domingo, abril 26, 2015

O reconhecimento involuntário de um fracasso total

Podemos criticar amiúde o poder político e em particular o poder autárquico por aquilo que fez (ou deixou de fazer), pelas suas contradições, pela desonestidade intelectual ou política, pela propaganda excessiva, etc. Podemos, diria mesmo mais: devemos. Mas também devemos ressalvar o que de positivo se faz e devemos mesmo louvar quando este, conscientemente ou mesmo inconscientemente - penso que inconscientemente por não terem avaliado todas as consequências e corolários do que ali escreveram - tem uma atitude de grande honestidade política e sobretudo intelectual.
Vem isto a propósito da exposição evocativa dos 50 anos do grande incêndio que devastou o edifício da Câmara Municipal de Alcácer do Sal. Exposição louvável esta pois como se costuma dizer, uma entidade sem memória é uma entidade sem passado. Louvável ainda porque recordou todos os protagonistas, alguns ainda vivos, que cometeram actos de verdadeiro heroísmo tais como Carlos Parreira Vicente (o Pio), modesto engraxador se bem que não chegamos a saber se este foi de alguma forma agraciado pelo município pois não foi feita referência a tal na brochura que a câmara elaborou pese embora o facto de que, através da mesma publicação, ficamos a saber que o então Presidente da República, Américo Thomaz (o corta-fitas) esse sim e se calhar com menos merecimento, foi agraciado com a primeira medalha de ouro e o título de cidadão honorário de Alcácer do Sal. É que se Carlos Vicente não foi agraciado na altura então o município estará em falta para com ele. Não sei se o senhor ainda é vivo ou não mas, como refiro, se então não houve reconhecimento público na época então tal deveria ser feito quanto antes.
Mas não é sobre isso que vamos falar mas sim sobre o facto de que o poder político (central mas sobretudo autárquico) reconhece cabalmente que falhou em toda a linha no que ao desenvolvimento deste concelho diz respeito. Repare-se logo no início a confissão e reconhecimento explícito de que "Em 1965, o concelho de Alcácer do Sal debatia-se com problemas estruturais que ainda hoje estão bem presentes". E continua enumerando-os. "A fraca industrialização, o débil tecido empresarial e comercial e o baixo poder de compra eram os principais traços da economia da época". Da época e de hoje, conclusão que tiramos logo do primeiro parágrafo mas também da frase: "A agricultura e as actividades relacionadas com a transformação de produtos aí gerados assumiam, ontem, como hoje, especial relevância". Mais claro e objectivo não poderia ser.
Mas depois lemos alguns dados que nos são fornecidos relativamente a 1965 e se olharmos para eles com olhos de ver, com capacidade crítica e os interpretarmos devidamente não podemos deixar de ficar apreensivos perante a comparação com os números de hoje de tal forma que nos podemos perguntar se afinal nestes 50 anos Alcácer do Sal enquanto concelho evoluiu ou regrediu?
Ora vejamos: Em 1965 só em Alcácer do Sal haviam 13 lagares de azeite a laborar (número quase idêntico havia no Torrão), 5 unidades de descasque de arroz e 4 unidades de descasque de pinhão. O salário médio era de 34 escudos por dia (ou será por mês e é a brochura que tem gralha?) o que daria, se efectivamente não for gralha, cerca de 650 escudos por mês, valor "muito distante" do maior salário praticado por estas bandas e que cabia a um funcionário municipal de topo o qual auferia então um salário mensal de cerca de dois contos e novecentos. Contudo se compararmos com os dados actuais, em meio século, o números de lagares em todo o concelho baixou de 13 para 3; havia 4 unidades de descasque de pinhão e actualmente há, enfim, apenas 3; e quanto a unidades de descasque de arroz, das 5 existentes actualmente há apenas 2. Mas mais do que o número de unidades transformadoras, deveremos olhar para a produção agrícola em si. Segundo a edição de 1944 da Revista do Distrito de Setúbal (ver aqui), a qual apontava o sempre endémico "valor diminuto como vila industrial" ressalvava contudo que "o concelho é rico na produção de trigo, cevadas e favas. Mas onde é mais rico é na produção de arroz" e termina referido que "um terço da produção [agrícola] do País é oriundo do concelho de Alcácer". Seriam esses valores idênticos nos anos 60 do século passado? E actualmente?
Já quanto aos salários, se há coisas que nunca mudam esta é uma delas, o salário mínimo será da ordem dos quatrocentos e poucos euros - sim, há empresas e instituições que, à boa maneira da chico-espertice e da ratice nacionais aplicam como salário mínimo o salário bruto e é sobre esse que fazem os descontos quando o correcto seria que o salário mínimo fosse o salário líquido - valor bastante distante do salário mais elevado que se pratica no concelho e que pertence ao Presidente da Câmara Municipal, o qual aufere um salário-base mensal da ordem dos 3400 euros (ver aqui). Ora a conclusão que se pode tirar é que a debilidade endémica do concelho não apenas se mantém como se agravou. Mas há mais: É que se em 1965, a Câmara Municipal empregava 67 trabalhadores, este valor disparou nas últimas cinco décadas para quase seis vezes mais, fixando-se nos actuais 396 trabalhadores. Ora este dado tem uma consequência que não é despicienda e encerra um corolário terrível: É que a Câmara Municipal de Alcácer do Sal converteu-se entretanto no maior empregador do concelho. Logo podemos imediatamente deduzir que a base da economia local assenta no... Orçamento do Estado. Ora este é um modelo económico insustentável e sabendo que este é apenas mais um exemplo entre tantos outros pelo país fora é bom de ver onde estão os desequilíbrios financeiros e o problema das finanças públicas. A base da economia não é a produção de bens e/ou serviços mas sim fundos públicos os quais advém de impostos mas sobretudo de... financiamento junto de instituições de crédito - exacto aqueles a quem temos que saldar a dívida. Se a isto juntarmos a baixíssima produtividade dos serviços camarários... Isto explica muita coisa.  Se isto não é uma economia afunilada e atrofiada então não sei o que seja. E nem é preciso ser economista para chegarmos a estas conclusões.
Curiosamente contudo, uma contradição sobressai quando às dadas tantas é referido que nos últimos 50 anos Alcácer mudou sobretudo na melhoria das condições de vida. Como??? Então a economia é o que é e ainda assim podemos fazer uma afirmação desta natureza??? Já lá vamos.
No que é que a Câmara se baseia para fazer tal afirmação? Bem, antes de mais baseia-se nos salários médios - 34 escudos (cerca de 17 cêntimos actuais) na época versus os salários que hoje se praticam. Mas será este dado só por si o suficiente para concluirmos que é por aqui que temos uma melhoria nas condições de vida? É bom de ver que a questão que se tem que colocar é outra: Será que o poder de compra aumentou, é igual ou diminuiu entretanto? Esta é a pergunta que tem que ser feita e aqui fica uma sugestão para uma tese na área da economia. Esse é que é o grande facto. É que se é verdade que os salários aumentaram também o custo de vida aumentou, ponto final parágrafo. Aguarda-se o estudo. Já agora, se quisermos ir pela via do salário também o poder político em 1965 poderia com toda a legitimidade referir que haveria uma melhoria das condições de vida pela via dos salários comparando o salário "actual" (1965) com o dos... anos 20, por exemplo. Fiquemos por aqui.
Outro dos pilares em que se baseiam para defender a tese da melhoria das condições de vida é que entretanto foram melhoradas as infraestruturas.
"Em 1965 o saneamento era bastante deficiente, mesmo na sede do concelho; estava em execução a pavimentação das estradas de ligação a Casebres e à Comporta, bem como a construção do edifício destinado a quartel da PSP; a Avenida Aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral havia sido inaugurada quatro anos antes; o Torrão embora possuísse rede de abastecimento, não tinha água nas torneiras na maior parte do ano. Santa Susana e Santa Catarina ainda não dispunham de água de rede". Este é um argumento abstruso, falacioso e a que o poder invariavelmente deita mão seja em que regime for, seja em que época for. Mal seria se nos últimos 50 anos não houvesse melhoria ao nível das infraestruturas. Mais uma vez, também em 1965 o poder poderia usar mão desses argumentos e comparar com, sei lá, os anos 30 por exemplo. Vamos mais uma vez recorrer ao artigo escrito em 1944:
A Câmara Municipal de Alcácer, à frente de cujos destinos se encontra, desde 1933, o seu vice-presidente em exercício, sr. António Xavier do Amaral, tem levado a efeito uma notável série de melhoramentos, a que é de todo o ponto justo fazer referência, embora e síntese. Assim, entre essas obras, contam-se as seguintes como mais importantes:
Fornecimento de enrgia eléctrica à vila; abastecimento domiciliário de águas à sede do concelho; canalização de esgotos em tôda a vila; substituição ou grande reparação dos pavimentos das vilas de Alcácer e Torrão; melhoramentos - com serviço próprio - da limpeza e saneamento desta última localidade; instalação de uma Estação anti-sezonática; aquisição de terreno para os Correios e Telégrafos; estudo e projecto do abastecimento de águas à vila do Torrão; grande reparação e acabamento do novo edifício das escolas do Torrão; construção de um edifício escolar nos Casebres, freguesia de São Martinho, em colaboração com o Município de Montemor-o-Novo; uma fonte na freguesia de São Martinho; construção de uma estrada de Alcácer para o sítio da Ameira; construção de uma escola na freguesia de Santa Catarina; reparação dos edifícios de quási tôdas as escolas das freguesias rurais; construção de uma nova ponte sôbre o Rio Sado, em Alcácer; início de outra nova ponte sôbre a Ribeira de Santa Cartarina; construção de um grupo de moradias pela Casa do Povo de Alcácer ; construção da sede da Casa do Povo de Alcácer (pela Casa do Povo); idem, de um edifício-creche pela mesma Casa do Povo; e, finalmente, construção (actualmente em grande actividade e já em muito adiantado estado) de duas grandes obras de hidráulica agrícola: as barragens do Pego do Altar  e de Vale de Gaio, que virão revolucionar a economia de tôda a região do Sado. São as maiores obras do país, no género.

Perante isto, em 1965, o poder autárquico poderia invocar exactamente os mesmos argumentos para falar em melhoria das condições de vida. Na verdade fê-lo implicitamente em 1944. Efectivamente grande parte destas obras foi concretizada de tal forma que nos anos 60 tinham toda a legitimidade para também fazer este tipo de intervenção política comparando-se com o que existia umas décadas antes. A questão que se põe é: E haveria só por isso melhoria das condições de vida?
Também é legítimo e expectável que daqui a 50 anos o poder político deite mão exactamente dos mesmos argumentos. Certamente nos anos 60 do século XXI as infraestruturas serão superiores ás actuais.
Um pequeno parêntesis ainda para referir que, relativamente ao Torrão e ao facto de em 1965 dispôr efectivamente de água canalizada pese embora o facto de que na maior parte do ano havia escassez de água, nomeadamente de Verão, de referir que eu próprio ainda tenho memória desse facto e que o problema persistiu até bastantes anos depois, sendo solucionado só no fim dos anos 80, início dos anos 90.
Mas a melhoria das infraestruturas não implica automaticamente a melhoria das condições de vida, como se pode facilmente constatar.
Não, meus senhores, não é por aí!
A melhoria das condições de vida vem antes de mais e em primeiro lugar da robustez da economia, da capacidade desta gerar antes de mais taxas aceitáveis de empregabilidade. A melhoria está na captação e fixação de investimento que permita o fortalecimento da economia, que permita que o desemprego baixe e depois, e apenas depois, na existência de uma boa rede de estabelecimentos e de uma boa oferta de ensino, para que efectivamente as famílias não tenham que sair para poderem garantir educação aos seus filhos e por fim, devem ser criadas condições de lazer e de ofertas culturais e recreativas de qualidade. Emprego não é tudo! Mas em primeiro lugar está o capital. É este que faz girar o mundo, goste-se ou não. Sejamos pragmáticos. Tudo isso é que garante a fixação da população. 
E se dúvidas há, a prová-lo está o terrível decréscimo da população, a regressão demográfica acentuadíssima que se verificou nos últimos 50 anos, uma quebra que se cifra na ordem dos 40%. Na verdade, segundo os Censos de 1961, o concelho de Alcácer do Sal tinha 22.167 habitantes, valor esse que de acordo com os Censos de 2011 se fixa em 13.046 habitantes (!) ou seja, em cinquenta anos o concelho de Alcácer do Sal perdeu nada mais nada menos que 9.121 habitantes (mais precisamente 41,15% da população) o que representa uma média de perda de população de quase duas centenas/ano; mais precisamente, desde 1965 até 2011, o concelho de Alcácer do Sal perdeu 182 habitantes por ano. Ora é bom de ver esta realidade flagrante. Se houvesse efectivamente boas condições de vida certamente que não haveria uma taxa de variação demográfica desta natureza.
Infelizmente ninguém que está na política a nível local olha para a realidade por este prisma, limitando-se a fazer uma navegação à vista e pondo em prática umas medidas avulsas que permitam a ilusão de que se está a fazer obra, isto para garantir a próxima vitória eleitoral para assim poderem garantir a sua vidinha e prolongar o seu seguro de vida, o seu emprego,  sob pena de, na maior parte dos casos, se tornarem desempregados políticos. E mesmo nas assembleias municipais estas questões não se põem, estando apenas questões comezinhas e moções que não passam de declarações políticas vazias e com resultados práticos nulos, na ordem de trabalhos. Nem nos programas eleitorais se vêem estas matérias explanadas. 
Ora se a população decresceu a este ritmo e se verifica um envelhecimento da população, é bom de ver que o decréscimo populacional resulta não (apenas) da morte dos mais idosos mas sobretudo do êxodo de grande parte da população em idade activa e sobretudo em idade reprodutiva. A prová-lo está o facto de em 1965 existirem no concelho 36 escolas primárias e actualmente existirem apenas 4 (e algumas delas numa situação delicada e na iminência de fechar portas).
 É bom de ver que se a maior parte daqueles que estão na faixa etária entre os 20 e os 50 anos vão embora, não há alunos e se não há alunos as escolas fecham. Fatal como o destino.

Perante estes dados que já todos suspeitávamos e que não deixam margem para dúvidas, a única conclusão que se pode tirar é que passados 50 anos o concelho de Alcácer do Sal padece de graves problemas estruturais que se não se agravaram pelo menos se mantêm, que a economia local não é sustentável e padece de anemia endémica e que, face a isto, a falta de oportunidades, as altas taxes de desemprego e a falta de perspectivas de vida levam a um êxodo da população a uma média de quase duas centenas por ano.
Perante este quadro negro, o corolário maior é que nos últimos 9 anos do Estado Novo e, mais significativo ainda, nos últimos 40 anos de democracia as políticas de desenvolvimento neste concelho falharam em toda a linha. Sabendo que em quase três das referidas quatro décadas o PCP esteve no poder este, que actualmente conduz os destinos do município, não poderá enjeitar a sua quota parte de responsabilidades. Este texto acaba assim por ser um «mea culpa» ainda que involuntário. Mas também não se pode deixar de atribuir responsabilidades ao PS, no poder quase dez anos, cuja governação em muitos pontos foi igual ou pior à gestão comunista nomeadamente no último mandato (2009-2013) em que o descalabro foi total. A falta de visão, a falta de quadros de qualidade, o grande número de gente claramente medíocre e incompetente que preencheu nas últimas décadas os quadros políticos e administrativos locais, a falta de liderança e as vicissitudes nacionais estão entre as grandes causas deste cenário funesto.
Os números, a realidade e sobretudo os resultados aí estão para o demonstrar.







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