Foram recentemente conhecidas as conclusões do relatório sobre os incêndios florestais que flagelaram, à semelhança de anos transactos, o país durante o Verão. O relatório, encomendado ao
Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais, não deixa margem para dúvidas: Falta de conhecimento nomeadamente por parte das chefias, anarquia, desrespeito de ordens, equipamento deficitário, entre outra lacunas.
E se alguns são apanhados desprevenidos, outros há, que há muito perceberam os problemas que enferma o dispositivo de combate a incêndios, em Portugal. Infelizmente muitos há que querem tapar o sol com a peneira, apressando-se a refutar ou pura e simplesmente recusar com inexplicável veemência as conclusões dos peritos, como é o caso do Presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, o qual argumenta que os bombeiros fazem o melhor que sabem e podem. Não está em causa tal. O que está aqui em causa é que o que sabem e podem - nomeadamente as lideranças nos mais diversos níveis de comando - é pouco. Essa é que é a questão de fundo.
Relembremos agora algumas passagens do mais recente artigo sobre a matéria aqui no Pedra no Chinelo desenvolvido o qual pode ser lido na íntegra aqui.
(...) E por fim a estruturação do sistema de protecção civil bem como dos bombeiros.
Já em 2005, se defendia no artigo, que deveria haver uma unificação dos corpos de bombeiros:
Em relação aos bombeiros, não seria viável a unificação das corporações
de bombeiros num único corpo nacional, num modelo semelhante ao da PSP
ou GNR, com um comando geral, sedeado no interior do país, por exemplo
em Castelo Branco, e vários comandos regionais e locais e uma hierarquia
definida, militarizados ou semi-militarizados o que permitiria
certamente uma melhor coordenação e organização, com uniformes e
equipamento comuns e houvesse no seio desta corporação divisão por
especializações (Serviços de saúde, Brigada de intervenção química,
Brigada de combate a incêndios, Brigada de sapadores, Divisão aérea,
Brigadas especiais - de elite - que actuam em cenários de grande
catástrofe como terramotos, tsunamis, atentados terroristas, etc.) e se
caminhasse no sentido de um profissionalização cada vez maior em que os
elementos de cada divisão apenas tinham determinadas tarefas e se
acabasse com o modelo das associações humanitárias, corpos sociais e
sócios (que implica descriminação dos cidadãos entre sócios e não
sócios.) e que implicam uma gestão pouco transparente e possíveis
negócios paralelos?
No Adamastor a problemática é também focada:
A estrutura da protecção civil que
coordena o combate aos incêndios prima sobretudo pela falta de clareza.
Isto é, não estão devidamente atribuídas responsabilidades de comando de
que resulta uma evidente dificuldade na atribuição de meios e
prioridades e no apuramento de responsabilidades. Para melhorar esta
área torna-se necessário combater o “complexo de quinta” (muito
arreigado!) e arranjar uma estrutura com comando centralizado e execução
descentralizada; estabelecimento eventual de níveis diferenciados de
decisão e linhas claras de autoridade. O afastamento dos militares de
toda esta estrutura foi um erro crasso que após a debacle do ano de
2003, já foi parcialmente corrigido.
Temos a seguir o problema dos
bombeiros. Os bombeiros sendo os “soldados da paz” (parece que só se
pode criticar os soldados da “guerra”...), pelos serviços prestados e
pela maioria ser voluntária goza de natural prestígio em toda a
população. E têm estado até há pouco acima de qualquer crítica. Ninguém
nem nenhuma corporação devem estar acima de qualquer crítica. O Estado
tem-se valido do elevado número de corporações voluntárias para poupar
nos sapadores, profissionais. Ora as exigências da sociedade actual não
se compadecem com este estado de coisas. Acresce que qualquer pessoa
pode ser “comandante” de um quartel de bombeiros voluntários e que a
instrução e disponibilidade deixam muito a desejar. Basta aliás olhar
para o fardamento e atavio para se duvidar da operacionalidade
existente. Há pois que impôr alguma ordem neste estado de coisas.
Ora aí está o dedo
bem colocado na ferida. Pensamos, e já desde 2005, que as ditas
associações humanitárias deviam acabar e haver uma unificação dos corpos
de bombeiros numa estrutura semelhante à da PSP e com uma progressiva
profissionalização dos efectivos.
De facto também a
instrução e disponibilidade deixam muito a desejar. Os bombeiros
portugueses são valorosos, abenegados, bravos mas são também, e não
tenhamos medo das palavras, uma tropa fandanga que não prima em grande
medida pela disciplina - basta ver por exemplo a forma desleixada e sem
garbo, como alguns se fardam e actuam nos teatros de operações. Do ponto
de vista de preparação física para enfrentar as mais duras condições, a
esmagadora maioria, uma catástrofe; gente com baixíssima capacidade
aeróbica, gente obesa, gente que não se cuida ou prepara minimamente,
homens já com alguma idade, jovens imaturos que menosprezam o risco e
que vão para o teatro de operações e vivem aquilo como se fosse uma
aventura e mais: muitos efectivos são semi-analfabetos, e pior, alguns
comandantes sofrem do mesmo mal. Há comandantes que pura e simplesmente
terão certamente dificuldade em ler uma carta topográfica ou
meteorológica bem como outras lacunas. Basta abrirem a boca para se
perceber imediatamente. Na verdade, como afirma Brandão Ferreira,
qualquer pessoa pode ser comandante de um quartel de bombeiros. Até é
possível um bombeiro de 3ª (equivalente a praça) ascender a comandante
(muitas vezes por conhecimentos, cunhas ou por um «golpe de asa»).
E depois, deveria - deveria porque não existe - existir um corpo de
oficiais para enquadrar toda esta gente. Apesar de legislação produzida
em 2008 prever a existência de oficiais bombeiros no terreno não se vê
nem um.
Também ao nível da formação esta deveria ser diferenciada num modelo
semelhante ao usado na PSP. Deveria haver (e há) uma escola nacional de
bombeiros a ser frequentada apenas para aqueles que seguem a carreira de
bombeiro e uma escola superior de bombeiros - à semelhança da escola
superior de polícia ou das escolas superiores militares - destinada à
formação daqueles que seguirão a carreira de oficiais sendo esta uma
escola de ensino superior ministrando curso de engenharia (quimica,
civil, florestal), protecção civil, física, química, psicologia,
adminstração, gestão, etc. sim porque nem nas escolas superiores
militares nem nas escolas superiores policiais há cursos de oficiais -
isso não existe - há sim cursos superiores que conferem uma licenciatura
e/ou mestrado mas devido à natureza do ensino estes licenciados são
enquadrados nas carreiras de oficiais com o posto mais baixo e depois
vão progredindo na carreira (...).
Esta deve ser uma formação rigorosa do ponto de vista intelectual,
físico e moral - à semelhança do que ocorre nas referidas escolas
superiores militares e de policia - donde saem os oficiais para comandar
as unidades, quartéis e operações. Gente altamente formada e preparada,
à altura de enfrentar grandes e graves desafios.
Por fim, a logística. Quem estudar um manual de comando operacional
percebe que em cenários de grande complexidade, são criadas três
células que dependem do Comando das Operações de Socorro: Célula de
Combate, Célula de Planeamento e Célula de Logística.
O responsável pela
célula de logística, designado Comandante de Logística, tem como missão
apoiar a organização do teatro de operações, providenciando e gerindo
todas as necessidades respeitantes a abastecimentos e equipamentos
nomeadamente transportes, instalações, abastecimentos de qualquer
natureza, alimentação, manutenção de equipamentos, combustíveis,
comunicações rádio, apoio sanitário.
Infelizmente por aquilo que vamos vendo no terreno, a célula de
logística, em qualquer teatro de operações tem enormes lacunas. Quantas
vezes nós vemos bombeiros exaustos a descansar nas viaturas ou no chão,
perto delas? Onde estão as instalações adequadas? Quantas vezes nós
vemos bombeiros exaustos e desidratados a ter que beber água dos tanques
dos veículos de apoio aos carros que combatem directamente os
incêndios? Quantas vezes nós vemos bombeiros completamente exaustos e a
precisarem de alimentos a dependeram da boa vontade de populares ou de
sandes e croquetes que eles próprios trouxeram para não terem que passar
fome? Quantas vezes nós vemos a falta de higiene e de condições
sanitárias, com bombeiros completamente cobertos de fuligem, suados e
com fardamento danificado permanecendo assim neste estado de desconforto
durante horas (ou dias), só tomando banho quando regressam aos
quarteis?
Não deveria haver, entre outras coisas, uma boa articulação com as
câmaras e juntas de freguesia para estas actuarem na rectaguarda em
articulação com a logística de forma a garantir a higiene, alimentação e
hidratação e a instalação em boas condições dos combatentes? Como é que
esta gente pode estar em boas condições físicas e psicológicas, depois
de sujeitas a tremendo desgaste devido ao combate durante horas em
condições particularmente duras e posteriormente à falta de condições
sanitárias, alimentação adequada - rica em proteínas e hidratos de
carbono e não fritos e sandes como muitas vezes se vê - e de água
potável e bebidas hidratantes - e não refrigerantes que é a pior coisa
que se pode fazer - e falta de conforto no período de descanso quando
voltam a ser mobilizados no turno seguinte? Um cenário de catástrofe é
um cenário de guerra, onde se combate um adversário ou inimigo (neste
caso natural). Ora qualquer general sabe há milhares de anos que se não
dispôr de uma boa logística de apoio na rectaguarda, das duas uma: ou
perde a batalha ou levará muito mais tempo e com muito mais dificuldade a
vencê-la (naturalmente, será sempre uma «vitória de Pirro»)
simplesmente porque falham duas das três condições essenciais à
estratégia: aceitabilidade e exequibilidade.
E também ao nível de planeamento há muitas falhas como é o exemplo de
termos equipas a combaterem demasiadas horas, muito para além do que é
aceitável, quase parecendo que estão esquecidas e abandonadas na frente
enquanto que outras equipas e unidades «frescas» e abastecidas não são
destacadas para a frente apesar de mobilizadas, queixa que ouvimos
muitas vezes. É óbvio que tudo isso resulta precisamente da deficitária
organização, formação, preparação e competência ao nível do comando e
controlo pelas razões atrás mencionadas. (...)
Portanto, ainda «a quente» tanto aqui como no blog Adamastor se traçou a radiografia, em traços gerais daquilo que se vai passando por aí. O que este relatório traz «a lume» é apenas a confirmação na prática e em particular daquilo que muitos sabem e temem e de outros que sabem mas assobiam para o ar ou «enfiam a cabeça na areia», recusando-se a ver aquilo que está à vista de todos. Infelizmente não só se insiste no erro como ainda, tal como é apanágio em Portugal, quando não se gosta da mensagem, mata-se o mensageiro e como tal, e em jeito de mais um crónica de um desastre anunciado, 2014 infelizmente será outro ano negro. Resta saber se haverá baixas e em que quantidade.