É sempre com preocupação que escrevo sobre qualquer assunto, pois sinto que sobre meus ombros pesa uma enorme responsabilidade histórica. Quis, com efeito, por uma misteriosa decisão, a Providência que sobre mim recaísse a representação da família que durante cerca de 800 anos presidiu aos destinos de Portugal. Embora os manuais de História tenham o hábito de dividir a história da monarquia portuguesa em quatro “dinastias”, estas não constituem na realidade verdadeiras dinastias, mas apenas sucessivos ramos da mesma Família Real, já que todos os monarcas portugueses foram descendentes de D. Afonso Henriques.O mesmo se passa com a casa de Bragança, de que sou o representante, que além de descendente de D. João I o é ainda do Santo Condestável, Nuno Álvares Pereira, herói da independência portuguesa em 1385, e hoje santo canonizado, venerado nos altares. Este peso histórico que herdei faz com que, sem discutir se tenho o direito ao trono, sinta que me obriga o dever do trono.
Esse dever encaro-o como o de representar misticamente o povo português na sua continuidade histórica, como a corrente profunda de um rio caudaloso que flui através das eras, sem embargo da agitação superficial das suas águas, causada pelos ventos da história que ora sopram daqui ora dali, ou dos pequenos obstáculos que empecilham ou fazem inflectir o seu percurso.
Ao povo português esteve, nos últimos quinhentos anos da sua história, associado o povo timorense, de que meus antepassados foram igualmente Reis . Foi também por isso que, durante as horas sombrias da ocupação estrangeira de Timor, senti como uma obrigação a que me não podia eximir o dever de lutar para que ao povo timorense, que era também o meu povo, fosse reconhecido o direito a auto-determinar-se e escolher livremente o seu destino político. Empenhei por isso o prestígio que me advinha da minha ascendência, e até a herança dos laços de amizade fraterna estabelecidos outrora entre os meus avós e os soberanos que então reinavam na Indonésia, como os de Mataram, de que descendem os actuais sultões de Solo e Jogjakarta, para persuadir as autoridades indonésias a aceitar o diálogo, o que, com a ajuda de Deus, veio a produzir seus frutos.
Durante esses anos tive muitas oportunidades de colaborar com amigos timorenses, especialmente com o actual Presidente da República Dr. José Ramos Horta, que acaba de me distinguir com a Ordem de Timor, gesto que muito me sensibilizou!
Na concessão da nacionalidade timorense que me foi recentemente feita pelo Parlamento Nacional e de que tão orgulhoso me sinto, vejo, porém, mais do que uma retribuição por uma intervenção que me irmanou aos outros que lutavam pela liberdade do povo timorense, mas de qualquer forma me incumbia como dever histórico: leio aí também um desejo de perpetuar as relações profundas de Timor com o povo português de que, para além dos regimes e dos governos que constantemente se sucedem, creio representar de forma mais perene.
Faz este ano precisamente meio milénio que os primeiros portugueses chegaram a Timor e que, pelo punho de Francisco Rodrigues, a ilha apareceu pela primeira vez representada na cartografia. Esses primeiros portugueses eram na sua maioria comerciantes livres, que nos mares do Arquipélago procuravam agenciar a sua vida. Como muito bem notou António José Saraiva, um autor cuja formação inicial, de cariz marxista, torna insuspeito, … estava-se na época do artesanato e do capitalismo mercantil. O objectivo das expedições era, acima de tudo, encontrar produtos de troca, o que até certo ponto, implica a ideia da igualdade dos permutantes. Só mais tarde se tornará dominante o propósito de ocupação territorial com vista à produção, de matéria primas para a transformação industrial no país dominante. As primeiras relações entre portugueses e timorenses foram assim relações de igual para igual.
Estimulados pelo exemplo de S. Francisco Xavier, que a partir de 1542 lançara em todo o Oriente a missionação em larga escala, os Missionários portugueses dinamizaram a sua obra em Timor. Os meus antepassados patrocinaram activamente a evangelização, chagando a dedicar aos subsídios aos missionários 8% do orçamento do Estado Português da Índia. Portugal nascera no quadro da Reconquista Cristã da Península Ibérica, gerando-se portanto como reino independente à sombra da fé cristã; e essa união perduraria pelos tempos fora, a ponto de ainda hoje se usar na Malásia a expressão papiar cristão, para significar “falar português”. É por isso impossível separar o cristianismo, hoje religião maioritária em Timor, da presença dos missionários portugueses. É bem significativo que todos os liurais que em 1702 aceitaram submeter-se ao primeiro governador português e na sua pessoa prestar vassalagem a El-Rei de Portugal tivessem já nomes e apelidos portugueses, a demonstrar por um lado que antes de haver em Timor uma presença política efectiva de Portugal existia já uma forte influência religiosa, indissociável da acção desinteressada dos nossos missionários; e por outro a entre mostrar que ao tempo converter-se ao catolicismo significava integrar-se na sociedade portuguesa partilhando o sobrenome com uma família de Portugal, quase sempre da nobreza.
Durante século e meio a presença portuguesa em Timor limitou-se aos comerciantes e aos missionários, sem revestir um cariz político. Se o veio a tomar foi em consequência de uma conjuntura externa que levou alguns liurais de Timor a colocarem-se voluntariamente sob o protectorado português. Nos inícios do século XVI dois povos da ilha dos Celebes, os buguizes e os macaçares, começaram a lançar expedições corsárias contra as ilhas circunvizinhas, aprisionando homens e mulheres para os venderem como escravos. É certamente de um desembarque seu em Timor que guarda a memória a capital do Oé-Cússi, Pante Macaçar, ou seja, em malaio, Pantai Makasar, “a praia dos macaçares”. Em 1641 os corsários do sultão macaçar de Teló lançaram uma grande expedição contra as duas costas de Timor, arrebanhando cerca de 4.000 pessoas, que levaram como escravos para o seu país. Foi nessa aflição que as rainhas de Mena e de Lifau decidiram declarar-se vassalas do Rei de Portugal, em troca de protecção contra os macaçares; e nos anos imediatos outros chefes locais lhes seguiram o exemplo.
O protectorado só veio a tornar-se permanente e efectivo em 1702, quando desembarcou em Timor o primeiro governador português. Para sustentar a administração do território que se começou a organizar então, os liurais foram obrigados a contribuir com uma finta ou tributo, acordada entre cada reino e o governador. Mas mesmo o pagamento desse tributo foi encarado como a expressão de um parentesco estabelecido com el-Rei de Portugal, e por isso a cerimónia do pagamento era designada por siripinão, ou seja, o acto de mascar em comum bétele e areca , o que, como é bem sabido, constitui em Timor um sinal de fraternidade e comunhão espiritual.
Seja como for o povo e os liurais de Timor conservaram viva a noção do carácter contratual da sua relação com a Coroa portuguesa, recordando sempre que necessário aos seus representantes em Timor, “que esta terra não foi conquistada pela espada, mas pela água e pelo sal”, numa clara alusão ao ritual do baptismo.
Sem negar que a presença portuguesa em Timor tenha bastas vezes apresentado fases críticas, episódios de violência e de injustiça, prefiro fixar-me nestes aspectos positivos. Portugal foi, afinal, chamado a Timor para garantir a liberdade das suas gentes num momento em que buguizes e macaçares constituíam para ela uma perigosa ameaça. Não admira que, quando por um conjunto de circunstâncias infelizes ficou aberta a porta para uma invasão de Timor e a sua liberdade votou a periclitar o povo de Timor se tenha mais uma vez virado para os portugueses pedindo-lhe ajuda para a manter. Portugal foi num passado próximo que todos temos bem presente como num passado longínquo, que nem todos conhecem, mas que, como representante de uma instituição muitas vezes secular me apraz recordar aqui, o principal garante da liberdade do povo timorense.
Vejo a concessão da cidadania timorense de que hoje me honro e que a todos agradeço, não tanto como uma recompensa por serviços já passados, ou como um gesto meramente honorário, mas como um acto de renovação do pacto de fraternidade que há três séculos e meio os liurais de Timor celebraram com a Coroa portuguesa. Encaro-a, sobretudo, como uma nova responsabilidade que doravante recai sobre os meus ombros, talvez humanamente demasiado fracos para suportarem o peso das que historicamente sobre eles repousam, mas que mesmo assim procurarei aceitar e honrar com todas as minhas forças: a de que, como timorense, serei obrigado a servir Timor, quanto como representante da Família Real portuguesa deverei, como os meus maiores, continuar a ser garante da sua liberdade.
Dom Duarte, Duque de Bragança
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