domingo, dezembro 31, 2006

Actos deploráveis e insensatos

Apesar da natureza brutal do regime de Saddam não posso deixar de lamentar os moldes e a forma como decorreu o julgamento e a consumação da sua, e de outras figuras igualmente sinistras do deposto regime, execução.
Para mim tais factos não representam um avanço mas uma paragem ou quiçá retrocesso civilizacional. A invasão do Iraque e deposição do seu regime ditatorial justificou-se com os argumentos da Liberdade, da Democracia e dos Direitos Humanos entre outros que se provou com o tempo serem pura invenção mas que agora não vêm ao caso. O que interssa sim são a Liberdade, a Democracia e os Direitos Humanos. Ora os lamentáveis acontecimentos que têm decorrido por terras iraquianas não abonam nada a favor de tais Valores. A começar pela humilhante exposição de Saddam pouco depois da sua captura. Não era isto que o ditador fazia aos seus opositores e rivais? Então onde está a diferença? Depois a farsa que foi o seu julgamento, um julgamento à partida viciado, ferido de credibilidade; um julgamento presidido por juízes em causa própria, juizes que certamente viram familiares seus flagelados às mãos do ditador agora réu. Mais uma vez a justiça dos vencedores sobre os vencidos (vae victis). Mandavam o bom senso e a superioridade moral daqueles que abominam ou que dizem abominar tais métodos que Saddam e seus colaboradores fossem entregues ao TPI, julgados com tranquilidade e com todas as garantias de defesa por juízes japoneses, suecos, portugueses, brasileiros, em suma, por juízes com as necessárias e suficientes distância dos acontecimentos em julgamento, imparcialidade e credibilidade e sob a alçada do direito internacional. E por fim os rocambolescos acontecimentos que vão desde a condenação à pena capital passando pelo impedimento dos réus ao recurso até à pressa e quase clandestinidade com que se executou Saddam. Todo o processo foi ele um autêntico aborto jurídico que apenas envergonha os verdadeiros democratas, aqueles que verdadeiramente defendem o estado de direito. Mais uma vez onde está a diferença entre os métodos do ditador para com os seus rivais e aqueles que agora o julgaram e executaram por tais métodos? Tudo métodos cuja semelhança com os métodos do ditador não serão certamente pura coincidência. Uma bala, uma corda ao pescoço, gás; o que varia é o método mas o resultado é o mesmo. E já agora quem é que terá fornecido o gás ao ditador para exterminar milhares de compatriotas, quem forneceu armamento, informações e apoiou Saddam na sangrenta guerra contra o Irão? Se calhar não era só Saddam e seus colaboradores que deviam estar no banco dos réus, se calhar reside aí a pressa, quase clandestinidade e a forma como o julgamento decorreu! E temos ainda que recoradar Abu Grahib, antes casa dos horrores de Saddam e agora transformada em... casa dos horrores ao serviço da Liberdade, da Democracia e dos Direitos Humanos (!!!!!). Apesar de tudo, praticamente todos os países europeus condenaram a execução. A única reacção de júbilo vinda do Ocidente só podia vir mesmo dos EUA - um país que tem um enorme, triste e horroroso historial de condenações à morte e que apadrinharam a execução do antigo ditador - através da boca de um homem que nunca enquanto governador de um estado comutou uma única pena de morte. Este homem - Bush - continua mesmo ainda a afirmar que no que toca ao Iraque os EUA estão no bom caminho - Apre, que estes ianques são burros!
Eu não tenho qualquer formção júridica mas penso que é ridiculo ainda continuarem a decorrer julgamentos relativos a actos praticados durante o regime saddamista com o ditador e colaboradores próximos já executados. É pura e simplesmente patético. Agora a investigação caberia aos historiadores e o julgamento à História pois juridicamente isso é, para mim, um contra-senso.
Do ponto de vista político não vejo como esta execução possa trazer algo positivo para os iraquianos cada vez mais divididos e envolvidos em violentos actos de ódio caminhando cada vez mais para uma guerra civil e com o Iraque à beira de se tornar uma nova Jugoslávia. Logo após a morte do ditador eclodiram um pouco por todo o Iraque várias deflagrações de carros armadilhados que provocaram mais umas centenas de mortos. Pode-se afirmar que esses atentados iriam sempre ocorrer de uma forma ou de outra e que esse facto foi apenas o pretexto ideal para mais uma carnificina. Pode ser mas do que os executores de tais actos menos precisam é que lhes sejam dados pretextos. E há ainda o facto mais importante e que espelha bem a insensatez política de tal acto. É que esta execução vai ter aproveitamento político por parte das forças mais extremistas; vai servir para glorificar Saddam; vai elevar o antigo ditador, não apenas um pouco por todo o Iraque mas também por todo o mundo islâmico, a herói não apenas nacional mas herói de todo o mundo árabe; um simbolo da resistência islâmica, um simbolo da luta contra a opressão(!!), vai criar um mito, vai criar um mártir. Afirmam alguns politólogos que a morte de Saddam tem um carácter puramente simbólico para as forças ocupantes na medida em que assim justificam uma rápida retirada de terras iraquianas pois o trabalho de deposição, condução de Saddam à Justiça, e posterior execução está feito. Pode ser! Mas se Saddam fosse julgado num país neutro, segundo as normas internacionais, sem a interferência das forças que o depuseram e se cumprisse pena de prisão e ficasse sob custódia, mais uma vez, dum país neutro também não haveria o perigo do regresso do ditador e não seriam dados mais pretextos aos extremistas. Saddam merceria a morte? Certamente mas a superioridade moral da sociedade ocidental, a superioridade moral dos Valores em que essa sociedade assenta é incompatível com a prática da pena de morte. Contudo a glorificação de um ditador sanguinário, a sua elevação a herói e a mártir... isso Saddam definitivamente não merecia!

3 comentários:

Anónimo disse...

Paulo,concordo contigo em muita coisa que aqui disseste. No entanto, há algumas discordâncias a assinalar. "O ditador Saddam", é assim que todos se referem ao Saddam Hussein...Porque não "o ditador Bush" também.O Iraque era uma ditadura?E os EUA? Acaso não existirão partidos de esquerda nos EUA por não existirem pessoas de esquerda??? "Saddam não foi eleito democraticamente"...Acaso as eleições nos EUA são consideradas democráticas???!!!!Saddam matou os curdos (e não só)...Não será do conhecimento geral que os EUA são a nação que mais gente matou no MUNDO???!!! Enforcamento??? Estarão os cowboys e Xerifes à espreita já para voltarem?? "A Europa condenou o enforcamento de Saddam".Isso é de louvar?A Europa DEIXOU que tudo acontecesse! "A superioridade moral do Ocidente"??????????Onde???
Beijinhos e parabéns pelo blogue...
NP

Paulo Selão disse...

Calma, Saddam era efectivamente um ditador. E há outros, os países árabes são quase todos ditaduras e em muitos outros países há ditadores só que Saddam caiu em desgraça porque ameaçou seriamente os intereses americanos e os EUA encarregaram-se de mandar a mensagem; levou tempo mas...
Contudo não comparemos o anterior regime iraquiano com o regime americano. O poder de Bush tem limites, Bush está submetido à constituição americana e tem um mandato limitado.
Existe muita gente de esquerda nos EUA. O Partido Democrático é do centro-esquerda agora o comunismo e outras ideologias extrema-esquerdistas é que não têm expressão por lá.
Quanto ao facto dosamericanos terem matado muita gente concordo e mais os EUA já travaram mais guerras a mais nações e já mataram mais gente em pouco mais de dois séculos de história do que Portugal em quase nove. Quanto ao facto da Europa ter-se limitado a condenar sem mais. O que é que mais é que poderia ter feito? Como alguns analistas dizem: A Europa é um gigante económico e um anão político. Penso que esta afirmação diz tudo!

Paulo Selão disse...

Esqueci-me de dizer que Saddam não foi efectivamente democráticamente eleito. Saddam era um membro influente do partido Baas que chegou ao Poder em 69 através de um golpe de estado chegando à presidência em 79 quando o presidente Al-Bakr renunciou por motivos de saúde.
Aqui também não há comparação possivel. O sistema eleitoral americano no que toca à presidência é sui generis e está um tanto ou quanto obsoleto mas isso é um problema deles. Agora que o sistema funciona... claro que quando as eleições são disputadas pode haver complicações. As eleições de 2000 que deram a presidência a Bush foram polémicas, um tanto ou quanto irregulares e suspeitas justamente por isso embora nenhum sistema eleitoral seja totalmente perfeito. Mas Al Gore reconheceu a derrota e não foi obrigado por ninguém a isso. Fê-lo porque os americanos põem o interesse do país acima das facções. Al Gore não foi exepção e não quis prolongar muito o clima de instabilidade no país.