dos acontecimentos.
No local da execução fora mandada erguer uma coluna em pedra com cerca de três metros de altura onde seria inscrito um Epitáfio em forma de quadra, da autoria de António Feliciano de Castilho, um dos maiores vultos das letras portuguesas do século XIX. Para além do Epitáfio, logo abaixo seria inscrita a narração histórica dos acontecimentos bem como o nome dos oficiais executados.


 




















Aqui, de tua pátria defensores tragaram do martírio inteira a taça. Viandante leva as lágrimas e as flores. Lê só, dobra os joelhos, adora e passa.



Narração histórica do facto a que respeita o Epitáfio supra.



Vinte e nove Oficiais do exército da Rainha, a senhora D. Maria II, aprisionados pelas tropas do usurpador na batalha que em Alcácer do Sal se havia dado no dia 2 de Novembro de 1833, conduzidos para Campo Maior com 443 seus camaradas também prisioneiros sendo aleivosamente chamados à frente com o pretexto de mudarem daquela direcção para Beja a fim de se pouparem aos incómodos de uma mais extensa jornada foram neste lugar barbaramente fuzilados no dia 4 dos referidos mês e ano só por seis soldados mandada e presidida tão nefanda execução por Diogo José Vieira de Noronha, Corregedor de Beja pelo governo da usurpação e Inácio dos Montinhos, Alferes dos Realistas, pelo mesmo governo. Os nomes que destas infelizes vitimas se poderão saber, são os seguintes:



Alexandre Ferreira Bemfeito, Bento Bravo da Paz, Brás António Terro, Brás António Toicinho, Chambel, Francisco de Matos e Silva Paula Botelho, Francisco Manuel Vieira, Francisco José de Arnedo, Francisco Maria do Torno, João José de Andrade, Joaquim de Beja Capucho, João Maria de Oliveira, Lourenço Supardo, Manuel José Gomes, Martinho António de Mira, Manuel Joazoim Afonso, Pedro Maria Craruijol.

Como se pode ver, os nomes foram gravados por ordem alfabética. Na pedra porém apenas consta o nome de 17 condenados tendo entretanto os restantes nomes sumido devido à acção do tempo.
Para além das discussões que perduraram nas décadas seguintes, também houve romarias ao local. Vejamos a descrição que Bulhão Pato faz:

Na Primavera de 1860, partimos de Alcacer do Sal, com o meu velho amigo Antonio de Campos Valdez e mais alguns companheiros, para visitar a Ponte de Algalé. Era um dia de abril magnifico. Jornadeamos a cavallo, na melhor disposição de espirito.
 




Algalé é um valle, apertado e triste. A ribeira bordada de arvores mal medradas. Grandes bandadas de corvos crucitando. Algumas d’essas aves, tão vivazes como funestas, teriam repastado nos cadaveres d’aquelles vinte e seis infelizes, que foram atirados para um covão, uns sobre os outros, crivados de ballas, ensanguentados, quasi todos ainda palpitantes!

            O sol, pelas duas da tarde, n’um céu sem mancha, faiscava rutilante. Nos vallados sarçosos abriam os botões da piorneira e da amora; nos ramos dos choupos, e ás bandadas nos cardos, enflorados e hostis, as chamarizes, verdes e doiradas, esvoaçavam, no chilrear alvoraçado e alegre dos dias vernaes, azues e perfumados.
 




Todavia o valle continuava a ter um aspecto lugrube para mim. A nossa jovialidade esmoreceu. Approximámo-nos do covão e do monumento.








Aquella repugnante tragedia teve episódios medonhos. Fazem lembrar essas scenas as nossas carnificinas do Oriente. Os presos vinham a quatro e quatro. Os vinte e seis teriam de ser espingardeados só com seis fusis de pederneira, de que alguns falhavam fogo!

Calcule-se o tempo que durou o pavoroso morticínio!

Houve animos varonis, que não fizeram uma supplica. Outros esmoreceram, implorando!... chorando!... Um horror! E Noronha, com o seu coração de bronze, inabalavel, no meio da brutal e sangrenta matança!


O monumento levantado em Algalé é pequeno e sem mérito algum artístico. Ergueram-o junto da valla, onde foram sepultados os cadaveres.
N‘uma das faces estão inscriptos os nomes das victimas. N’outra face uma quadra.
Ao ermo do logar, á memoria do drama que alli se deu, como se casam estes soberbos versos!
Aqui da tua pátria os defensores
Tragaram do martyrio, inteira a taça!
Viandante, leva as lagrimas e as flores;
lê só! curva o joelho, adora e passa!

Lê só! – Concisão admirável!
O grande mestre da língua, o poeta do Amor e melancholia – Castilho, o luminoso cego, resumiu toda aquella tragedia n’esses quatro versos!



5. Três décadas depois, o combate na imprensa


A execução sumária dos oficiais liberais, que se haviam batido em Alcácer do Sal, às mãos dos seus algozes, tornou-se assunto nacional, foi muito badalado na época e fez sensação, motivando discussões acaloradas na imprensa e também no parlamento, como se viu.
Em 1867, trinta e quatro anos depois dos acontecimentos, estalou na imprensa forte polémica a despeito do general Lemos ter quebrado o silêncio dispondo-se a falar sobre os acontecimentos de Alcácer e Algalé e ter pretendido ainda atribuir a responsabilidade da execução ao ex-corregedor de Beja, Diogo de Noronha. Porque o fez, não se sabe. Se o fez julgando que por essa altura todos os intervenientes estariam mortos e em particular aqueles que foram condenados, também será abusivo tentar responder. O que é facto é que escreveu na imprensa a sua versão dos acontecimentos. Francisco José de Almeida teve conhecimento e esteve na génese da resposta ao ex-general. Em «Apontamentos da Vida de um Homem obscuro» também um capítulo foi dedicado ao assunto.



DESMENTINDO O GENERAL LEMOS – CARTAS SOBRE O COMBATE DE ALCÁCER DO SAL

Tenho contado seguida e cronologicamente os factos; abro porém aqui um parêntesis, antes de passar adiante, para narrar um facto insólito e audaz que teve lugar em 1867, praticado pelo famigerado e hipócrita general Lemos, que julgando (nos factos de Alcácer) ter sido completamente obedecida a ordem de assassínio, imaginou por isso escrever a esse respeito o que muito bem lhe parecesse sem o perigo de ser desmentido. Enganou-se, felizmente para mim e para o meu nobre amigo o ilmo. Sr. António José Pacheco.
O sr. Lemos que, depois de ser o que todos sabem e eu não quero repetir, fez-se muito beato para entrar no concurso a casamento com a rica viúva de João Pigott, que constava tinha declarado que ela só daria a sua mão e a sua posse de facto e de direito a quem provasse ser o mais aferrado vassalo do sr. D. Miguel, e o mais alentado ratão de sacristia! Foi preferido o sr. Lemos… e casou, começando, por isso, dali avante a viver na abundancia e na ociosidade.
Ora, como a ociosidade é a mãe de todos os vícios e dos maus pensamentos, foi talvez por isso que o «chibo nojento» lhe meteu na cabeça (salvo seja) o pensamento de escrever para o respeitável público, apresentando o «precioso» fruto do seu saber e das suas lucubrações. Escreveu, escreveu, e ninguém lhe respondia, o que julgo fez capacitar o «religioso» escritor que escrevia bem e sem resposta. Eu tenho, porém, a maldade de pensar que era porque ninguém fazia caso do maçador escritor. É verdade que sou suspeito e, por isso, Deus me perdoe se faço juízos temerários.
Todavia, fosse como fosse, o que é certo é que, em 1867, deitou os tentáculos de fora e aproveitou-se demasiadamente da liberdade de imprensa que os liberais pedreiros livres lhe davam. Aquela erupção da matéria, a que o impeliu o «bode tinhoso», foi uma infelicidade para o audaz e hipócrita escritor. Surgiu-lhe em frente um valente campeão, que não o deixava tomar fôlego nem descanso; era o meu nobre e honrado amigo, o digno par do reino Francisco Simões Margiochi, que, em engraçados e vigorosos artigos, no «Jornal do Commércio», desmentiu, desmascarou, caçoou e confundiu o tal hipócrita rabiscador. E, atrás do sr. Margiochi, estava um «espectro»: era este seu criado, que fornecia ao digno par os apontamentos que S. Exa. Precisava.
A ideia, porém, de que, em Alcácer, tinha mandado matar tudo nunca o abandonava… Em uma das suas visitas ao Convento da Estrela, onde eu o apanhei arranhando os pés aos santos a que não chegava, para depois beijar os dedinhos bentos, por lhes terem tocado, teve talvez uma inspiração do «anjo» que se encontra aos pés de S. Miguel, a quem por desgraça arranhara também. E o resultado foi escrever falando de Alcácer, em cujo artigo insultava a memória das infelizes vitimas da sua ferocidade - a polemica começa com a intervenção do general Lemos em «A Nação», e desencadeou respostas dos liberais no «Jornal do Commércio».
Apareceu então o «espectro» - est hic – e escreveu, assinou e reconheceu um artigo, que mandou para o «Jornal do Commércio», estampando na fronte do falsário militar a palavra mentira!
Mas, ó desgraça! Lá surge de Setúbal, outro «espectro» que lhe pespega o mesmo ferrete! Era de mais: «Com os mortos não se brinca», e muito especialmente quem é supersticioso! Portanto quebrou a pena de ferro molhada em fel, com que escrevia, e calou-se… para não mais falar!
No que escrevera Lemos acerca dos fuzilamentos parecia querer deitar as culpas ao sr. Noronha. Procurou-me então este senhor e mostrou-me o ofício em que Lemos lhe «ordenava» que «matasse tudo», e pediu-me para que lhe passasse um atestado do que se tinha passado comigo.
Foi também por esse tempo que o exmo. sr. visconde de Fonte Arcada, meu honrado amigo e liberal convicto, independente e da têmpera daqueles de antes quebrar que torcer, fez na Câmara uma arguição com referencia ao sr. Noronha. Era por isso do meu dever não dar documento algum ao sr. Noronha, sem disso prevenir primeiro o sr. visconde, a fim de não parecer, pela ocasião, que eu tinha a vã presunção de me tornar paladino do sr. Noronha, e atacar S. Exa. na sua acusação.
Procurei então o sr. Visconde e contei-lhe fielmente o que se passava. S. Exa., com a generosidade própria do seu honrado carácter, agradeceu a minha atenção e disse-me:
- De modo algum me oponho a que passe a declaração que quiser.
Narrei, portanto, um episódio notável com relação aos acontecimentos de Alcácer e do sr. Lemos, episódio que deu lugar a que eu tivesse o prazer de saber que ainda vivia o sr. Pacheco e a que, entre nós, houvesse uma correspondência, que justifica indirectamente os factos. Assim como também deu lugar a outra correspondência com o sr. Noronha, que igualmente os comprova. É por isso, e por ser honrosa àqueles cavalheiros, que eu, com o devido respeito, dou aqui publicidade à referida correspondência, que passo a transcrever:

Ontem vi no «Jornal do Commércio» uma carta, na qual V. Exa. me honra com as mais ligeiras expressões. Cumpre-me por isso agradecer tão cavalheira como distinta consideração, fazendo justiça ao meu carácter e à verdade das minhas asserções e defendendo a memória e honra dos nossos infelizes camaradas assassinados em Algalé.
Quando escrevi, não duvidei assinar-me e atacar de frente, desmentindo o malvado que os mandou assassinar. Disse a verdade do que presenciei até à minha evasão e tive, por isso, o prazer de ver corroborada e confirmada a minha carta por V. Exa. e o que é mais notável é que, sem saber nada um do outro, escrevíamos ao mesmo tempo a mesma história e a mesma defesa, facto expressivo, que tem feito sensação em um e outro partido por princípios bem opostos.
O indigno que, abusando da liberdade que goza, se atreve a insultar-nos a nós e à memória de nosso honrados e infelizes camaradas, não julgou decerto que nós existiríamos, pensou que tinha aniquilado todas as testemunhas de um indigno proceder. Felizmente enganou-se. Vivemos e fomos prontos, unidos e leais, em o confundir e desmentir. Creia V. Exa. que posto eu tivesse a fortuna de ser o primeiro a atacar ostensivamente, conquanto as coincidências, tornaram-nos solidários, e hoje nenhum de nós é primeiro, estamos juntos e unidos como na hora da desgraça. Conto com V. Exa. como rogo V. Exa. conte comigo para castigarmos a audácia infame dos nossos inimigos.
Tinha feito uma carta mais extensa e em que contava como V. Exa., a história dos acontecimentos de 3 de Novembro e seguintes, até ao momento em que nos separámos, história que V. Exa. continua. Fui porém obrigado a diminuir e extractar a minha carta em atenção à extensão do artigo de que ela devia fazer parte.
Como porem ainda temos se for necessário muito mais a contar e a provar com testemunhas felizmente vivas, guardarei para nova provocação se a tanto se atreverem.
Digne-se pois V. Exa. aceitar os sinceros protestos de estima e consideração em que tenho a honra de assinar-me. De V. Exa. amigo e camarada muito venerador (assinado) Francisco José de Almeida


Ilmo. e Exmo. Amigo Camarada sr. Almeida – Não tenho respondido à muito estimável e atenciosa carta que V. Exa. me dirigiu com data de 21 de corrente mês, como me cumpria, por ter estado ausente desta cidade por uns dias.
V. Exa. não pode fazer ideia da alegria e prazer que senti quando li a sua correspondência no «Jornal do Commércio», e por duas razões: a primeira por ver que V. Exa., ainda existia, pois que há anos não tinha o prazer de o ver ou encontrar em Lisboa; e a segunda por ver que V. Exa. com todo o cavalheirismo, próprio de um homem de bem e liberal, não hesitou um momento em relatar franca e lealmente tudo quanto acontecera em Alcácer e Porto de Rei e desmentindo francamente o malvado, que ao fim de trinta e três anos lhe veio à ideia vir revolver as cinzas dos nossos amigos e irmãos camaradas assassinados barbara e tumultuariamente em Algalé, e insultar-nos tão vilmente a todos (mortos e vivos).
Quando li no «Jornal do Commércio» a sua correspondência já tinha fechado a minha para ir para o correio: tive de adicionar-lhe o P.S. como viu. Fomos ambos fieis relatores da pura verdade sem sabermos um dos outro e muito distantes. Contudo, bem iguais no depoimento dos factos acontecidos. É prazer que colhe quem sempre fala a pura verdade, despida de espirito de partido.
Suponho que o sr. Lemos reflexionará bem na imprudência que cometeu e terá o bom senso de não continuar a puxar pelo fio desta triste meada que por honra e dever seu lhe não devia ter tocado, mas se o contrario acontecer conte V. Exa. com a minha débil cooperação. Juntos fomos vítimas, juntos é de nossa honra defender nossos irmãos, mártires e camaradas.
Aproveito esta ocasião de pedir a V. Exa. de aceitar os meus sinceros protestos de consideração e amizade com que tenho a honra de me assinar. De V. Exa. amigo e camarada, muito venerador (assinado) António José Pacheco.


Declaro que sendo alferes do 4º Batalhão Móvel de Lisboa em 1833 fiz parte do contingente que marchou da Torre de S. Vicente em Belém para Alcácer do Sal, achando-me por isso ali no dia 2 de Novembro do mesmo ano. Entrei portanto na acção que teve lugar no mesmo dia como comandante de um reduto no sítio de Porto do Lama, e pelas ocorrências da acção fiquei prisioneiro, e em cujo estado me dirigi ao Ilmo. sr. Diogo José Vieira de Noronha que comandava uma força do exército inimigo.
E conquanto não tivesse conhecimento anterior com aquele cavalheiro, sabia contudo a consideração que gozava no seu partido e que era amigo de um amigo meu. E, por isso, invocando aquela amizade animei-me a expor a S. Sª que a sorte da guerra se decidira contra mim, e que se ela se tivesse decidido contra S. Sª e estivesse ao meu alcance fazer-lhe algum bem que lhe dava a minha palavra de honra que o faria. E por isso lhe rogava, que ele, na qualidade de comandante da força a quem tinham sido entregues os prisioneiros, e como cavalheiro, minorasse a minha sorte no que lhe fosse possível.
Tendo aquele senhor atendido a minha rogativa e tendo dó do meu estado, por me terem os soldados inimigos tirado tudo o que possuía, incluindo o fato, levou-me do celeiro da vila onde estava com outros prisioneiros, e levou-me para a casa do carcereiro, onde me deu 1.440 réis em dinheiro e mandou-me dar uma manta.
No dia seguinte que marcharam os prisioneiros, favoreceu-me na jornada, e quando chegámos a Porto de Rei, veio o mesmo senhor ter comigo à casa onde nos recolhemos, mandando-me que o acompanhasse e levou-me para a casa onde pernoitou e dizendo-me que, tendo tomado interesse por mim, por isso me proporcionava os meios de me evadir, ordenando que viesse para Setúbal, mas que viesse sempre duas léguas longe da vila de Alcácer e para cujo fim me entregou a mim e a outro sujeito que também salvou (chamado Silva), que era de Setúbal, e soldado do Batalhão do Alentejo, a um guia que nos conduzisse e a quem pagou. Separando-nos portanto no dia 4, e chegando a Setúbal no dia 7, me apresentei ao Ilmo. e Exmo. sr. Manuel Filipe de Moura Cabral, que era então provedor daquela vila.
O que por ser tudo verdade e pararem os documentos em meu poder passei a presente declaração que juro se necessário for. Lisboa 20 de Abril de 1867 (assinado) Francisco José de Almeida.


Ilmo. sr. – Envio a V. Sª a inclusa declaração da qual poderá fazer o uso que quiser, sentindo eu, que, como militar, não possa, sem que preceda despacho que assim o determine pelo Ministério da Guerra, atestar mais extensamente (como desejava) a este respeito, e por isso me limito a uma declaração das circunstâncias que me dizem respeito.
 Contudo parece-me que V. Sª faria bem em requerer por aquele Ministério, para que eu como oficial que fiz parte daquela divisão, que entrou naquela acção, atestasse os acontecimentos daquele dia e suas consequências. Pois que tal atestado, tomando um carácter oficial, dava-me lugar para poder contar as circunstâncias que me sendo alheias, abonariam o cavalheirismo de V. Sª. E muito me folgaria em dar-lhe publicidade por um documento autentico que perderia assim toda a ideia de graciosidade, podendo então aparecer, sem que se lhe pudessem fazer comentos (aliás sofísticos), que V. Sª sabe, a que tudo está sujeito, tal é o estado de divisão em que nos achamos.
Em conformidade do que convencionámos falei ao meu amigo visconde da Fonte Arcada acerca da declaração que me tinha exigido, e a qual estava na firme resolução de fazer, não só porque o devia como cavalheiro, mas também porque a minha gratidão a isso obrigava.
S. Exa. respondeu-me que assim o devia fazer, e que por modo algum se opunha a isso. Mesmo porque a sua acusação não tinha sido feita pessoalmente a V. Sª, contra quem nada tinha particularmente, mas sim uma acusação ao Governo, como se via na sua fala. Em vista, pois, do expendido, V. Sª me ordenará o que lhe convier. Aproveito esta ocasião para de novo certificar quanto sou grato aos benefícios que de V. Sª recebi e que fico pronto para mostrar que sou como devo. De V. Sª atento venerador e criado, muito obrigado. Lisboa 21 de Abril de 1867 (assinado) Francisco José de Almeida.

O resultado, portanto, dos artigos foi o que eu esperava. O sr. Lemos não tornou a dizer palavra. E eu, como o meu fim não era acintoso, fiz outro tanto. Quanto, porém, ao sr. Noronha prontifiquei-me para tudo em que lhe pudesse ser útil para esclarecer a verdade. Mas não foi preciso nada, porque o sr. Lemos voltou com a palavra ao bucho.
Passado tempo morreu o sr. Lemos e pouco depois teve igual fim o sr. Noronha. A este entendi eu ser do meu dever dar um testemunho publico de que não me esquecera dos benefícios que me fizera, e para isso mandei dizer uma missa na Igreja de Santa Justa, que era a sua freguesia.
Fiz o anúncio competente, convidei a família do finado e todos os seus amigos, e especialmente o sr. Fernandes, pela razão não só de ter sido ele testemunha dos factos que me levavam a praticar aquele acto de gratidão, mas também porque de algum modo sou obrigado ao sr. Fernandes e teria grande prazer em o encontrar, conquanto eu julgue que não mereceria àquele senhor igual sentimento, por isso que nunca me procurou; obrigando-me de certo modo a pensar que, decerto, não foi informado de que eu cumprira fiel e pontualmente o recado que me deu para sua mãe e seu pai. Senti por isso em extremo que S. Sª não honrasse aquele acto com a sua presença, como penso devia fazer, por mais de um motivo.
Eu tinha tido a delicadeza de que fosse celebrante um sacerdote respeitável, e, além disso, que fosse em ideias políticas da mesma comunhão que o sr. Noronha. Lembrei-me por isso do cónego Ornelas, que de bom grado se prontificou a anuir ao meu convite, e que, por cúmulo da bizarria e desinteresse, não quis receber a esmola pela missa.
Foi notável! Nem um só amigo político do sr. Noronha (e mesmo da sua família poucos membros) compareceu e assistiu àquele acto!
Felizmente eu era então presidente da direcção da Associação dos Veteranos da Liberdade, e os meus bons amigos e camaradas compareceram todos ali, em obséquio a mim. Se não fossem eles, ver-me-ia só! Se tal procedimento, por parte dos correligionários do defunto foi motivado por algum ressentimento que dele tinham, acho a acção pouco nobre, e menos religiosa. Se foi por eu não pertencer ao seu grupo político, então parece-me (com o devido respeito), pouco generoso e pequenino tal procedimento.
Deu-se, por consequência, um caso novo e que, a falar verdade, atestou mais uma vez o pensar humano e generoso do partido liberal, que nunca é ferrenho nem intransigente.
Era realmente edificante ver estar assistindo a uma missa por alma dum exaltado miguelista uma porção de liberais, de tochas acesas nas mãos. Liberais, condecorados por se terem batido contra aquele partido, e o que é ainda mais frisante e notável é que alguns deles tinham sido feitos prisioneiros pelo defunto.
Agradeço, por isso, de todo o meu coração aquela prova de deferência para comigo e a louvável generosidade política que praticaram aqueles senhores meus amigos e dignos camaradas.


6. Retrato de alguns protagonistas

Todas as guerras, e esta não foi excepção, é feita por homens. Muitas são as vezes em que os feitos ocupam o lugar central sendo raro abordar a dimensão humana o que é estranho pois esta está sempre subjacente. Naturalmente que os testemunhos serão sempre subjectivos dependendo da simpatia pessoal e ou política das fontes. Compete-nos no entanto ouvi-los, transcrevendo aqui o retrato de alguns intervenientes.


6.1. Alexandre Ferreira Bemfeito

De acordo com a nossa fonte, Alexandre Ferreira Bemfeito, um dos oficiais fuzilados em Algalé,  será possivelmente o mesmo que em 1825 foi promovido a alferes da Companhia de Granadeiros no Regimento de Milícias de Santarém, e em meados do mesmo século morava em Lisboa na Rua de Buenos Aires 61, 2º, supostamente ainda parente de José Maria Ferreira Bemfeito, também aí morador nesta cidade e de Alexandre Augusto Ferreira Bemfeito.


6.2. Diogo José Vieira de Noronha

O corregedor de Beja, Diogo José Vieira de Noronha, a quem foi entregue o comando da escolta dos prisioneiros feitos em Alcácer do Sal e a quem foi entregue a ordem de execução, à qual ele presidiu, pertenceu ao corpo académico miguelista que fez parte da divisão da vanguarda do exército de operações no ano de 1828. Era filho de Henrique José Vieira de Guimarães e estava matriculado no 5.° ano de leis, na Universidade de Coimbra. Em 18 de Julho de 1833, como corregedor de Beja, empossou de novo a Câmara de Alvalade no Campo de Ourique, que tinha sido deposta quando as tropas liberais comandadas pelo Duque da Terceira passaram por aquela localidade e depuseram a câmara então formada por elementos miguelistas.


Sobre Diogo de Noronha escreveu Bulhão Pato o seguinte:


Tem um aspecto sombrio aquelle valle de Algalé, onde se deu o monstruoso attentado! Eu conheci o homem que executou a nefanda tragedia, com quanto o mandador houvesse sido um miserável, curto de entendimento e perverso de condição, chamado general Lemos.
            Diogo José Vieira de Noronha – o famoso corregedor de Beja – era de estatura avantajada, pescoço taurino, moreno, braços e peito com a musculatura de um athleta. Os cabellos dos pulsos e costas das mãos pungiam como cerdas de javali!
 Bigode farto e negro. Olhos pretos como amoras, pestanas longas; olhar torvo. A voz forte mas com um som baço, que impressionava desagradavelmente. Maneiras cortezes. Era bravo com as armas e tinha um coração de tigre.
 Uma vez, no Campo Grande, na casa de pasto do Escoveiro – a mais fina coisinha portugueza de todo o paiz – depois de jantar, a propósito de uns artigos que haviam aparecido nos jornaes, o próprio Noronha fallou no caso de Algalé.
Confirmou o que, passado tempos, escreveu Francisco José de Almeida, nos Apontamentos da vida de um homem obscuro.
 - O Lemos quer deitar as culpas para mim; mas, se elle vier á imprensa, publico-lhe a ordem que tenho do seu próprio punho.
 - Ordens d’essas não se cumprem, respondeu alguém sêccamente.
 - Eu tinha de me vingar dos malvados de Beja, continuou elle.
A physionomia assumiu-lhe um aspecto feroz, e, arregaçando os beiços, mostrou a enorme cicatriz, que um tiro de zagalotes, á queima roupa, deixara no interior d’aquella bocca, que por fóra estava lívida ainda do rancor da vindicta.
  - Hoje em dia não se faz idéa do que foram essas coisas!
Noronha referia-se à scena de Beja, em que os liberaes romperam com elle, e que o teriam esquartejado, se não fôra o seu grande valor e desmesurada força.
O antigo corregedor, durante o café, poucas palavras proferiu, e ficou taciturno.
Creio que havia alli, n’aquelle peito, uma fibra, que não estava completamente paralysada ao vibrar do remorso.




O ex-corregedor acompanhou D. Miguel no seu doloroso exilio. Em Roma, e durante a emigração, teve dias apertados e amargos.
 Depois appareceu, ainda muito encolhido, por Lisboa. Se fosse a Beja, embora nos últimos tempos de vida, faziam-o a pedaços! Por um sinistro, depois do seu regresso a Portugal, tiveram que lhe amputar o medio e annullar da mão direita. Não quis tomar chloroformio, e não soltou um gemido; que m’o disse a mim o seu operador e meu amigo, o dr. Ignacio de Avellar!
Tinha nervos de um homem!
 Que pena ser tão cruel.

O autor de «Memórias - Homens Políticos» recorre ainda a uma situação que envolveu Noronha como exemplo demonstrativo da sua personalidade.



O grande animo do corregedor de Beja soçobrou, uma vez, debaixo de uma apostrophe! Mas foi tremenda – essa apostrophe!
Dava-se um baile para beneficiar alguns realistas, que estavam em más circumstancias, homens respeitabilíssimos, como havia tantos, e há ainda, nos correligionários da Nação.
A festa era promovida pelos amigos e afins do principe proscripto; mas todas as côres politicas concorreram gostosamente a ella.
 Diogo de Noronha assistia ao baile.
Na casa do fumo, n’um grupo de pessoas, o corregedor teve a imprudência de soltar algumas palavras desagradáveis, a propósito dos seus adversários políticos. Então um homem tão forte e tão valente como elle, mas com uma nobre alma, em phrase polida, porém severa, censurou as expressões de Diogo de Noronha. Este homem era o meu querido amigo Jacintho Augusto de Sant’Anna e Vasconcellos, visconde das Nogueiras, hoje nosso Ministro nos Estados Unidos.
O antigo corregedor de Beja disse-lhe com desdenhosa altivez:
 - Sabe com quem falla?
 Sant’Anna e Vasconcellos, com a sua bella estatura, levemente pallido, o bigode pequeno e petulante arripiado, deitando para trás a banda da casaca azul com botões amarellos, e batendo no peito ancho, onde pulsava um coração juvenil, intrépido e generoso, respondeu:
- Sei com quem fallo, sei! É com o façanhoso corregedor de Beja, o grande assassino da Ponte de Algalé!
 Fez-se um silencio mortal. Noronha ficou como fulminado. D’alli a pouco desapareceu do baile.
Que tormenta de cólera não iria rebramindo no abysmo d’aquelle truculento caracter!


6.3. Francisco José de Almeida

Nasceu em 1814. Tinha 19 anos quando participou na Batalha de Alcácer do Sal. Liberal e maçon, era alferes do exército constitucional à data dos factos aqui em estudo.


6.4. Francisco de Matos e Silva de Paula Botelho e Moraes Sarmento

Francisco de Matos e Silva de Paula Botelho e Moraes Sarmento nasceu em Setúbal, freguesia de São Sebastião a 2 de Abril de 1786 e morreu fuzilado pelos miguelistas, em Algalé, freguesia do Torrão, concelho de Alcácer do Sal no dia 4 de Novembro de 1833. Era filho de Heytor Botelho de Moraes Sarmento, 4º Guarda-mor do Sal de Setúbal, Cavaleiro da Ordem de Cristo, Cavaleiro da Ordem de Santiago, Ministro da Junta da Repartição do Sal, Vereador de Setúbal e Almotacé de Setúbal, Familiar do Santo Ofício, por carta de 8 de Agosto de 1760, Senhor da Quinta dos Machados, da Quinta da Bombarralha, da Quinta do Guarda-mor, da Quinta de Espim, etc, e de sua mulher D. Maria Xavier de Faria e Sousa.
Casou em Setúbal, na freguesia de São Sebastião a 16 de Fevereiro de.1816 com D. Ana Rita da Horta de Sousa Tavares, filha de Luís José Godinho de Sousa Tavares e de D. Maria Inácia Rita da Horta Moniz de Carvalho e tiveram 5 filhos.



A título de curiosidade, trascreve-se a certidão de óbito de Francisco de Matos e Silva de Paula Botelho e Moraes Sarmento.



Certidão de Óbito de FRANCISCO DE PAULA BOTELHO DE MORAES SARMENTO

Aos quatro dias do mês de Julho de mil oitocentos e trinta e quatro, me foi apresentado um mandado para se abrir o assento de óbito de FRANCISCO DE PAULA BOTELHO, casado que foi com Dona Ana Rita da Horta, paroquiano que foi desta freguesia de São Sebastião de Setúbal, o qual faleceu junto da Ponte de Algalé, onde foi fuzilado pelos rebeldes de quem tinha ficado prisioneiro na Vila de Alcácer do Sal, em o dia dois de Novembro de mil oitocentos e trinta e três, como justas ficou perante o Reverendo Vigário Geral d’este Arcediago, e lhe abro este assento em virtude do dito mandado, o qual é de forma e teor, o seguinte:---------------------------------------------------------------------

Manuel da Gama Xavier, Professo na Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, Prior da Freguesia de São Sebastião d’esta Notável Vila de Setúbal e na mesma e seu Arcediago Vigário Geral por Sua Majestade Imperial, O Duque de Bragança, Regente em nome da Rainha, que Deus Guarde = Mando ao Reverendo Pároco da Freguesia de São Sebastião d’esta Vila, que siga este meu Mandado, hindo por mim assinado, em seu cumprimento abra o assento no livro dos Óbitos da sua Freguesia, do falecimento de FRANCISCO DE PAULA BOTELHO, que foi casado com Dona Ana Rita da Horta, o qual no tempo de seu falecimento era paroquiano d’essa sua freguesia, e faleceu junto da Ponte de Algalé, em um dos dias do mês de Novembro de mil oitocentos e trinta e três, tendo sido no dia dois do mesmo mês prisioneiro dos rebeldes, em a Vila de Alcácer. O que tudo foi perante mim justificado, com testemunhas de crédito, cuja Justificação julguei por boa, segundo se mostra da minha Sentença proferida nos Autos, que à cerca do mesmo objecto se processarão perante mim e ficão no Cartório do Escrivão que este passou, o qual sendo-lhe apresentado o cumprirá.------------------


Dado em Setúbal aos três de Julho de mil oitocentos e trinta e quatro, sob o meu signal e valla sem selo. E eu Frederico Amâncio Pereira da Silva o escrevi = Manuel da Gama Xavier = Mandado dirigido ao Reverendo Pároco da Freguesia de São Sebastião, para o mesmo que o fim se reclama. ------------------------------------------------------------
E não se continha mais com o dito Mandado, que fica no arquivo d’esta Igreja, e que bem e fielmente transladeis.------- Setúbal 4 de Julho de 1834



6.5. José António de Azevedo Lemos 


Latinista e militar português, um dos mais prestigiados oficiais superiores, foi um dos principais comandantes das tropas absolutistas, sendo o seu último comandante-em-chefe e foi nessa condição que foi forçado a assinar a Convenção de Évoramonte na qualidade de representante do partido miguelista.
Nasceu em Vila do Conde a 1 de Outubro de 1786 e morreu em Lisboa a 16 de Fevereiro de 1870.
Era filho de António de Azevedo Lemos e Ana Maria Antunes, um casal de humildes lavradores, sendo o primogénito de muitos irmãos.
Foi seminarista na cidade do Porto e noviço no Convento do Carmo de Santarém, estudou Latim, Francês e Filosofia.
Com a Primeira Invasão Francesa alistou-se como voluntário no Regimento da Cavalaria n.º 10 para combater os franceses sendo empregue no Estado-Maior.
Feita a paz em 1815, partiu para o Brasil com Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro, o Conde de Barbacena, onde combateu no Paraguai e Rio Grande.
Regressado a Portugal, em 1823 foi nomeado comandante da Guarda e da Polícia do Porto.
Já em 1828, após a chegada de D. Miguel ao trono, é promovido a coronel e encarregado do comando do Regimento de Infantaria n.º 1. Liderou vários combates, tomou parte no Cerco do Porto e na expedição à ilha Terceira e à ilha da Madeira, tendo comandado as tropas que desembarcaram na então vila da Praia (Açores) em 1829, sendo derrotado. A fidelidade do general e as suas capacidades de comando desde logo despertaram a atenção de D. Miguel, que passou a ter em Lemos um dos seus mais próximos homens de confiança e um verdadeiro amigo.
Em 1832, foi nomeado marechal-de-campo, por D. Miguel I, como recompensa da sua liderança determinada do exército legitimista. Obteve um importante triunfo sobre os constitucionalistas em Novembro de 1833, na Batalha de Alcácer do Sal.
Após os sucessos no Alentejo, o seu prestígio levou D. Miguel a chamá-lo a Santarém, onde se encontrava a sua corte, e a nomeá-lo Comandante-em-chefe do Exército (cargo que desempenharia até ao final da guerra).
A 18 de Fevereiro de 1834, junto a Santarém, as suas tropas foram derrotadas pelas forças do Marechal Saldanha, na Batalha de Almoster, confronto que terá sido o canto do cisne da facção miguelista no conflito. Pouco depois, os legitimistas sofrem nova derrota na Batalha da Asseiceira e decidem retirar de Santarém.
Após a derrota na Asseiceira, foi confiada ao General Lemos a importante missão de negociar a Convenção de Évoramonte com os Liberais. Firmado o tratado, José António Lemos acompanhou o seu soberano e grande amigo pessoal no exílio. Permaneceu em Turim até 1849, ano em que regressou a Lisboa.
Regressado a Portugal, fixou-se em Lisboa onde casou com D. Rita Ferreira Pigott, senhora de grande fortuna, viúva do general João Pigott.
 Faleceu a 16 de Fevereiro de 1870, tendo sido o seu corpo sepultado no Cemitério Ocidental de Lisboa.


7. Epílogo

 Este humilde trabalho não é nem tem a pretensão de ser um trabalho académico tendo sido escrito por um leigo na área - embora apaixonado pela História de Portugal. Pretendeu-se tão só e apenas contar uma história e dar a conhecer um facto desconhecido da maioria dos portugueses e dos habitantes do concelho de Alcácer do Sal, em particular.
Infelizmente nunca o município fez por lembrar o acontecimento, cremos nós com temerária convicção, que por absoluto desconhecimento. Nem um trabalho, nem uma conferência onde a Guerra Civil fosse o tema e na qual se enquadrasse o 2 e o 4 de Novembro de 1833. Nem sequer uma placa a indicar o local da execução (e da batalha) e a classificação do monumento como de interesse municipal bem como uma recriação histórica. Nada de nada! Infelizmente também no que à história concerne, verifica-se uma esterilidade absoluta. Também é objectivo deste trabalho sensibilizar quem de direito.
O monumento evocativo encontra-se actualmente em terreno privado, vedado ao público por arame farpado e o portão está fechado a cadeado, o que dificulta em muito a sua visita. Quem estiver interessado, deverá pedir autorização do acesso à administração da Herdade de Algalé.

Completaram-se, em Novembro do ano passado, cento e oitenta anos sobre a Batalha de Alcácer do Sal e a execução em Algalé. A grande distância temporal permite-nos abordar o tema e observar os eventos aqui narrados completamente despidos de paixões arrebatadoras e de forma imparcial, ao invés do que sucedeu na época como aliás se pode constatar dos testemunhos de quem vivenciou na primeira pessoa todo o acontecimento, nomeadamente Francisco José de Almeida - claramente parcial.
A História é escrita pelos vencedores, já se disse. O Liberalismo venceu e precisava de legitimar-se e de consolidar-se pelo precisava dos seus heróis, dos seus mártires e dos seus demónios. Os episódios de Alcácer do Sal e Algalé foram exacerbados e explorados do ponto de vista propagandístico. Os acontecimentos de Panóias foram convenientemente esquecidos.
Sobretudo dois homens - o general António José de Azevedo Lemos, que ordenou o fuzilamento, e o corregedor de Beja, Diogo José Vieira de Noronha, que executou - foram os vilões da história e se é certo que relativamente a Noronha houve de certa forma alguma complacência, o general Lemos foi completamente diabolizado. Na verdade, na época, aos desertores, e que para cúmulo, pegavam em armas contra o exército, enfrentavam a pena de morte por fuzilamento sendo que ambas as facções consideravam-se o poder legítimo e a outra parte como uma facção rebelde. A juntar a isso, a retaliação pelos acontecimentos de Panóias, três meses antes, pelo que se o general Lemos não teve dúvidas em ordenar o fuzilamento de Algalé, Noronha não se fez rogado, não se escusou a executar a ordem sem um momento de hesitação. «Ordens dessas não se cumprem» terá alguém dito, de acordo com Bulhão Pato, a Diogo de Noronha. A sua justificação, a sede de vingança dos «malvados de Beja». Sobretudo a sua questão pessoal foi mais forte e sobrepôs-se. A Guerra Civil foi fecunda em acontecimentos extremos de grande dureza e crueldade, escrevendo-se nesse período algumas das páginas mais negras das nossa história contemporânea, história escrita com o sangue da intolerância política.
Perpassam sobretudo e compreensivelmente através da pena de Francisco José de Almeida a mágoa, o rancor e a animosidade mordaz e sarcástica contra o general Lemos pois este permitiu que na sua presença Almeida fosse humilhado, maltratado e desonrado, sentimentos que mais se acentuaram quando este tomou conhecimento do desfecho em Algalé e do fim que os seus camaradas de armas tiveram. O cúmulo do sarcasmo saído da sua pena foi quando este refere que «S. Exa. foi tão amável para comigo, deixando que na sua presença me roubassem, despissem e esbofeteassem, e depois dispôs tão bárbara como ilegalmente da minha vida». Ainda assim nunca o ódio ou a sede de vingança se apoderaram de si contentando-se apenas em ridicularizar o general. A este propósito referiu:
«Tive e desprezei uma ocasião magnífica de me vingar de S. Exa. Tinha ele uma casa ou quinta, ali para o lado do Sobralinho, e, indo eu um dia a cavalo, encontrei o senhor Lemos em uma estreita azinhaga, a pé, de casaca, comenda ao peito e varinha na mão. A falar verdade, a ocasião era de molde ao menos para o pisar, mas nem isso fiz. Apenas olhei para ele e me ri».
Contudo devemos fazer justiça. O general António José de Azevedo Lemos foi um insigne latinista e um militar de mérito e créditos firmados. Era aliás um dos melhores oficiais superiores portugueses do seu tempo e a prová-lo, a confiança que D. Miguel depositou em si e o facto de, finda a guerra, ter sido convidado pelos próprios Liberais, para continuar ao serviço do exército português. O general Lemos manteve-se contudo fiel ás suas convicções e recusou o convite.



Bibliografia e Webgrafia

Almeida, Francisco José; Apontamentos da Vida de um Homem Obscuro, cap. 31 a 35; A Regra do Jogo, edições

Bulhão Pato, Raimundo A.; Memórias - Homens Políticos; Tomo II

Geneall - Portal de Genealogia: http://geneall.net/pt/

Wikipedia: www.wikipedia.org

www.youtube.com

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