Suas Consequências
Coronel José Custódio Madaleno Geraldo*
Introdução
Introdução
Prevendo a invasão francesa iminente, preparou‑se com a maior urgência a retirada da Família Real portuguesa para a sua maior colónia de então. A 22 de Outubro de 1807 era assinada uma convenção secreta1 entre o nosso Príncipe Regente D. João e o rei inglês Jorge III e que estabelecia a transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil. Estava ainda prevista a ocupação da ilha da Madeira pelas tropas inglesas, o compromisso de fazermos um tratado de comércio com a Inglaterra, logo após o Governo português se instalar no Brasil.
A 27 de Outubro de 1807, diversos representantes franceses e espanhóis assinaram o tratado de Fontainebleau2, onde foi estipulado que o reino português seria dividido entre a França e a Espanha, do seguinte modo: ao Rei da Etrúria, que passaria a designar‑se Rei da Lusitânia Setentrional, caberia a região entre os rios Douro e Minho; a Manuel de Godoy caberia o Alentejo e o Algarve, recebendo o título de Príncipe dos Algarves; Napoleão ficaria com as províncias da Beira, Trás‑os‑Montes e Estremadura. Assinavam este tratado, Duroc, em nome do Imperador e D. Eugénio Izquierdo, em representação do Rei Católico.
Sem saberem do tratado franco‑espanhol, os nossos representantes em Paris e Madrid foram expulsos, pois Napoleão já havia decidido invadir Portugal em virtude de D. João não cumprir as cláusulas do ultimatum. Enquanto Junot marchava com as suas tropas em direcção a Lisboa, chegava ao rio Tejo uma armada inglesa sob o comando do almirante Sydney Smith com a missão de escoltar a Família Real portuguesa para o Brasil. O embarque deu‑se a 27 de Novembro de 1807, mas os navios só zarparam no dia 29, em virtude de uma tempestade no mar.
No dia 30 de Novembro de 1807, Junot chegou a Lisboa só com parte do seu exército, limitando‑se a ver recortados no horizonte os últimos navios da Armada portuguesa3 e inglesa que levavam para outras terras “a nossa soberania”4. Tinha começado a I Invasão Francesa, das três que Napoleão havia de arquitectar para tentar ocupar o território português.
Este artigo para a Revista Militar surge na sequência dos trabalhos desenvolvidos para a dissertação de mestrado em História Militar, cujas provas decorrerão na Academia Militar e na Universidade dos Açores. Este tema, não incluído na estrutura da tese, parece‑nos oportuno pela ocasião do Bicentenário da Guerra Peninsular e da ida da Família Real para o Brasil, que ora se evoca.
Propomo‑nos relatar, sem pretensões de pormenor, a retirada da Família Real para o Brasil e da Corte portuguesa, alguns dos actos de D. João em terras brasileiras e, ainda parte das consequências benéficas que esta empresa teve para a construção do grande país irmão – o Brasil.
1. Diligências antes da Partida da Família Real
Depois de ter assinado a Convenção secreta de 1807 com Jorge III de Inglaterra, o Príncipe Regente D. João decide‑se pela transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil. Naquela Convenção, assinada a 22 de Outubro em Londres, ratificada em Portugal a 8 de Novembro e pela Grã‑Bretanha a 19 de Dezembro de 1807, também se decidia a condição das tropas de Sua Majestade na Ilha da Madeira.
Tempos difíceis para Portugal e para os portugueses, nomeadamente para aqueles que não puderam embarcar com destino ao Brasil. Ao tomar o partido da Grã‑Bretanha, como estava previsto na Convenção, esta dispunha‑se a auxiliar o Príncipe Regente na retirada para o Brasil.
Esta ideia já era antiga, tendo sido sugerida a D. António, Prior do Crato, e, posteriormente, a D. João IV pelo Padre António Vieira.5 “O príncipe conservou até à última extremidade a esperança de evitar o golpe fatal, não se convencendo de que o seu sogro6 quisesse ligar‑se sinceramente a Bonaparte para destronar sua filha.”7
Cremos que D. João desconhecia a existência do Tratado de Fontainebleau e o seu conteúdo, pelo qual a Família Real portuguesa deixava de reinar em Portugal e previa o desmembramento do reino. D. João acabou por saber atempadamente, mas, in extremis, as intenções de Napoleão. O imperador, contando com a marcha forçada de Junot e ignorando que este se visse obrigado a estacionar em Alcântara e Abrantes, o que lhe fez perder alguns dias além do previsto, ordenou que se publicasse no periódico francês Moniteur, de 11 de Novembro, o famoso decreto de 27 de Outubro e pelo qual a Casa de Bragança deixava de reinar em Portugal, imaginando que apenas seria conhecido em Lisboa, depois da entrada do seu exército em Lisboa.
“Aquele decreto, porém, chegou rapidamente ao conhecimento do governo britânico. O ministro de Portugal em Londres, D. Domingos de Sousa Coutinho, receando que as suas comunicações atingissem o seu destino tardiamente, já depois da entrada em Lisboa das tropas francesas, expediu um correio extraordinário com um exemplar do Le Moniteur para o Príncipe Regente.
Ao mesmo tempo o governo inglês deu instruções a Sir Sidney Smith, que cruzava com a sua esquadra a embocadura do Tejo, para escoltar a Família Real, no caso de retirar‑se de Lisboa. Por um feliz acaso, que pareceu um milagre, o correio demorou na sua viagem apenas quatro dias e muito a tempo de salvar o Príncipe e a sua Família da sorte que os esperava.”8
Com a publicação daquele decreto, o factor‑surpresa esvaiu‑se, pois com a iniciativa daquele diplomata português prestou‑se um valioso e oportuno serviço à Pátria. “Infelizmente ainda há quem chame à retirada do Príncipe para o Brasil fuga, quando afinal foi esta inteligente resolução que salvou o trono dos Braganças, ou melhor, a soberania nacional de ser abatida e espezinhada por Napoleão.”9
Na sucessão dos acontecimentos, havia D. João de encetar vários esforços e “Determinou que partiriam todos os membros da família real, os ministros de Estado e os empregados do Paço, sem excepção; decidiu que a sede do governo do Paço, se estabeleceria provisoriamente no Rio de Janeiro, ficando o territorio portuguez sujeito a uma regencia de cinco fidalgos, que nomeou, a qual governaria em seu nome com os poderes que costumavam conceder ás regencias os antigos reis de Portugal quando iam pelejar na Africa.” 10
Esta decisão foi, contudo, bem sucedida na sua execução, uma vez que o grande objectivo de evitar o encontro da Família Real com Junot foi conseguido. No entanto, este foi recebido amistosamente por ordem do Príncipe Regente. “Apenas foi conhecida em Lisboa a entrada das tropas francesas em território nacional, o Conselheiro de Estado, D. José de Noronha, Marquês de Angeja, sugeriu ao Príncipe a necessidade de mandar alguém ao encontro de Junot, a fim de se saber da boca do general as suas intenções.
O conselho foi aceite, não demorando o Príncipe a dar‑lhe execução. Pensou‑se de começo, em Braamcamp para se desempenhar de tão melindrosa e delicada missão; mas, depois, pôs‑se de lado este indivíduo, recaindo a escolha em José de Oliveira Barreto, negociante na praça de Lisboa, com estabelecimento na Calçada da Estrela, possivelmente da intimidade do General, durante a sua embaixada junto do Príncipe Regente.
Simultaneamente, foi encarregado pelo Governo o coronel Carlos Frederico Lecor, um dos oficiais mais distintos do exército português, de observar as posições e movimentos das divisões de Junot.”11
Podemos dizer que o sistema de informações estava montado para as eventuais contingências. Os documentos que se seguem relatam os resultados das diligências de que foram incumbidos, nas cópias que se transcrevem:
“LECOR INFORMA O SECRETÁRIO DE ESTADO DA GUERRA DO RESULTADO DAS SUAS OBSERVAÇÕES
Illmo. E Exmo. Senhor
Depois q. tive ontem a honra de escrever a V.Ex.ª de Sattarem, marchei para a Golegam a certificarme da verdadeira pozição do Exerçito Francez, e ali vim no conheçimento que ainda se achavam em Punhete: assim não he provavel que possão chegar a Sattarem antes de amanhãa, acresendo o embaraço q. lhe cauzara para a sua marcha o estado quase inpraticavel dos campos da Golegam. He quanto por ora se me offresse q. possa participar a V.Exª. Ds.Gde. a V.Exª. Cartacho 27 de Novembro 1807.
Carlos Frederico Lecor” 12
“A ENTREVISTA DO EMISSÁRIO, OLIVEIRA BARRETO, COM O GENERAL JUNOT
Illmo. E Exmo. Snr.
O General Junot me respondeu em data de ontem dizendo‑me que me veria hoje com muito gosto e que fosse eu encontralo a Punhete, ou a Tancos: assim o faso porque recebendo a carta do General no caminho para aqui afim de adiantar a jornada, apezar do mao tempo espero portanto hoje anoute verme com elle, e fazer quanto me for possivel por cumprir com as insinuacções de V.Exª. Posso já assegurar a V.Exª. que aquele General ignorava inteiramte. que os Inglezes tivessem partido de Portugal, e que os Portos se lhe fixassem; alem disto tãobem ignoravão da entrada no Tejo da Esquadra Russiana; e parece que desconfião de como serão recebidos daqui em diante athé Lxª. he certo que o seo dezignio hé este, veremos se o suspendem pois que he impossivel que hajão mantimentos pª. tanta gente, esta e outras razoens que o exercito já experimenta; poderão ao menos rezolvelos a mudar em parte de rezolução, finalmente nada posso dizer com certeza emq.to não me avistar com o General. Tãobem digo mais a V.Ex.ª que a tropa vem mizeravel, e falta de tudo, mas não cometem desordem maior exceto as de contribuiçoens pª. o sustento que em parte lhe tem faltado, dos sapatos que exigem poucos tem obtido. Encontrei o corrº. Aleixo Je. dos Santos nos campos desta villa que me buscou falar de ordem de V.Exª. pois tendo vindo despachado para o corror. De Santarem veio encontralo nesta villa; e como poderá ser que depois de falar com o General que me seja precizo expedilo a V.Exª. com alguas noticias, pedilhe que quizesse acompanhar‑me, e com efeito vay comigo. De repente me ocorre não levar na mª. Compª. este corrº. por não cauzar suspeita e no cazo de precizão expedirey outra Pessoa. Esta he feita apressa não tenho mais tempo. Ds. Gde. a V.Exª.
Golegam 26 de Novbro. De 1807.
De V. Exª. Revte. Vr.Jozé de Oliveira Barreto” 13
Estas preciosas notícias de Oliveira Barreto e de Carlos Frederico Lecor foram já recebidas a bordo da esquadra que se preparava para a partida:
“SENHOR
Tenho aonra de remeter a V.A.R. a carta incluza que verifica oque disse ontem Lecor na carta queremeti a V.A.R.
Estimarei, quanto devo que V.A.R. passe bem anoite, e lhe beijo respeituozamte. aMão; a carta de Barreto chegou pela uma orada manhan.
Náo Meduza 28 de Novro.Antonio de Araujo de Azevedo” 14
Depois de esgotados todos os esforços para conseguir a neutralidade, não restava outra alternativa a D. João senão a partida para o Brasil. Tentou minimizar as perdas levando quase todas as riquezas que Portugal foi acumulando ao longo dos séculos, ficando algumas misérias que os franceses se encarregariam de levar no seu regresso a casa. A maioria dos portugueses não puderam embarcar, pois só houve lugar para cerca de quinze mil pessoas, mas eram convidados a receber os invasores como amigos, mais uma vez, para evitar sangue e a guerra.
2. O Embarque, segundo José Acúrcio das Neves
Importa que fiquemos com uma ideia do que se passou naquele que se tornaria, talvez, o embarque mais dramático da História portuguesa, com consequências estratégicas que vamos ter oportunidade de ir referindo ao longo do nosso trabalho. O testemunho de José Acúrsio das Neves, que assistiu aos acontecimentos, retrata bem o momento como podemos observar:
“Logo que o embarque foi resolvido, o Principe Regente tinha dado ordens, para que toda a Real Familia se transferisse de Mafra ao palacio de Quéluz, onde ficava mais proxima, e mais livre de algum desastre; pois que o inimigo caminhava a marchas forçadas com direcção á capital. Tudo se executou promptamente, e a 26 S. A. R. passou tambem áquelle palacio, para dar algumas disposições, e provavelmente, para confortar as mais pessoas Reaes neste triste lance; mas talvez era elle o proprio, que mais precisava de ser confortado. Queria fallar, e não podia; queria mover‑se, e convulso não acertava a dar hum passo: caminhava sobre hum abysmo, e apresentava‑se‑lhe à imaginação hum futuro tenebroso, e tão incerto, como o oceano, a que hia entregar‑se. Patria, capital, reino, vassallos, tudo hia abandonar repentinamente, com poucas esperanças de tornar a pôr‑lhes os olhos em cima, e tudo erão espinhos, que lhe atravessavão o coração.
O golpe o tinha apanhado tão desprevenido, que dous, ou tres dias antes tinha proferido com toda a satisfação, que com as providencias, que havia dado, estava em fim tranquillo da parte dos Francezes. As disposições estavam feitas, he verdade, havia muito tempo; pois não passavam de méra precaução, para hum perigo, que se julgava muito remoto. Tanto isto he certo, que as provisões da esquadra se tinhão consumido em grande parte, humas com o tempo, outras por descaminhos: os proprios toneis da aguada de algumas naos se tinham extraviado, sendo agora preciso mandarem‑se fazer outros de madeira nova, muito improprios para hum semelhante uso, e tudo foi confusão, e desarranjo, para se apromptar em poucos dias o puro indispensavel para huma viagem tão dilatada.
Amanheceo finalmente o dia 27 de novembro, aprazado para o embarque, e a aurora perdeo todos os seus encantos sobre o horizonte de Lisboa neste dia funesto. [...]. Apparecerão com o dia pelas ruas, e pelas praias de Belém bandos errantes de pessoas de ambos os sexos, e de todas as idades, em cujos rostos estavão pintadas a mágoa, e a desesperação: chegou a temer se, que no excesso da sua dôr rompessem em algum desatino contra os que julgavão culpados na desgraça pública. Na verdade o ajuntamento não era demasiado, quando appareceo a primeira carruagem da Casa, na qual erão conduzidos S. A. R. o Principe Regente, e o Infante d’Hespanha o Senhor D. Pedro Carlos; tanto em razão da distancia da cidade a Belém, como por se ignorarem as horas, em que as pessoas Reaes devião embarcar; mas foi crescendo; e quando aquelle Augusto Senhor se apeou sobre o cáes, tudo parecia querer precipitar‑se sobre elle, de fórma que na descida dos degráos lhe era necessario ir fazendo com o braço a acção de desviar o povo, que o rodeava. O largo não estava ainda guarnecido de tropa, e até o piquete de cavallaria, que acompanhava a S. A. R. se demorou alguns minutos: servirão‑lhe de guarda dous soldados do corpo da policia, que alli se achavão.
Ao aspecto deste Principe adorado dos seus vassallos, e agora tão consternado e abatido, todos emmudecêrão, e as proprias lagrimas lhes ficárão tolhidas, mas a dor bem pintada nos seus semblantes. Não era menos tocante a atidão do Principe: os seus pés tremulos, e sem firmeza mal podião sustentar o seu corpo vacillante: o fysico sentia as impressões violentas da moral. Seu rosto nadava em lagrimas; porque os seus olhos eram duas torrentes: e he assim que foi levado ao escaler, e neste à esquadra, sendo os adeoses, que dava ao seu povo, mais, e mais lagrimas, que lhe cahião.
A multidão não apartou os olhos deste espectaculo, senão para os fixar em outro não menos doloroso. Todas as mais Pessoas Reaes, tendo sahido de Quéluz junto ao meio‑dia, apparecem no largo de Belém, e seguem os passos do Principe Regente. Havia 16 annos que a Rainha N. S. tinha sido roubada, pelo estado da sua saude, ás vistas do seu povo: apparece‑lhe agora, mas em que terriveis circumstancias! Em outro tempo nunca se mostrava em público, senão entre applausos, inspirando prazer e derramando graças; agora não pode a sua presença inspirar senão saudade, e amarguras. Esta Augusta Soberana mostrou huma grande resignação no seu infortunio: foi a primeira das Pessoas Reaes, que sahio de Queluz, e dizem, que vendo correr o seu coche com pressa, clamára, que a levassem devagar, porque não fugia: demorou‑se hum pouco sobre o cáes, por não ter chegado a cadeirinha, em que a conduzirão ao escaler.” 15
Outro documento precioso a que tivemos acesso, foi o Diario de Euzebio Gomes, na posse do Senhor José Medeiros que gentilmente nos facultou o conteúdo que transcrevemos e que nos permite uma visão complementar do que foi o embarque, tal como ele presenciou:
“Novembro 27. Hoje embarcou toda a Familia Real no Caes de Bellem tendo dado alli Beijamão ás pessoas que alli concorreram entre lagrimas e suspiros geraes, e no dia 29 com bom vento se fez á vella a Esquadra Portugueza que condusio o nosso Amabilissimo Principe e toda a Familia Real para o Brazil, cuja Esquadra se compunha de 8 Naus, tres Fragatas, dois Brigues, uma Escuna e uma charrua de mantimentos; e com ella 21 Navios de commercio nacional. Nesta noite de 29 para 30 houve um temporal tão violento que causou grandes estragos por varias partes, e no mar foi elle tão violento que a Esquadra se dispersou por tal forma que cada uma das embarcações tomou seu rumo e navegou como pôde sem jamais se avistarem na viagem, mas todos foram a salvamento.
He impossivel descrever o que se passou no Caes de Bellem na occasião do embarque da Real Familia, que sahio de Mafra a toda a preça para embarcar, o caes amontoado de caixas, caixotes, bahus, malas, malotoeus e trinta mil cousas, que muitos ficaram no caes tendo seus donos embarcado. outras foram para bordo e seus donos não poderam hir. Que desordem e confuzão; A rainha sem querer embarcar por forma alguma, o Principe aflito, por este motivo!!! Foi o Laranja, (Francisco Laranja capitão de fragata e patrão mór das galeotas reaes) quem fez que a Rainha embarcase. E então o Principe deo Beijamão às pessoas que alli estavão e entre lagrimas e suspiros começam a embarcar, e não se pode descrever o que aqui se passou.” 16
3. Palavras do Príncipe Regente aos Portugueses
Tudo parecia ir dar certo ao lermos os textos que se seguem, primeiro as palavras de D. João aos portugueses e depois as palavras de Junot aos lisboetas:
“Tendo procurado por todos os meios possiveis conservar a Neutralidade, de que até agora tem gozado os Meus Fiéis e Amados Vassallos, e apezar de ter exhaurido o Meu Real Erario, e de todos os mais Sacrificios, a que Me Tenho sujeitado, chegando ao excesso de fechar os Portos dos Meus Reinos aos Vassallos do Meu antigo e Leal Alliado o Rei da Grãa Bretanha, expondo o Commercio dos Meus Vassalos á total ruina, e a soffrer por este motivo grave prejuizo nos rendimentos da Minha Corôa: Vejo que pelo interior do Meu Reino marchão Tropas do Imperador dos Franceses e Rei de Italia, a quem Eu Me havia unido no Continente, na persuasão de não ser mais inquietado; e que as mesmas se dirigem a esta Capital: E Querendo Eu evitar as funestas consequencias, que se podem seguir de huma defesa, que seria mais nociva, que proveitosa, servindo só de derramar sangue em prejuízo da humanidade, e capaz de acender mais a dissenção de humas Tropas, que tem transitado por este Reino, com o annuncio, e promessa de não commeterem a menor hostilidade; conhecendo igualmente que ellas se dirigem muito particularmente contra a Minha Real Pessoa, e que os Meos Leaes Vassallos serão menos inquietados, ausentando‑me Eu déste Reino: Tenho resolvido, em beneficio dos mesmos Vassallos, passar com a Rainha, Minha Senhora e Mãe, e com toda a Real Família para os Estados da America, e estabelecer‑Me na Cidade do Rio de Janeiro até á Paz Geral. E Considerando mais quanto convem deixar o Governo d’estes Reinos n’aquella ordem, que cumpre ao bem d’elles, e de Meus Povos, como cousa a que tão essencialmente estou obrigado, Tenho n’isto todas as Considerações, que em tal caso Me são presentes: Sou servido Nomear para na Minha Ausencia governarem, e regerem estes Meus Reinos, o Marquez de Abrantes, Meu Muito Amado e Prezado Primo; Francisco da Cunha de Menezes, Tenente General dos Meus Exercitos; o Principal Castro, do Meu Conselho, e Regedor das justiças; Pedro de Mello Breyner, do Meu Conselho, que servirá de Presidente do Meu Real Erario, na falta e impedimento de Luiz de Vasconcellos e Sousa, que se acha impossibilitado com as suas molestias; Dom Francisco de Noronha, Tenente General dos Meus Exercitos, e Presidente da Meza da Consciencia e Ordem; e na falta de qualquer d’elles, o Conde Monteiro Mór, que Tenho nomeado Presidente do Senado da Camara, com a assistencia dos dous Secretarios, o Conde de Sampaio, e em seu lugar Dom Miguel Pereira Forjaz, e do desembargador do Paço, e Meu Procurador da Corôa, João Antonio Salter de Mendonça, pela grande confiança, que de todos elles tenho, e larga experiencia que elles tem tido das cousas do mesmo Governo; Tendo por certo que os Meus reinos, e Povos, serão governados, e regidos por maneira que a Minha Consciencia seja desencarregada, e elles Governadores cumprão inteiramente a sua obrigação, em quanto Deus permittir que Eu esteja ausente d’esta Capital, administrando a Justiça com imparcialidade, distribuindo os Prémios e Castigos conforme os merecimentos de cada hum. Os mesmos Governadores o tenhão assim entendido, e cumprão na fórma sobredita, e na Conformidade das Instrucções, que serão com este Decreto por Mim assignadas; e farão as participações necessarias ás Repartições competentes. Palacio de Nossa Senhora da Ajuda em vinte e seis de novembro de mil oitocentos e sete.Com a Rubrica do Principe Regente N. S.1807, Novembro 26
INSTRUÇCÕESA QUE SE REFERE O MEU REAL DECRETODE 26 DE NOVEMBRO DE 1807
Os governadores, que Houve por bem nomear pelo Meu Real Decreto da data d’estas, para na Minha Ausencia governarem estes Reinos, deverão prestar Juramento do estilo nas Mãos do Cardeal patriarca; e cuidarão com todo o desvelo, Vigilancia e actividade na administração da Justiça, distribuindo‑a imparcialmente; e conservando em rigorosa observancia as Leis d’este Reino.
Guardarão aos Nacionaes todos os Privilegios, que por Mim, e Senhores Reis Meus Antecessores se achão concedidos.
Decidirão a pluralidade de votos as Consultas, que pelos respectivos Tribunaes lhes forem apresentadas, regulando‑se sempre pelas Leis e costumes do Reino.
Proverão os Lugares de Letras, e os Officios de Justiça, e Fazenda, na fórma até agora por Mim praticada.
Cuidarão em defender as Pessoas e bens dos Meus Leaes Vassallos, escolhendo para os Empregos Militares as que d’elles se conhecer serem benemeritas.
Procurarão, quando possivel fôr, conservar em paz este Reino; e que as Tropas do Imperador dos Francezes e Rei da Italia sejão bem aquarteladas e assistidas de tudo que lhes fôr preciso, em quanto se detiverem n’este Reino, evitando todo e qualquer insulto que se possa perpetrar, e castigando‑o rigorosamente, quando aconteça; conservando sempre a boa harmonia, que se deve praticar com os Exercitos das Nações, com as quaes nos achamos unidos no Continente.
Quando succeda, por qualquer modo, faltar algum dos ditos Governadores, elegerão a pluralidade de votos quem lhe succeda. Confio muito da sua honra e virtude, que os Meus Povos não soffrerão incommodo na Minha Ausencia; e que, permittindo Deus que volte a estes Meus Reinos com brevidade, encontre todos contentes, e satisfeitos, reinando sempre entre elles a boa ordem e tranquilidade, que deve haver feito do Meu Paternal Cuidado.
Palacio de Nossa Senhora da Ajuda em Vinte e seis de Novembro de Mil oitocentos e sete.
PRINCIPE,” 17
Eram boas as intenções do Príncipe!
4. Breve Caracterização de Portugal e dos Portugueses à época
Importa reter uma breve ideia do país de que D. João se despedia por mais de uma dúzia de anos e, principalmente, sobre as mulheres e os homens que ficavam, porque a esquadra apenas comportaria transportar cerca de 2% da população que residia em Portugal Continental.
Desde que D. João assumiu a regência em 1799, por motivo da demência da rainha sua mãe, segundo Adrien Balbi, o país desenvolveu‑se em algumas áreas de modo significativo, nomeadamente a agricultura, o comércio e a indústria, como nos relata o autor: “Grande prosperité du Portugal jusqu’en novembre 1807. Le prince régent encourage l’agriculture, le commerce et l’industrie; crée plusiers fabriques, une chaire de métallurgie dans l’université de Coimbra, l’académie de marine et de commerce à Porto, et quelques autres établissements littéraires.”18
Outro autor estrangeiro que retratou Portugal e os portugueses foi o diplomata sueco Carl Israel Ruders19. Escolhemos alguns excertos da obra Viagem em Portugal – 1798‑1802, uma colectânea de cartas, prefaciada orgulhosamente por Castelo Branco Chaves: “Não conheço livro escrito por forasteiro acerca do nosso país, onde Portugal e os portugueses sejam observados e descritos com maior objectividade e mais leal propósito de equidade”.20 Como estava longe a fotografia e o cinema, eram as gravuras da época e as descrições dos autores que nos transportam a épocas passadas como essa: “O homem português que, no geral, era descrito pelos viajantes estrangeiros como trigueiro, amulatado, de má formação, quanto ao físico, era, também, considerado pouco atreito à instrução e até às inovações artesanais. Fisicamente, Ruders parece tê‑lo considerado tão europeu como qualquer francês, qualquer inglês ou qualquer sueco. Quanto a aptidões, considerou os portugueses com verdadeira aptidão para as belas‑artes, bem como para qualquer indústria. Quanto à falta de cultura, de pequeno número de artistas, etc., considerou que tudo isso resultava, não de inaptidão ingénita, mas da falta de condições e incentivos, culpando disso os diversos governantes.” 21
Como observador atento não se esqueceu de dar a sua opinião sobre as mulheres portuguesas, com a qual concordamos e pensamos manter‑se actual: “[...] as mulheres em Portugal, possuem qualidades que, em regra, são apanágios do sexo – quer dizer, são belas, amáveis, sensuais e ternas.” 22 E continua: “Os homens em geral adoram‑nas, e os autores de livros de viagens celebram‑nas. Pode dizer‑se alguma coisa de melhor em seu louvor? [...] A fisionomia das mulheres portuguesas, falando em geral, não tem aquela delicadeza, de tão natural e perfeita inocência, de graça tão profundamente tocante, que se revela no rosto das raparigas inglesas. É mais majestosa e imponente. Mas se este grande ar incute respeito as linhas voluptuosas da sua figura também despertam apetites sensuais. Os seus belos e eloquentes olhos negros, onde flameja uma labareda, que em vão elas se esforçam por esconder, os seus formosíssimos cabelos, as suas grandes sobrancelhas pretas, o seu nariz bem talhado, os seus lábios frescos, onde paira um sorriso atraente, os seus dentes tão brancos que parecem polidos, e a sua pele branca e rosada, hão‑de produzir sempre uma impressão lisongeira.
O corpo é, em geral, cheio, mas bem proporcionado, os movimentos fáceis, desembaraçados e cheios de graça; os pés pequenos; o andar lento e solene. Nos seus vestidos de que elas sabem tirar partido dão preferência às coisas vistosas, ao contrário das inglesas, que se fazem notar pela agradável simplicidade dos seus enfeites.” 23
Neste verdadeiro tributo à mulher portuguesa, Ruders descreve ainda o seu comportamento e a sua sensibilidade: “Comovem‑se, profundamente, com as desgraças alheias, são compassivas e caridosas com os pobres, altamente dedicadas aos parentes e amigos, afáveis com os inferiores, e bem educadas com toda a gente.
De conduta honesta e recatada no mais alto grau, são ao mesmo tempo de um convívio alegre, espirituoso e vivo, contentes com a sua sorte e até resignadas com a desgraça.
Em casa, tranquilas e pacíficas, mostram‑se cheias de respeito filial pelos pais de idade provecta, rodeando‑lhes os últimos dias de vida, quando eles disso carecem, de cuidados e carinhos. São ao mesmo tempo tolerantes para com os caprichos dos maridos, devotadas maternalmente aos seus filhos, generosas para com os velhos servidores, e reconhecidas às pessoas de quem receberam obséquios.” 24
É claro que o autor se refere às portuguesas em geral, com certeza que houve excepções, mas estas confirmam a regra. E é com a regra que nós nos orgulhamos!
5. Chegada dos Franceses a Lisboa; A Proclamação dos Franceses
O comandante das tropas invasoras, entretanto chegado, Junot dirigia‑se aos lisboetas com aquela que ficou conhecida como proclamação dos francezes.
Esta proclamação tinha sido mandada afixar pelas ruas e praças de Lisboa na madrugada daquele dia 30 de Novembro de 1807, tanto em francês como em português, para que não restassem dúvidas. Fazemos nossas as palavras de José Acúrcio das Neves e transcrevemos também a proclamação em francês: “[...] a peça é tão interessante, tão extraordinária [...] que eu não posso dispensar‑me de a transcrever toda inteira, [...].” 25: Vejamos o que disse Junot:
A proclamação dos franceses 26
A proclamação dos franceses 26
Até chegarem a Lisboa, a 30 de Novembro de 1807, foi longo e doloroso o percurso dos invasores. Eusebio Gomes27, almoxarife28 do Palácio de Mafra, descreve a chegada a Lisboa de Junot com os seus homens e faz referência também às outras forças invasoras pelo norte de Portugal e pelo Alentejo, descrevendo, ainda, as condições climatéricas desse dia: “No dia 30 entraram em Lisboa os franceses, comandados por Junot; constava o Exército de 28 mil homens, apoiados por 11 mil Espanhóis e 62 peças de Artilharia; e ao mesmo tempo entrou pelo Minho um corpo de 10 mil homens Espanhóis e pelo Alentejo entrou outro de 6 mil homens. Acompanhava o Exército Francês muitos Generais Franceses; tais como Loison, Delabord, Kellerman, Thomier, Thiabout, Delagarde, Murgançon, Quesnel, Solignac, Maurin, Pilé e outros mais. Neste dia 30 houve um grande temporal, tanto no mar como em terra e seria longo descrever os estragos que causou e em Mafra foram eles muito grandes, pois como era dia de feira, as barracas foram todas destruídas.” 29
6. A Esquadra e a Viagem
Segundo José Acúrsio das Neves, a esquadra portuguesa era composta de oito naus, três fragatas, três brigues, uma escuna e o seu comandante‑em‑chefe era o Vice‑Almirante. Este número de navios não é unânime para todos os autores onde o assunto é debatido, conforme iremos ver na tabela30 que se segue:
A Família Real dividia‑se pelas diversas naus que constituíam a esquadra, o Príncipe Regente seguiu na Principe Real, D. Carlota Joaquina, juntamente com as suas filhas e D. Miguel, com apenas 5 anos, embarcaram na Rainha de Portugal, as irmãs da Rainha seguiram na nau Príncipe do Brasil.
Como é defendido por vários autores, embarcaram nos navios disponíveis cerca de 15 000 pessoas, representando todas as classes, “Os fidalgos, os ministros, os conselheiros, e tantos outros [...]: alguns regimentos de linha acompanháram.” Rumavam agora para a maior e mais rica colónia portuguesa – O Brasil. Por ironia do destino, as riquezas, nomeadamente o ouro, que tinham vindo do Brasil para financiar as grandes construções nacionais, como o Monumento de Mafra, Aqueduto das Águas Livres, etc…, eram como que devolvidos à colónia, pois as classes mais abastadas faziam‑se acompanhar dos seus haveres, ouro, prata, pedras preciosas, obras de arte, livros, tudo embarcava. “[...] em mais de 80 milhões de cruzados orçam alguns o dinheiro que partiu para o Brasil, ficando no regio erario apenas 10.000 cruzados, sem que se houvessem pago os empregados e credores do Estado.” 51 Eram pedaços de História portuguesa que partiam, algumas delas para não mais voltarem ao seu território de origem. Cremos que este foi o primeiro passo para a independência do Brasil.
A frota zarpava finalmente ao amanhecer de 29 de Novembro, com ventos favoráveis os navios despediam‑se de Lisboa e por volta do meio‑dia ouviam‑se “as ultimas saudações das fortalezas que guarnecem a barra.” 52 A Esquadra Portuguesa, composta pelos navios acima descritos, era seguida por mais de três dezenas de navios mercantes, escoltados por navios ingleses, como fazia parte do Acordo Secreto de 1807. Se o embarque de tanta gente e a partida da esquadra não foram pacíficas, a viagem também não se pode dizer que foi calma, pois no dia 7 de Dezembro, uma tempestade dispersou a frota na rota do Rio de Janeiro. Alguns dos navios foram “parar” à Baía a 22 de Janeiro de 1808.
7. A Chegada ao Brasil
Os relatos que nos chegam da chegada da Família Real ao Rio de Janeiro transparecem o júbilo do povo e o empenhamento das entidades locais, nomeadamente o empenho do último Vice‑Rei53 do Brasil que se preparava para entregar o poder “a governança” ao Seu Senhor. Antes de desembarcar no Rio, D. João passou pela Baía.
7.1. Chegada de Parte da Família Real ao Rio de Janeiro
“Quando o brigue Voador chegou ao Rio de Janeiro, [...] sucedeu um levante de júbilo e cantou‑se nas ruelas, desde a da Afândega à do Sabão, dançou‑se nos bêcos dos Tambôres ao dos Cachorros e iluminaram‑se os edifícios, da Lampadosa ao Capim e ao Castelo.” 54 Uma verdadeira cidade engalanada que se assustou com boatos de tropas hostis: “É que em vez dos franceses com as naus altaneiras, encanhonadas de peças de bom tiro, em logar das tropas ameaçadoras, cujo anúncio causára o levante e o artilhamento da cidade, chegava a nova de que, em som alegre, a esquadra portuguesa, flamulada de signas, engalanada, viria fundear no formoso lagamar do Guanabara e desembarcaria dela, como duma florida frota de mágica, toda a família real.” 55
Finalmente a Família Real estava a salvo, o mar poupou mais uma vez a lusa gente e manifestou‑se como um verdadeiro aliado. “O inimigo entrara em Lisboa; o Brasil estava longe em demasia para as suas tentativas; Napoleão dominaria só na Europa e aqueles que buscava aprisionar, soberanos, príncipes, grandes fidalgos – as aves de boa heráldica, dignas de encher os seus viveiros, as suas doiradas gaiolas de Fontainebleau e Valançay – escapavam‑se às garras da águia e vinham procurar o seu abrigo na sombra das grandes árvores coloniais como bandos acossados pelos tiros numa arribação feliz.” 56
Os preparativos para receber os soberanos portugueses e toda a sua Corte não foram deixados ao acaso, mas, em face da numerosa comitiva, foram muitas as casas a desalojar e a comodidade não abundava. Uma sombra do que tinham deixado para trás, em Lisboa! No entanto, a boa vontade do povo brasileiro não faltou, vejamos o que se passou: “Não se parava um instante; improvisavam‑se as comodidades, vinham obedientemente os moradores intimados entregar as chaves das residências jubilosos até, veniando o senhor vice rei, mais alegre que todos eles, dando ordens formais, exercendo uma acção intensa, muito à altura da sua reputação.” 57
D. Marcos de Noronha pensou em todos os pormenores para agradar ao Príncipe Regente, a toda a Família Real e aos demais visitantes prestes a chegar. “Ia entrar no Rio de Janeiro a melhor gente portuguesa em nascimento e honrarias e êle, vice‑rei, não lhe podia oferecer um pouco de pirão58, umas tiras rijas de carne, umas mãos cheias de mau arroz. Carecia‑se muito gado, frutas, galinhas, cereais, géneros regionais e europeus – dos armazenados – e pacas, espécies de leitões, peixes salmourados, aves ribeirinhas de bom sabor, e doçarias, e pipas de vinho do continente, licôres suaves, àlém da cachaça destinada aos soldados, que já fardara de novo, para atalaiarem os régios paços. [...] Fazia‑se a entusiástica festividade, num Domingo, a dezassete de Janeiro, e toda a gente entrajada de gala, falando alto, radiante, corria a vêr as tropas formadas, de uniformes pimpantes, empenachadas, os milicianos buscando o seu aprumo, as armas scintilantes ao sol intenso e perturbante após a grande tempestade, tam forte e tam pouco acolhedora, que dispersara os vasos de guerra nos quais os monarcas velejavam para a sua capital colonial.” 59
7.2. Chegada de D. João à Baía
D. João desembarcou na cidade da Baía60 a 22 de Janeiro de 1808, tendo recebido provas de muita estima e admiração por todos os habitantes que se dirigiram para o saudar ou simplesmente a vê‑lo, saudado pelo capitão‑general da colónia – o conde da Ponte e pelo arcebispo, por entre as mais vibrantes aclamações do povo. “A armada, desviada do caminho ordinario dessas navegações, o que visou foi verificar de passagem o que de real e positivo havia nas conjecturas dos entendidos, e essas conjecturas se confirmaram plenamente.” 61
A História tem destes acasos, a armada comandada por Pedro Álvares Cabral, a maior e mais poderosa até então, treze navios entre caravelas e navios redondos, que partira de Lisboa com a missão de assentar paz e amizade com o soberano de Calecut com vista a “estabelecer ali uma feitoria, aonde recolher as mercadorias europeas de mór procura no paiz com o producto das quaes havia de carregar de especiarias as naus, quando tornassem.” 62 Não é de acreditar que o desvio da rota tanto para Ocidente tenha sido por acaso, mas sim de forma deliberada de modo a descobrir terras dentro do hemisfério português, conforme os tratados previam.
A 21 de Abril de 1500 os navegadores portugueses deparavam‑se com sinais de terra e a 22 avistavam terra brasileira, a 23 os portugueses vão a terra e trocam presentes com os nativos, a armada ruma para Norte até darem com um “Porto Seguro”63 onde vão ancorar para “[...] tomar agua e lenha e principalmente acertar onde se estava.” 64 Passados sete dias a Armada seguiu o seu destino rumo à Índia. No mesmo dia voltou para Lisboa o navio dos mantimentos para dar a boa nova a El‑Rei, com a Carta de Pero Vaz de Caminha, datada de 1 de Maio, que descreve minuciosamente o “Achamento do Brasil”. O navio mensageiro passou pela Bahia65 provavelmente a 5 de Maio de 1500. D. Manuel recebeu a carta de Pedro Vaz de Caminha, ficou contente pelas novidades, logo mandou aparelhar três navios para zarparem e reconhecerem aquelas Suas novas terras. Passados mais de dois séculos, D. João lembrar‑se‑ía deste episódio.
A euforia também aqui se fazia sentir e o povo apareceu em massa às audiências públicas que D. João fez questão de presenciar para receber todos quantos quisessem beijar a sua mão papuda. No dia seguinte à tarde, mais pela fresca:
“[...] seguira as carruagens de gala, pela Gameleira até ao teatro, onde os camaristas o aguardavam com o pálio alçado, entre alas de soldados para o Te‑Deum da Sé. Sua altesa, muito guloso da música sacra, escutou‑a tocada por todos os instrumentistas da cidade. Começaram, então, as festas sem conta, delírios, loucuras em que corriam rios de oiro em honra da família real que se acolhia à generosidade dos habitantes do Brasil. Imaginavam‑se banquetes, que duravam horas, para agradar a gulotoneria dos recem chegados; faziam‑se exercícios militares que enchiam as ruas de animação guerreira, organizavam‑se cortejos, bailes populares, cantatas nas quais embalavam D. João e o queriam captar:
Meu príncipe regente,Não saias daqui,Cá ficamos chorandoPor Deus e por ti…
As vozes lentas, bem sotaqueadas, dôsse enlanguescência brasileira, subiam até ao varandim do paço todo iluminado; numa quebreira delicada, soavam as violas em lunduns doloridos, aiados, vagos e o principe sentia‑se bem e dizia‑o. Custava‑lhe arrancar da Baía, [...].” 66
Importa referir que, ainda na Baía, D. João publicou um importante decreto, datado de 28 de Janeiro, que abria os portos brasileiros às nações amigas, mediante o pagamento de um imposto. “Foi José da Silva Lisbôa, o futuro visconde de Cayrú, um dos maiores jurisconsultos da Bahia e do Brasil, quem primeiro aconselhou esta medida, extremamente útil á nossa patria; foi uma das cousas que mais contribuiram para nossa independência e riqueza publica.” 67
“Conde da Ponte, do Meu Conselho, Governador, e Capitão General da Capitania da Bahia, Amigo. Eu o PRINCIPE REGENTE vos Envio muito saudar, como aquelle que Amo. Attendendo á representação, que fizestes subir á Minha Real Presença sobre se achar interrompido, e suspenso o Commercio desta Capitania com grave prejuizo dos Meus Vassallos, e da minha Real Fazenda, em razão das criticas, e públicas circunstancias da Europa; e querendo dar sobre este importante objecto alguma providencia prompta, e capaz de melhorar o progresso de taes damnos: Sou Servido Ordenar interina, e provisoriamente, em quanto não consolido hum Systema geral, que effectivamente regule semelhantes materias, o seguinte Primo: Que sejão admissiveis nas Alfandegas do Brazil todos, e quaesquer Generos, Fazendas, e Mercadorias transportados, ou em Navios Estrangeiros das Potencias, que se conservão em Paz, e Harmonia com a Minha Real Coroa, ou em Navios dos Meus Vassallos, pagando por entrada vinte e quatro por cento; a saber: vinte de Direitos grossos, e quatro do Donativo já estabelecido; regulando‑se a cobrança destes Direitos pelas Pautas, ou Aforamentos, porque até o presente se regulão cada huma das ditas Alfandegas, ficando os Vinhos, e Aguas Ardentes, e Azeites doces, que se denominão Molhados, pagando o dobro dos Direitos, que até agora nellas satisfazião. Secundo: Que não só os Meus Vassallos, mas tambem os sobreditos Estrangeiros possão exportar para os Portos, que bem lhes parecer a beneficio do Commercio, e Agricultura, que tanto Desejo promover, todos, e quaesquer Generos, e Producções Coloniaes, á excepção do Páo do Brazil, ou outros notoriamente estancados, pagando por sahida os mesmos Direitos já estabelecidos nas respectivas Capitanias, ficando entre tanto como em suspenso, e sem vigor todas as Leis, Cartas Regias, ou outra Ordens, que até aqui prohibião neste Estado do Brazil o reciproco Commercio, e Navegação entre os Meus Vassallos, e Estrangeiros. O que tudo assim fareis executar com zelo, e actividade, que de vós Espero. Escrita na Bahia aos vinte e oito de Janeiro de mil oitocentos e oito. = PRINCIPE.= Para o Conde da Ponte.”68
Depois de assinado o decreto, “[...] e logo houve mais festas religiosas, jantares opíparos, como os oferecidos em casa de Vilela e de Antunes Guimarães, merendas de pompa na Itaparica e, finalmente, as iluminações com que se antecedeu a despedida. Parecia uma nuvem rasteira, loira e vermelha, de labaredas lambendo as águas e a cidade de Todos‑os‑Santos.” 69 Embora houvesse esforços para o Príncipe Regente ficar na Baía, este não se demoveu do seu destino e a 26 de Fevereiro rumou para o Rio de Janeiro, ao som de cantatas de despedida.
7.3. Chegada de D. João ao Rio de Janeiro
“Aportou na Guanabára a 07 de março, sendo‑lhe preparado, na capital, o Palacio dos governadores, ligado por um passadiço, á igreja do Carmo. No meio da alegria da recepcção, já se ouviam uns «vivas» dados ao imperador do Brasil.” 70 Se uma imagem vale por mil palavras, existem palavras que conseguem representar muitas imagens. Eis a chegada de D. João ao Rio de Janeiro descrita entusiasticamente por Rocha Martins: “Os céus toldavam‑se no fumo dos foguetes lançados de todos os môrros, da orla da água, do topo dos edifícios, estralejando com o ribombar cavo dos tiros de salva das naus e fortalezas; festivamente os bronzes badalavam nos campanários quando ainda mal se avistavam as velas. Fôra beijar a mão ao regente o intendente da marinha, Caetano Lima, à entrada da barra. D. João acolhera‑o com graça e bondade e dos seus lábios começaram a sair as palavras gratas quando distinguiu os numerosos escaleres, toldados de todas as côres, empavesados, atraentes de músicas vivas, trazendo as pessoas mais importantes e as quais rodeavam a Príncipe Real, num fetichismo, soltando as suas aclamações.” 71
Não podemos deixar de referir o contraste desta chegada com a partida de Lisboa nos finais de Novembro de 1807, contrastanto o contentamento no Rio de Janeiro e as lágrimas em Portugal.
“Era no momento em que o vice‑rei, de joelhos, levava aos lábios a mão do soberano a quem entregava o poder, o mando, a governança. Daquela hora em diante não era mais do que seu súbdito, um vassalo, despojado de toda a sua pompa e da sua hierarquia na colónia.
No dia seguinte, quando a família real desembarcou, já o príncipe estava de ânimo tranquilo. Deixava a mãe a bordo; gravemente punha o pé em terra e logo redobrava a retumbância da pólvora, o barulho das aclamações, os retimtim repetidos dos sinos alagando os espaços de alegrias, hossanas, aleluias. As vozes subiram misturadas de entusiasmo e de fé, um hino religioso dominou‑as num instante; a população prostrara‑se e, junto do altar, armado na rampa do cais, o chantre72 e dois cónegos deram o santo lenho a beijar ao primeiro homem de sangue real que pisava a terra de Santa Cruz.
Passou sobre os arcos triunfais cheios de alegorias e, na luz dos cinco mil brandões acêsos, apesar do esplendôr do céu dessa tarde de Março, o re-gente ia entrar no palácio com os seus, quando o povo começou a aclamá‑lo:– Viva o nosso soberano!… Viva o nosso imperador!…” 73
D. João respondia a esta prova de carinho por parte dos seus súbditos, com amabilidade e cortesia. A todos tentando agradar e com gestos e com palavras delicadas granjeou a simpatia e amor destas gentes, as quais lhe faziam ofertas de grande valor, delas se destacando a Quinta da Boa Vista, que lhe foi ofertada por Elias Lopes.
8. A Corte no Brasil
8.1. Os Primeiros Tempos
Os ânimos, porém, iriam arrefecer devido às poucas habitações disponíveis e necessárias para alojar tanta gente. Cerca de quinze mil pessoas para alojar e outras tantas para desalojar. “Do dia para a noite, o vice‑rei fazia evacuar muitos prédios, para neles se alojar a comitiva do regente; bastavam duas simples letras – P. R.74 (Principe Regente) – postas de ordem superior em qualquer casa, para os moradores terem de mudar‑se in continenti [a fim] de cederem a moradia aos fidalgos e criadagem palaciana.” 75
“Dificilmente as tropas continham a populaça; chegaram a ser rôtas as fileiras do regimento de Bragança e as peças, retumbando sempre, os sinos revolteando sons, atordoavam a gente do séquito que, sob uma chuva de flôres e de hervas aromáticas, no litaniar dos sacerdotes, ía, procissionalmente, deixar os soberanos nos seus paços.
Depois, emquanto o Rio de Janeiro iluminava soberbamente e as solenidades religiosas se sucediam, começaram as bulhas por causa das aposentadorias. As habitações da cidade eram pequenas para tanta gente vinda de imprevisto e a própria família rial mal cabia nos logares que o vice rei lhe destinara ignorando divergências, questões, ciumes existentes entre personagens régias e favoritos, políticos e oficiais da Casa Real.
Desalojados os carmelitas e os bordadinhos dos seus conventos deu‑se êsse edifício à rainha D. Maria I e a sua filha D. Mariana, para se alojarem com uma centena de damas, açafatas, curvilheiras e retretas.
Ao rez da rua, nas salas térreas, fumegavam as cosinhas, atochavam‑se a manutenção e a ucharia. Transformara‑se em armazem de comedorias a antiga cadeia cidadã e agora, como antigamente, não se calavam as disputas, os clamôres, as fúrias, os ralhos, os gritos histéricos das portuguesas, das negras, das empregadas régias, furiosas, umas com saùdades dos namorados, outras dengosas já em amavios, ciosas, influenciadas pelo clima e pelas comidas, atordoando o paço, atravancando o passadiço que se armara, em derretes e em balbúrdias.
Para as bandas da baía magnífica, olhando as àguas, miravam os aposentos de D. João, os salões, a casa de jantar, onde êle gostava de comer com os pequenos príncipes, os quartos destinados às suas cousas íntimas, mas logo os invadiram os camaristas, os Lobatos, o paraty, os outros, ficando quase sem pompa aquele que o povo aclamava de imperador.
D. Carlota Joaquina instalara‑se com as filhas em cúbiculos distantes, a marcar bem a sua separação do marido; D. Maria Benedicta tambem mal encontrara guarida decente.
A família real vivia numa grande promiscuidade com a gente de libré, faltavam as magníficas casas de Mafra e da Ajuda, onde para se chegar junto dos soberanos era necessário atravessar inúmeras salas; os infantes brincavam num pátio em cuja sombra a criadagem acirrava os macacos das gaiolas e os pássaros exóticos soltavam os seus gritos, abrindo os bicos recurvos e as asas variegadas, azuis, vermelhas, amarelas, de tons lindos mesmo naquela luz plumbea de poço.
Os da côrte, êsses evocavam precedências e qualidades para escorraçarem os moradores das melhores residências e acomodarem‑se sem mais detença.76 [...]
Assim se ia instalando a corte no Brasil, os cerca de quinze mil portugueses que viajaram para o Brasil evitando o confronto com os soldados franceses e espanhóis às ordens de Napoleão, desalojavam agora aqueles portugueses indígenas de suas casas e em vez de seguir o exemplo do príncipe regente, com palavras acolhedoras e de gratidão, muitas vezes “só encontravam depois de os despojar, frases soezes para os maldizer. Riam‑se dos hábitos brasileiros, das suas modinhas e dos seus sotaques, troçavam da sua existência simples, dos seus usos patriarcais, das suas maneiras de vestir, continuavam, dentro das carruagens apreendidas, seges, coches e cadeirinhas, a vida faustosa de Lisboa, recebendo do tesouro réditos e pensões e para que em tudo se assemelhasse o seu viver ao levado em Portugal, dentro em pouco as ruas cariocas estavam empestadas de detrictos, de lôdos imundos, lançados no grito porco do «àgua vai!»” 77
O que parecia o céu no início estava a tornar‑se num problema social!
8.2. Os Primeiros Actos de D. João
Um dos primeiros actos do Príncipe Regente foi, apenas passados três dias de se ter estabelecido a sede da monarquia portuguesa, nomear os seus ministros: “Para a pasta da Fazenda foi indigitado D. Fernando de Portugal, marquês de Aguiar, penúltimo vice‑rei; para a pasta da Marinha nomeou João de Sá e Menezes, visconde de Anadia e para a pasta da Guerra e Negocios Estrangeiros foi encarregue Rodrigo de Souza, conde de Linhares78.
Contrastando com as medidas tomadas para manter a neutralidade com a França, até ao dia do embarque para o Brasil, querendo evitar a guerra a todo o custo aconselhou os seus súbditos a receberem as tropas invasoras como amigas, D. João mudaria de opinião face aos acontecimentos que se estavam a passar na sua mãe‑pátria e toma uma atitude que dá a conhecer ao mundo, a 01 de Maio de 1808 é publicado um manifesto, com a sua assinatura, que termina com uma declaração de guerra contra Napoleão, “protestando que não consentiria em caso algum na cessão de Portugal, e não deporia as armas sem que precedesse accôrdo inteiro com Inglaterra.” 79
Este documento, publicado em edição bilingue português e francês, digno de uma leitura atenta, com a designação de Manifesto, explica a conduta de Portugal em relação à França desde a Revolução até à Invasão daquela e as razões que levaram a declarar a guerra a Napoleão.
Por uma questão de palavra e de coerência, como para responder à letra do que se estava a passar no Portugal europeu, D. João ordenou a conquista da Guiana Francesa80. Ao governador do Pará foi dada esta missão e o governador de Pernambuco apoiaria a acção com tropas e artilharia. No esforço concertado para a campanha da Guiana Francesa, entendida em jeito de retaliação contra o invasor francês de Portugal, vejamos as iniciativas tomadas nesse sentido:
“[...] Formou pois, o governador do Pará uma divisão de 900 praças ao mando do tenente coronel de artilharia Manuel Marques de Elvas Portugal, que seguiu por terra, bem como uma flotilha composta de algumas embarcações pequenas e de uma corveta ingleza. Dirigida pelo capitão inglez Jayme Lucas Jéo ou Hyó como outros escrevem; levando além da tripulação, uns 500 homens de desembarque, velejou a escotilha ao longo da costa, de conserva e concerto com as forças terrestres.
A 3 de dezembro de 1808, surgiu a flotilha á vista da bahia do Oyapoc, onde acabava de chegar igualmente Manuel Marques, que, depois de rebater diversas partidas de inimigos, se apresentou diante da cidade de Cayenna.
Commandava na praça em que havia uma pequena fortaleza e diversos reductos, o francez Victor Hugo, que dispunha de 511 soldados, de 200 paisanos armados, de artilharia e de um brigue de guerra. Defendeu‑se com denodo o Francez; quando, porém, viu que tinha perdido quasi todas as trincheiras, e os nossos bravos iam chegando à fortaleza para a tomar de assalto, julgou ser já tempo de pedir uma honrosa capitulação, dirigindo suas propostas ao chefe portuguez e ao comandante da flotilha.
Como, todavia, essas propostas parecessem exageradas, estipularam um armisticio emquanto um expresso ia consultar sobre este ponto o governador do Pará. – Afim de levar prontamente ao principe estas bôas noticias, despachou este outro expresso que, subindo pelos Tocantins até Porto Real, e passando por Villa Rica, chegou ao Rio de Janeiro com noventa e poucos dias de viagem (março, abril, maio).
Consentiu o governador do Pará na capitulação, modificando as propostas excessivas do Francez e concedendo aos rendidos todas as honras da guerra comtanto que se comprometessem a não pegarem em armas, durante um anno, nem contra Portugal, nem contra os seus alliados.
Concedeu igualmente que a Guyana continuasse a reger‑se pelas leis francezas com a condição de ser governada por um Portuguez e em nome do principe D. João.
Tendo o commandante Victor Hugo acceitado estas condições, embarcou para a França com todos os seus soldados, pelo meio de fevereiro de 1809, emquanto os nossos occupavam a praça, e Manoel Marques tomava posse de Cayenna e de toda a Guyana Franceza.
Cuidou sem demora o governo do regente em estabelecer o seu direito sobre todo o território, enviando para Cayenna, no caracter de intendente geral, o desembargador João Severiano Maciel da Costa, futuro marquez de Queluz, senador e ministro do imperio, revestido de plenos poderes para governar o paiz. Augmentou o governo as forças militares da Guyana mandando a Maciel mais de 800 praças de linha.
Acharam os nossos em Cayenna duas typografias, que funcionavam regularmente, e, no seu territorio, diversas plantas finas da India e arvores preciosas inteiramente desconhecidas no Brasil; o desembargador Macial enviou‑nos algumas dessas plantas que, propagadas pelas diversas capitanias, augmentáram a riqueza nacional, melhorando a agricultura.”
8.3. Consequências da Família Real no Brasil
Depois de 14 anos muitos acontecimentos tiveram lugar no Brasil e em Portugal. Não é nosso encargo desenvolver em demasia este capitulo, pese embora ser um tema apaixonante, pelo que apenas apontaremos algumas das vantagens que a estada da Família Real e da Corte trouxeram ao Brasil. O que Portugal continental perdeu, o Brasil ganhou. A Família Real e as suas riquezas deslocaram‑se para o ultramar e o desenvolvimento destas novas fortunas haveria de precipitar o processo da independência do Brasil em 1822, sem esquecer as questões ligadas à Revolução Liberal de 24 de Agosto de 1820 em Portugal. O Continente sofreria diversas invasões que tudo de mau lhe trouxe: doenças, mortes, pobreza, as maiores misérias que os homens podem fazer uns aos outros.
Vejamos algumas das vantagens que esta opção estratégica trouxe para este território, então português, visto numa perspectiva brasileira:
“1.º De repente, sem guerra e do modo mais honroso, acabaram‑se os tempos coloniaes; em 1808, o Brasil não somente cessou de ser colonia, mas tornou‑se até o centro da monarchia portugueza e, em 1815, foi officialmente elevado á categoria de Reino Unido ao de Portugal e Algarves.
2.º Nossa patria foi preservada dos horrores das guerras civis e da anarchia, que assolaram todas as republicas da America do Sul quando realizaram a sua independencia; sem a providencial chegada da familia real, os mesmos fagellos podiam nos acabrunhar tambem.
3.º O Brasil todo, desde o extremo norte até o extremo sul ficou unificado num só bloco, adquiriu cohesão em todas as suas partes; até então, a autoridade do vice‑rei extendia‑se pouco além do Rio; separadas umas das outras, as capitanias quasi que não dependiam do vice‑rei e obedeciam, cada uma de seu lado, ao Conselho Ultramarino e á Mesa de Consciencia de Lisbôa. Com a vinda de D. João, a attenção e as vontades dos Brasileiros em peso dirigiram‑se para a nova capital, para o coração do proprio paiz. Foi a mais natural centralização politica, o convergimento das forças sociaes e das actividades para o mesmo foco, a fusão das antigas capitanias numa só nação, homogénea em tudo: lingua, religião, aspirações, tendencias, nação dotada de vida propria e já emancipada da antiga metropole. Essa vinda de D. João foi o acontecimento que mais contribuiu para rematar e intensificar a admiravel e preciosa cohesão do povo brasileiro, apezar da immensidade de nosso rico territorio; para nós, essa união é um dos mais factores de progresso, uma causa de força e um motivo de patriotico jubilo. [...]
4.º O franqueamento completo de nossos portos para o commercio, 1.º decreto assignado por D. João em terra brasileira;
5.º A autorização dada aos navios de Brasil de ir para qualquer paiz extrangeiro, outorgada em 1814;
6.º O livre exercicio de qualquer industria, mesmo a de ourives, permittido a 1.º de abril de 1808;
7.º A protecção para a industria nacional e os inventores de machinas novas e a preferencia concedida aos productos nacionaes para as compras do governo;
8.º O fomento agricola por meio de premios dados aos que aclimatassem no Brasil plantas exoticas uteis á industria ou ao commercio;
9.º No Rio, a creação da Imprensa Régia, com nosso primeiro periodico, um diario, chamado Gazeta; de uma Escola anatomico‑cirurgica e medica, de um laboratorio chimico, de um instituto vaccinico, do Jardim Botanico perto da Lagôa de Rodrigo de Freitas, de uma Bibliotheca Publica, das Academias de marinha, de sciencias e de bellas artes; uma fabrica de polvora, na Lagôa de Rodrigo de Freitas, transferida mais tarde para lugar mais apropriado na raiz da Serra da Estrella; o calçamento e a illuminação das ruas; o augmento da cidade além do Campo de Sant’Anna, etc.
A população do Rio deve a D. João um serviço de grande utilidade para a alimentação publica: foi ele que mandou vir sardinhas da França e povôou os viveiros de sua Quinta do Cajú, donde se espalharam pela bahia e fóra, fornecendo optimo e abundante alimento.
10.º A Relação do Rio foi elevada a Casa de Supplicação; creou‑se uma Junta de Commercio e o Banco do Brasil com o capital de 1200 contos de reis distribuidos em 1200 acções, isentas de penhora, etc.
11.º As provincias melhoraram tambem com a fundação de 2 novas Relações, uma no Maranhão e outra em Pernambuco; de uma typografia na Cidade do Salvador e na autonomia local concedida ás capitanias do Espirito Santo (1812), Piauhy (1814), Santa Catharina (1817), Rio Grande do Norte (1817) e Sergipe (1820); etc.”81
Por todas estas medidas e muitas outras que não nos oferece registar neste trabalho, o Brasil e o seu povo sentem uma enorme gratidão por este período histórico, sobretudo por D. João, como se verifica em mais uma passagem que consta no livro didáctico Elementos de História do Brasil, editado em 1925: “Seja como fôr, o Brasil deve ser grato á memoria do principe regente D. João, que o amou, lhe foi util e desejou sel‑o ainda mais, e elevou a tal grau de prosperidade que Thomaz Jefferson, o entrevistado de Nimes com José Mariano Leal, escrevia numa carta a Lafayette, em 1817: «O Brasil é mais populoso, mais rico, mais forte e tão instruido como a mãe‑patria»” 82
Conclusão
O objectivo principal deste artigo foi o de partilhar com os nossos leitores os acontecimentos que levaram a Família Real a transferir‑se para o Brasil, evitando assim a sua captura por parte de Junot, e as consequências que essa decisão estratégica teve, fundamentalmente, para o futuro do Brasil.
Entre a espada e a parede, Portugal decidiu‑se pela Aliança Marítima, tendo conseguido salvar o seu império ultramarino e o seu reino, deslocando a Corte para o Brasil. Quem está convencido que a Família Real fugiu para o Brasil está, na nossa modesta opinião, enganado porque esta atitude ousada foi bem preparada e única no período que foi alvo do nosso estudo. Napoleão preparava‑se para capturar os mais altos dignatários de Portugal e dividir o país em três, conforme consta no Tratado de Fontainebleau. A Convenção Secreta de Outubro de 1807 entre Portugal e a Grã‑Bretanha desmistifica esta controvérsia.
Podemos concluir que a decisão tomada pelo Príncipe Regente foi a mais acertada para Portugal e para o mundo e, sobretudo, para o Brasil, que ganhou com a estada da Família Real portuguesa e da Corte, criando os alicerces para a independência83, proclamada com o Grito de Ipiranga pelo Príncipe D. Pedro, futuro imperador do Brasil, em 1821.
Passados quase dois séculos sobre a ida de tantos portugueses para o Brasil e tantas outras migrações, por dificuldades e razões de vária ordem, não deixa de ser curioso o que Ângela Dutra de Menezes escreve no seu livro84 “Bisavô português é igual a carro a álcool: todo o mundo tem um”, fazendo jus ao espírito alegre e divertido do povo brasileiro. Hoje são dois países irmãos com a mesma língua, com uma parte da História comum, em que as relações de toda espécie, desde a social à económica, se incrementam.
Fontes e Bibliografia
Bibliografia
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ANEXO I
Convenção secreta de 1807
Entre o Príncipe Regente o Senhor D. João e Jorge III, Rei da Grã‑Bretanha, sobre a transferência para o Brasil da sede da Monarquia Portuguesa e ocupação temporária da ilha da Madeira pelas tropas britânicas, assinada em Londres a 22 de Outubro e ratificada por parte de Portugal em 8 de Novembro e pela Grã‑ Bretanha em 19 de Dezembro.
Tendo Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal feito comunicar a Sua Majestade Britânica as dificuldades em que se acha em consequência das exigências injustas do Governo Francês e a sua determinação de transferir para o Brasil a sede e a fortuna da Monarquia Portuguesa, antes do que aceder à totalidade das ditas exigências e especialmente àquelas pelas quais o Governo Francês insiste na apreensão de pessoas dos súbditos de Sua Majestade Britânica residentes em Portugal e na confiscação de todas as propriedades inglesas que ali se achavam, bem como na declaração de guerra por parte de Sua Alteza Real ao mesmo tempo proposto, a fim de evitar (sendo possível) a guerra com a França, a consentir em fechar os portos à bandeira inglesa; e considerando que um tal acto de hostilidade da sua parte poderia justificar Sua Majestade Britânica e acaso induzi‑la a usar de represálias, já pela ocupação da ilha da Madeira ou de outra qualquer colónia da coroa de Portugal, ou já forçando a entrada do porto de Lisboa e empregando os mais meios de hostilidade contra a marinha militar e mercante de Portugal; considerando igualmente que a simples apreensão bem fundada da clausura dos portos de Portugal poderia trazer consigo a ocupação provisória das colónias pelas armas de Sua Majestade Britânica e que um passo ou declaração hostil da França contra Portugal não deixaria de produzir aquele mesmo efeito; e Sua Majestade Britânica, pela sua parte, fazendo justiça aos sentimentos de amizade e boa fé que têm caracterizado as últimas comunicações de Sua Alteza Real o Príncipe Regente, e estando determinado a auxiliar por todos os meios que se acham à sua disposição a nobre resolução, que Sua Alteza Real o Príncipe Regente acaba de anunciar, de transferir a sede da Monarquia Portuguesa para o Brasil antes do que subscrever às exigências da França em toda a sua extensão; e desejando igualmente; e no caso mesmo em que Sua Alteza Real consentisse em fechar os seus portos à Grã‑Bretanha (passo este que Sua Majestade Britânica veria com pesar e a que nunca poderia supor‑se que dera o seu consentimento), conciliar quanto possível os sentimentos e interesses de um antigo e fiel aliado, e proceder para com Portugal com toda a moderação compatível com o que é devido à sua honra e aos interesses dos seus súbditos, e com o objecto essencial que não pode perder de vista, qual é o de impedir que nem as colónias nem a marinha militar e mercante de Portugal, no todo ou em parte, caiam nas mãos da França: as duas Altas Partes Contratantes determinaram em consequência tomar de um comum acordo as medidas e obrigações recíprocas que se julgarem mais convenientes para conciliar os seus interesses respectivos, e para prover em todo o caso à segurança da amizade e boa inteligência que têm subsistido há tantos séculos entre as duas coroas. E a fim de discutir estas medidas e de preencher este saudável fim, Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal nomeou por seu plenipotenciário ao Cavalheiro de Sousa Coutinho, do seu Conselho e seu enviado extraordinário e Ministro Plenipotenciário residente em Londres: e Sua Majestade de El‑Rei do Reino Unido da Grã‑Bretanha e Irlanda nomeou por seu plenipotenciário ao muito honrado Jorge Canning, Conselheiro privado de Sua dita Majestade e seu principal Secretário de Estado na Repartição dos Negócios Estrangeiros; os quais, depois de se terem comunicado os seus respectivos plenos poderes, e achando‑os em boa e devida forma, convieram nos artigos seguintes:
ARTIGO I
Até que haja a certeza de algum passo ou declaração hostil da França contra Portugal ou que Portugal, a fim de evitar a guerra com a França, consinta em cometer de alguma sorte um acto de hostilidade contra a Grã‑Bretanha, fechando os seus portos à bandeira inglesa, nenhuma expedição será feita pelo Governo Britânico contra a ilha da Madeira nem contra qualquer possessão portuguesa, e, quando uma semelhante expedição se julgar necessária, será a mesma noticiada ao Ministro de Sua Alteza Real o Príncipe Regente residente em Londres e com ele concertada.
Pelo seu lado, Sua Alteza Real o Príncipe Regente obriga‑se de ora em diante a não permitir a remessa de reforço algum de tropas (excepto de inteligência e acordo com Sua Majestade Britânica), para o Brasil e para a ilha da Madeira, nem de para ali mandar nem ali permitir a assistência de nenhum oficial francês, seja no serviço da França, seja no serviço de Portugal.
Outrossim se obriga a transmitir sem demora ao governo da ilha da Madeira ordens secretas eventuais para que não faça resistência a uma expedição inglesa cujo comandante lhe anunciar, debaixo de sua palavra de honra, que a dita expedição tenha sido preparada de inteligência e acordo com Sua Alteza Real o Príncipe Regente.
ARTIGO II
No caso em que Sua Alteza Real o Príncipe Regente se visse obrigado a levar a pleno e inteiro efeito a sua magnânima resolução de passar para o Brasil, ou se, mesmo sem ser a isso forçado pelos procedimentos dirigidos contra Portugal, Sua Alteza Real se decidisse a empreender a viagem do Brasil ou a mandar para ali um Príncipe de sua família, estará pronto Sua Majestade Britânica a ajudá‑lo nesta empresa, a proteger o embarque da Família Real e a escoltá‑los à América. Para este fim obriga‑se Sua Maestade Britânica a mandar aprestar imediatamente nos portos de Inglaterra uma esquadra de seis naus de linha, a qual partirá logo para as costas de Portugal, e de ter neles igualmente, pronto a embarcar‑se, um exército de cinco mil homens, que partirá para Portugal ao primeiro pedido do Governo Português.
Uma parte deste exército ficará de guarnição na ilha da Madeira, mas não entrará ali senão depois que Sua Alteza Real tiver tocado na mesma ou passado a ilha indo para o Brasil.
ARTIGO III
Mas, no caso infeliz em que o Príncipe Regente, a fim de evitar a guerra com a França, se visse obrigado a fechar os portos de Portugal às embarcações inglesas, o Príncipe Regente consente que as tropas inglesas sejam admitidas na ilha da Madeira, imediatamente depois da troca das ratificações desta convenção, declarando o comandante da expedição inglesa ao Governo Português que a ilha será guardada em depósito para Sua Alteza Real o Príncipe Regente até à conclusão da paz definitiva entre a Grã‑Bretanha e a França.
As instruções que se derem ao dito comandante inglês para o governo da ilha durante a sua ocupação pelas armas de Sua Majestade Britânica serão concertadas com o Ministro de Sua Alteza Real o Príncipe Regente residente em Londres.
ARTIGO IV
Sua Alteza Real o Príncipe Regente promete de jamais ceder em caso algum, seja no todo seja na parte, a sua marinha militar ou mercante ou de as reunir às da França ou de Espanha ou de outra qualquer potência.
Obriga‑se outrossim, no caso de passar para o Brasil, a levar consigo a sua marinha militar e mercante, seja perfeita ou incompletamente aparelhada, ou, não podendo executar‑se isto, de transferir como depósito para a Grã‑Bretanha aquela parte que não puder levar imediatamente consigo; e Sua Alteza Real ajustará depois com Sua Majestade Britânica os meios de mandar ir estas embarcações para o Brasil com toda a segurança.
ARTIGO V
No caso de clausura dos portos de Portugal, obriga‑se Sua Alteza Real a mandar sair incessantemente para o Brasil metade da sua marinha de guerra e a conservar a outra metade em número pouco mais ou menos de cinco ou seis naus de linha e de oito ou dez fragatas, em meio armamento (pelo menos), no porto de Lisboa, de sorte que, à primeira indicação de uma intenção hostil da parte dos franceses ou dos espanhóis, aquela força naval possa reunir‑se à esquadra britânica destinada a este serviço e servir ao transporte de Sua Alteza e da Família Real para o Brasil. Com o fim de melhor assegurar o bom êxito deste acordo, obriga‑se o Príncipe Regente a dar o comando da sua esquadra no porto de Lisboa, bem como o comando da que enviar para o Brasil, a oficiais cujos princípios políticos sejam aprovados pela Grã‑Bretanha.
As duas Altas Partes Contratantes convieram em autorizar os comandantes português e inglês, nas respectivas estações de Lisboa por um lado e das costas de Portugal pelo outro, a corresponderem‑se secretamente sobre tudo que possa ter relação com a reunião eventual das esquadras inglesa e portuguesa.
Quanto à metade da marinha militar que possa ser enviada para o Brasil será a mesma ali desarmada à sua chegada, a não ser que os dois governos decidem outra coisa.
ARTIGO VI
Uma vez que se ache estabelecida a sede da Monarquia Portuguesa no Brasil, obriga‑se Sua Majestade Britânica, em seu nome e no de seus sucessores, a não reconhecer jamais como Rei de Portugal Príncipe algum que não seja o herdeiro e representante legítimo da Família Real de Bragança; e mesmo a renovar e manter com a regência que Sua Alteza Real puder deixar estabelecida em Portugal, antes de partir para o Brasil.
ARTIGO VII
Quando o Governo Português estiver estabelecido no Brasil proceder‑se‑á à negociação de um tratado de auxílio e de comércio entre o Governo Português e a Grã Bretanha.
ARTIGO VIII
Esta convenção será tida secreta para o presente e não se publicará sem o consentimento das duas Altas Partes Contratantes.
ARTIGO IX
Será ratificada de uma e outra parte, e as ratificações trocadas em Londres no prazo de seis semanas, ou antes, se puder ser, a contar do dia da assinatura.
Em fé do que, nós abaixo assinados, plenipotenciários de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, em virtude de nossos respectivos plenos poderes, assinámos a presente convenção e lhe pusemos o sinete de nossas armas.Feita em Londres, a 22 de Outubro de 1807. O Cavalheiro de Sousa Coutinho – George Canning.
Declaração
O abaixo assinado, Principal Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de Sua Magestade Britânica, consentindo em subscrever ao artigo II desta convenção, recebeu as ordens de El‑Rei para declarar que a execução daquela parte do dito artigo pela qual se estipula o mandar‑se uma esquadra e tropas de Sua Majestade para o Tejo, a fim de proteger o embarque da Família Real de Portugal, depende da segurança, que será dada, de que os fortes sobre o Tejo, a saber: os fortes de S. Julião e do Bugio, serão previamente entregues ao comandante das tropas britânicas, bem como o forte de Cascais, se o embarque tiver lugar daquele sítio, ou então do de Peniche, no caso de que a Família Real se tenha retirado àquela península; e ficarão em poder do dito comandante até que o objecto para o qual as tropas são mandadas estiver preenchido ou que Sua Alteza Real tiver determinado a quem as tropas inglesas devem restituí‑lo.
O Cavalheiro de Sousa Coutinho, plenipotenciário de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, não se achando autorizado, pelas instruções de que actualmente está munido, a contratar obrigação alguma a tal respeito, o abaixo assinado recebeu ordem de acompanhar o tratado com esta declaração explicativa e de pedir que a sua segurança acima mencionada seja enviada com a ratificação do Príncipe Regente.
Feita em Londres, a 22 de Outubro de 1807. – George Canning.
Artigos adicionais
ARTIGO I
No caso da da clausura dos portos de Portugal à bandeira inglesa será estabelecido um porto na ilha de Santa Catarina ou em qualquer outro lugar da costa do Brasil, aonde todas as mercadorias inglesas, que ao presente são admitidas em Portugal, serão importadas livremente em embarcações inglesas, pagando os mesmos direitos que se pagam actualmente pelos mesmos artigos nos portos de Portugal, e este arranjamento durará até novo acordo.
Este artigo adicional terá a mesma força e valor como se fora inserto palavra por palavra na convenção assinada hoje e será ratificada ao mesmo tempo.
Em fé do que nós, abaixo assinados, plenipotenciários de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, em virtude de nossos respectivos plenos poderes, assinámos a presente convenção e lhe pusemos o sinete de nossas armas.
Feita em Londres, a 22 de Outubro de 1807. O Cavalheiro de Sousa Coutinho assino sub spe rati, declarando que não tenho instruções a tal respeito, e conquanto que Sua Alteza Real, tornando a abrir os portos de Portugal, possa reconsiderar ou alterar este artigo) – George Canning.
ARTIGO II
Fica plenamente entendido e ajustado que desde o momento em que os portos de Portugal forem fechados à bandeira inglesa, e por todo o tempo que assim continuem, os tratados existentes entre a Grã‑Bretanha e Portugal devem considerar‑se como suspensos, pois que concedem à bandeira portuguesa privilégios e isenções de que as outras nações neutrais não gozam e que, segundo o direito das gentes, não pertencem ao estado de simples neutralidade.
Este artigo adicional terá a mesma força e valor como se fora inserto palavra por palavra na convenção assinada hoje e será ratificada ao mesmo tempo.
Em fé do que nós, abaixo assinados, plenipotenciários de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, em virtude de nossos respectivos plenos poderes, assinámos a presente convenção e lhe pusemos o sinete de nossas armas.
Feita em Londres, a 22 de Outubro de 1807. ‑O Cavalheiro de Sousa Coutinho (assino sub spe rati, declarando que não tenho instruções a tal respeito, e conquanto que o efeito desta suspensão não seja retroactivo e não cause a perda das propriedades portuguesas confiadas à fé dos tratados existentes) – George Canning.
Ratificação à Convenção secreta de 1807Do Príncipe Regente e Senhor D. João, dada a 8 de Novembro.
D. João, por Graça de Deus, Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar, África, da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pércia e da Índia, etc.. Faço saber a todos os que a presente carta de confirmação, aprovação e ratificação virem que em 22 de Outubro do corrente ano se concluiu e assinou na cidade de Londres uma convenção entre mim e o sereníssimo e potentíssimo Príncipe Jorge III, Rei do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda, meu bom irmão e primo, com o fim de conservar intacta à Monarquia Portuguesa a ilha da Madeira e as mais possessões ultramarinas, sendo Plenipotenciários para esse efeito da minha parte D. Domingos António de Sousa Coutinho, do meu Conselho, Fidalgo da minha Casa e meu Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário naquela Corte, e da parte de Sua Majestade Britânica o muito honrado Jorge Canning, Conselheiro Privado de Sua dita Majestade e seu Principal Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, da qual convenção o teor é o seguinte:
(Segue‑se a convenção)
E sendo‑me presente a mesma convenção, cujo teor acima fica inserto, e bem visto, considerado e examinado por mim o que nela se contem, a aprovo, ratifico e confirmo, assim no todo como em cada uma das suas cláusula e estipulações, exceptuando algumas expressões de preâmbulo, o § I.º do artigo V, a declaração ao artigo II, que se ratifica com restrição, e o artigo I adicional, pelas razões indicadas nas observações que a esta convenção vão juntas, assinadas pelo meu Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra: prometendo em fé e palavra real observá‑la e cumpri‑la inviolavelmente e fazê‑la cumprir e observar sem permitir que se faça coisa alguma em contrário, por qualquer modo que possa ser. E em testemunho e firmeza do sobredito fiz passar a presente carta, por mim assinada, selada com o selo grande das minhas armas e referendada pelo dito meu Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, abaixo assinado.
Dado no Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, a 8 de Novembro de 1807. – O Príncipe com guarda – António de Araújo de Azevedo.
Observações a que se refere a ratificação supra
O preâmbulo da convenção de 22 de Outubro de 1807 principia por uma suposição, qual é a que se acha nas seguintes palavras « ayant fait à Sa Majesté Britannique sa détermination de transférer au Brésil le siège et la fortune de la Monarchie Portugaise, plutôt que d’accéder à la totalité de ces demandes»; Sua Alteza Real prometeu sempre a Sua Majestade Britânica, já directamente, já por meio dos respectivos Ministros, não aceder à proposição da apreensão das pessoas e confiscação de bens; mas nunca disse que antes queria transferir para o Brasil o assento da Monarquia Portuguesa do que aceder a todas as proposições.
Os lugares em que se acha feita e repetida esta promessa são os que se seguem:
Um ofício para o Ministro de Sua Alteza Real em Londres de 12 de Agosto de 1807.Disse nele:Ordena‑me Sua Alteza Real que expresse a V. S.ª a sua firme resolução de não assentir jamais à confiscação dos bens dos vassalos ingleses; isto deve V. S.ª segurar ao Ministério Britânico, mas Sua Alteza Real espera, em reciprocidade desta tão justa como decorosa acção, que esse Governo não dê ordens aos seus comandantes das forças marítimas para fazer hostilidades sobre navios portugueses. Qualquer procedimento desta natureza serviria para que a França e a Espanha clamassem altamente contra a nossa renitência sobre a sua proposição.
Outro ofício de 20 de Agosto para o mesmo Ministro:Os bens ingleses não hão‑de ter perigo algum, e quando seja preciso comboiá‑los ou transportá‑los, não se faz necessária uma esquadra ou divisão de esquadra para esse fim; um ou dois navios de guerra fora ou dentro do Tejo parece ser quanto basta; mas torno a segurar a V. S.ª que Sua Alteza Real está determinado mais depressa a perder o seu domínio neste País do que a sacrificar os sujeitos britânicos e os seus cabedais.
No mesmo ofício acrescenta:Por esta mesma razão reservo a escrever a V. S.ª em outra ocasião, para V. S.ª tratar nessa Corte sobre o modo com que ela poderá contribuir para a segurança da Família Real, protegendo com as suas forças navais a sua retirada. No caso que as circunstâncias obriguem a esta mesma resolução, tomarei as ordens de Sua Alteza Real a respeito deste triste e importante negócio, que interessa tanto os nossos corações, pois que só por este modo poderá salvar uma parte da Monarquia Portuguesa e transmiti‑la aos seus descendentes.
Finalmente em outro ofício para o dito Ministro, de 7 de Setembro, disse:Devo participar a V. S.ª, para que o comunique verbal e confidencialmente a esse Ministério, que Sua Alteza Real tomou a resolução de mandar aprontar a sua marinha para o caso de ser urgente a sua retirada e da Real Família. Dois acontecimentos podem obrigar a esta resolução: o primeiro a determinação de uma conquista; e o segundo a pretensão de introduzir tropas no País para guarnecer as costas, debaixo do pretexto de amizade, o que seria para a Monarquia mais perigoso do que a conquista.
Em outro ofício de 23 de Setembro se confirma esta mesma nos seguintes termos:Sua Alteza Real está firme em não assentir à proposição a respeito da apreensão de pessoas e confiscação de bens;
e outrossim acrescenta:Contudo não é justo precipitar‑se esta partida da Família Real para os Estados do Brasil, porque Sua Alteza Real não deve mostrar que abandona sem justa causa os seus vassalos na Europa.
Sua Alteza Real, escrevendo directamente a Sua Majestade Britânica, lhe deu seguranças análogas ao que ordenou ao seu Ministro em Londres, para ser participado ao Governo Britânico.
Ultimamente, na nota dirigida a Lord Strangford, em 17 de Outubro, se diz o seguinte:Sua Alteza Real, não havendo assentido à totalidade das proposições de parte das duas potências aliadas, de que resultou o retirarem‑se desta Corte os seus agentes, tem a íntima satisfação de que, não obstante o perigo a que se expôs, os súbditos de Sua Majestade Britânica ficarão ilesos na sua liberdade pessoal e nas suas propriedades.
Sua Alteza Real cumpriu quanto lhe foi possível a sua palavra, dando todo o tempo para os súbditos ingleses se retirarem e exportarem os seus efeitos com a isenção completa de direitos; agora porém, instando a França pela execução da sua proposição a este respeito, com ameaças e com a marcha do exército de Bayona para o interior de Espanha, foi Sua Alteza Real obrigado, bem que muito a seu pesar, a fazer a demonstração exigida, a fim de ver se ainda por este modo evita o ataque de Portugal; e Sua Majestade Britânica pode estar certa de que os súbditos britânicos experimentarão nas suas pessoas, e em algum resto dos seus bens, os efeitos possíveis da sua Real protecção.(Os que ficaram em Portugal são aqueles que por sua livre vontade, e apesar das reiteradas instâncias dos agentes de Sua Majestade Britânica, preferiram não deixar os seus estabelecimentos).
Em nenhum dos lugares acima citados se diz que Sua Alteza Real prefereria transferir‑se para o Brasil, ao aceder à proposição feita pela França; mas antes positivamente se afirma e repete que só em última extremidade é que tomaria partido de abandonar este Reino.
Tão‑pouco considerou jamais Sua Alteza Real que a clausura dos portos pudesse justificar Sua Majestade Britânica a excitá‑la a usar de represália, ocupando a ilha da Madeira ou qualquer outra colónia portuguesa. Sua Alteza Real, em todas as ocasiões desta negociação, mostrou sempre estar persuadido de que sua Majestade Britânica reconheceria de que só circunstâncias mui imperiosas e irresistíveis é que poderiam obrigá‑lo à clausura dos portos aos navios ingleses; e o exemplo de 1801, em que a Grã‑Bretanha assentiu a um igual passo, tranquilizava a Sua Alteza Real, assim como o reconhecido carácter de justiça e moderação de Sua Majestade Britânica, e não menos o comum interesse de ambas as Monarquias: como pois podem ter lugar os termos do prâmbulo «et considérant qu’un tel acte d’hostilité» até às palavras «ne pouvait manquer ce même effect» e como podem ter lugar os termos «demande à laquelle Sa Majesté Britannique ne pourrait jamais être censée avoir donné sont consentement?» Quando ainda que Sua Majestade Britânica não expresse este consentimento, ele se devia presumir tacitamente dado, pois que a presente convenção deve ser fundada neste motivo! É pois evidente que estas expressões do preâmbulo não podem servir de base à convenção, que tem por objecto conservar intacta à Monarquia Portuguesa a ilha da Madeira e as mais possessões ultramarinas.
ARTIGO I. – Este artigo não é concebido conforme as instruções dadas ao Ministro de Sua Alteza Real em Londres. Nelas se declara que, enquanto não houvesse certeza de passo algum ou declaração de hostil da França a Portugal, não poderia o Governo Britânico intentar expedição alguma contra a Madeira ou qualquer outra possessão portuguesa; e do artigo estipulado entende‑se que terá lugar esta expedição logo que Portugal cometer de qualquer modo um acto de hostilidade contra a Grã‑Bretanha, fechando os seus portos à bandeira inglesa. O grande perigo a que esta ocupação da Madeira arriscaria se acha claramente exposto nas instruções sobre o artigo III, e por isso aqui se não repete.
Contudo, no momento presente, não por hostilidades da parte de Portugal, mas pela marcha das tropas francesas e espanholas que se aproximam às fronteiras, pode a Inglaterra pôr em prática o que se estipula no dito artigo I, sem ser preciso participá‑lo ao Ministro de Sua Alteza Real em Londres, que dali se deve retirar.
O último parágrafo deste artigo «Il s’engage» até ao fim está muito bem concebido e se aprova, mas é preciso que o comandante inglês guarde sobre ele o mais inviolável segredo.
ARTIGO II. – É aprovado.
ARTIGO III. – Este artigo fica aprovado, em consequência do que se disse no fim das observações sobre o artigo I; reflectindo sòmente que não é justo alegar para isto a clausura dos portos, mas o que estava apontado no projecto da convenção, como já acima se disse.
ARTIGO IV. – O primeiro parágrafo deste artigo, que diz respeito a obrigar‑se Sua Alteza Real a não ceder em caso algum a marinha de guerra ou mercante, nem tão‑pouco a reuni‑la às de França ou de Espanha, não se pode estipular; e a este respeito repito as instruções que foram dadas (artigo V).É do interesse de Sua Alteza Real que em nenhum caso a marinha portuguesa de guerra e mercante passe a poder dos franceses, e cuidará muito em fazer partir a marinha real para o Brasil, impedindo, quanto lhe seja possível, a sua reunião à de França ou Espanha. Tanto a marinha real como a mercante se retirará quando Sua Alteza Real for obrigado a sair de Portugal. Neste sentido pode V. S.ª traçar este artigo. No caso porém de se achar alguma parte da marinha real neste porto, a Inglaterra pode impedir a sua saída por meio de forças de observação.
Sua Alteza Real, ainda que persista nestas mesmas intenções, não deve estipular uma cláusula a que pode ser forçado a faltar para o futuro, ao menos por uma promessa, porque não haveria outro meio de fazer cessar instâncias apoiadas pela força. A Inglaterra tem meios de evitar o efeito desta violenta condescendência.
O parágrafo deste mesmo artigo que principia «Il s’engage en outre» até ao fim é aprovado, pois que esta é a intenção de Sua Alteza Real.
ARTIGO V. – O primeiro parágrafo deste artigo não pode ser tratado pela razão de ser preciso que toda a marinha portuguesa esteja sempre à disposição de Sua Alteza Real, para a contingência de ser necessário transportar para o Brasil os efeitos preciosos, assim como as pessoas e bens dos que o seguirem.
Esta foi a razão, por causa dos comboios, que obrigou Sua Alteza Real a desistir da partida do Príncipe da Beira para o Brasil, e a reservá‑la para quando toda a Real Família se ausentasse, e para este fim têm sempre continuado os preparos da marinha.
A pretendida aprovação, da parte do Governo Britânico, dos oficiais que houveram de comandar a esquadra no porto de Lisboa, assim como a que for para o Brasil, é indecorosa, e mesmo de alguma sorte impraticável, porque só a Sua Alteza Real compete esta aprovação; e quando Sua Majestade Britânica tivesse que opor aos princípios políticos de tais oficiais, Sua Alteza Real nenhuma dúvida teria em removê‑los destes destinos e empregar outros em seu lugar, posto que não tem suspeita alguma contra os oficiais da sua marinha que a faça vacilar sobre a escolha.
O parágrafo que principia «Les deux hautes parties contractantes sont convenues» até «des escadres anglaise e portugaise» é aprovado.
O parágrafo que principia «Quant à la moitié de la marine militaire» até «par les deux Gouvernements» fica sendo inútil, visto que Sua Alteza Real reserva em totalidade para se retirar, quando as circunstância o exijam.
ARTIGO VI. – Este artigo é aprovado.
ARTIGOS VII, VIII e IX. – Estes artigos são aprovados.
Declaração assinada por S. Ex.ª George Canning
ARTIGO II (da convenção). – Sua Alteza Real não tem dúvida em dar ordem para que as fortificações de qualquer porto donde saia sejam entregues ao comandante britânico; mas isto só deve ser no momento da saída, porque antecedentemente a ela seria isso indecoroso a Sua Alteza Real, e por isso é ratificada com esta restrição.
ARTIGO I adicional). – Sua Alteza Real tinha concebido o projecto de estabelecer na ilha de Santa Catarina um porto para o comércio do Brasil, quando intentou mandar para aquela colónia seu filho primogénito, o Príncipe da Beira; mas como não se efectuou a sua partida, não se pode por ora estabelecer um plano de comércio, instituindo uma alfândega geral para esse fim. Se acaso Sua Alteza Real partir com toda a Real Família, fica tirada toda a dúvida; quando não será preciso convir com a Inglaterra de algum meio (o que é possível) de dirigir o comércio, que o mesmo Senhor quer favorecer, tanto para comprazer com Sua Majestade Britânica como porque as manufacturas inglesas permitidas são de primeira necessidade para os habitantes daquela colónia.
Mas no momento actual o estabelecimento na ilha de Santa Catarina faria irritar as duas potências aliadas do continente, o que Sua Alteza Real quer por último remédio evitar.
Resta pois a convir com a Inglaterra em um meio mais disfarçado para se fazer este comércio, para o que se tratará com o Governo Britânico quando ele queira; e esta é a razão de não ser ratificado este artigo.
Para a execução de qualquer plano a este respeito é preciso termos a certeza de haver comunicações com o Brasil, a fim de se poderem dar ordens competentes aos governadores, porque presentemente não existe comunicação com aquele continente, estando o comércio na maior incerteza.
Necessita‑se também de estipular a segurança de Navios que forem avulsos e a concessão para se cruzar contra os argelinos para a protecção deste comércio, como já foi ordenado ao Ministro de Sua Alteza Real em Londres, o que requereu.
ARTIGO II (adicional). – É aprovado.
Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 8 de Novembro de 1807. – Em conformidade do original. – Araújo.
Artigos adicionais à convenção secreta de 1807
Tocantes aos arranjamentos definitivos para o governo da ilha da Madeira enquanto ali residissem as tropas britânicas, assinados em Londres a 16 de Março de 1808 e ratificados por parte de Portugal em 5 de Setembro do dito ano e pela da Grã‑Bretanha em 14 de Janeiro de 1809.
Como se tornou necessário fazer‑se novos e definitivos arranjamentos de acordo com o Ministro de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal para o governo da ilha da Madeira durante o tempo que as tropas de Sua Majestade Britânica ali permanecerem, os abaixo assinados plenipotenciários de Sua Alteza Real o Principe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, tendo‑se novamente comunicado os plenos poderes em virtude dos quais concluíram e assinaram a convenção de 22 de Outubro de 1807, convieram nos seguintes artigos, a saber:
ARTIGO I
As duas Altas Partes Contratantes convêm em declarar, de um comum acordo, a capitulação assinada a 26 de Dezembro de 1807 pelo governador português, o Sr. Pedro Fagundes Bacelar Dantas e Meneses, de uma parte, e o almirante Sir Samuel Hood, e bem assim o general Beresford, da outra, nula e de nenhum efeito, e se for necessário aqui a revogam e anulam no todo e em todas as suas partes. E sua Majestade Britânica, em seu nome e de seus sucessores, promete de nunca fundar direito algum ou formar qualquer pretensão derivada da sobredita capitulação e a cargo de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de seus sucessores.
ARTIGO II
Expedir‑se‑ão ordens sem demora ao actual comandante das tropas britânicas na ilha da Madeira a fim de que ele entregue ao governador português o Sr. Pedro Fagundes Bacelar Dantas e Meneses, o governador da ilha, com as formalidades do costume; logo o estandarte de Sua Alteza Real ou a bandeira portuguesa se tornará a colocar em todos os seus fortes e baterias da ilha.
ARTIGO III
O comandante militar inglês da ilha será reconhecido desde agora pelo governador português como se tivesse recebido de Sua Alteza Real o Príncipe Regente o comando das tropas portuguesas e, nesta qualidade, reunirá o comando absoluto das tropas das duas nações, de sorte que todos os oficiais e soldados, de qualquer graduação que sejam, serão inteiramente sujeitos às suas ordens e não existirá força alguma militar na ilha que seja independente da sua autoridade; porém, não se ingerirá de modo algum na administração civil, nem das alfândegas, nem das rendas públicas, nem da sua cobrança e aplicação, não publicará em seu nome proclamação ou ordem dirigida às autoridades civis nem aos habitantes da ilha, entendendo‑se sempre que o governador português será obrigado a ordenar sem demora, por uma proclamação em nome de Sua Alteza Real o Príncipe Regente, qualquer medida militar que o comandante das tropas das duas nações lhe representar como indispensável para a defesa militar da ilha, tal como a reunião das milícias (sendo necessário), feita de um modo conforme aos regulamentos publicados por ordem de Sua Alteza Real o Príncipe Regente, e sem a tal respeito inovar coisa alguma, e que, no caso de dúvida entre as duas autoridades, o governador português se conformará provisoriamente com o pedido do sobredito comandante militar e dará a sua parte a Ministro de Sua Alteza Real o Príncipe Regente em Londres o qual se concertará para este efeito com os Ministros de Sua Majestade Britânica, e ordens recíprocas serão reexpedidas de Londres para terminar a diferença.
ARTIGO IV
O sustento das tropas inglesas estará inteiramente a cargo do Governo de Sua Majestade Britânica, excepto o aquartelamento, que lhe será designado, como o é actualmente, à custa do Governo Português. O governador português será obrigado a fazer com que o sobredito comandante militar tenha as provisões e géneros necessários preços correntes na ilha.
ARTIGO V
Ao militar não será permitido fazer requisições de víveres; mas o governador português será obrigado a dar‑lhe, livre dos direitos de entrada na alfândega, segundo a relação assinada pelo comandante militar, as quantidades e artigos seguintes que forem necessários para o alimento das tropas, a saber: farinha de toda a espécie, porco, toucinho, carne fresca e salgada e manteiga, e em geral tudo o que for necessário para o provimento das tropas; bem entendido que essa franquia não se estenderá aos outros habitantes da ilha, quer nacionais, quer ingleses, sem uma expressa e nova ordem de Sua Alteza Real o Príncipe Regente.
ARTIGO VI
Este arranjamento subsistirá até à conclusão da paz definitiva entre a Grã‑Bretanha e a França.
ARTIGO VII
Conveio‑se em que estes artigos terão a mesma força como se tivessem sido insertos na convenção secreta concluída e assinada em Londres a 22 de Outubro de 1807 e serão considerados como fazendo parte da mesma.
ARTIGO VIII
Estes artigos serão ratificados por Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e Sua Majestade Britânica no espaço de seis meses, ou antes se se puder fazer.
Em fé do que, nós abaixo assinados, plenipotenciários, de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, em virtude dos nossos plenos poderes respectivos, assinámos os presentes artigos e lhes pusemos o sinete de nossas armas.
Feito em Londres, a 16 de Março de 1808. – O Cavalheiro de Sousa Coutinho. – George Canning.
Artigos secretos
ARTIGO I
Serão expedidas ordens ao comandante actual das tropas britânicas na ilha da Madeira, a fim de que ele se concerte com o governador português, o Sr. Pedro Fagundes Bacelar Dantas e Meneses, sobre os termos e teor da proclamação que se publicar, na qual o comandante actual das tropas britânicas revogue a proclamação de 31 de Dezembro e declare que Sua Majestade Britânica desliga os habitantes da ilha da Madeira, individualmente e em massa, do juramento de fidelidade à Grã‑Bretanha (oath of allegiance) que se exigiu deles. Recomendar‑se‑á expressamente ao governador português, o Sr. Pedro Facundes Bacelar Dantas e Meneses, que tome todas as medidas de prevenção a fim de que esta nova proclamação não excite efervescência alguma nos habitantes, nem animosidade recíproca entre os súbditos das duas Nações.
ARTIGO II
O palácio do governo será restituído ao governador português tal qual o habitava antes de ser do mesmo desapossado. Todos os corpos administrativos ou indivíduos (portugueses e funcionários públicos) entrarão na posse das casas e efeitos de que puderem ter sido desapossados, salvo os conventos destinados ao aquartelamento das tropas, de que acima se fez menção, e bem entendido que o comandante militar será hospedado de um modo conveniente à sua categoria.
ARTIGO III
Se algum oficial britânico se tiver apresentado diante das ilhas dos Açores ou de Cabo Verde e intimado uma ou mais daquelas ilhas para se entregar e obrigado a capitular, o oficial britânico será retratado, as tropas inglesas se retirarão à Madeira e a capitulação será considerada de nenhum valor; mas qualquer disposição tomada pelo governador e capitão general das ilhas dos Açores ou pelo governador das ilhas de Cabo Verde e qualquer acordo feito pelos mesmos governadores com oficiais britânicos relativamente ao comércio das mesmas ilhas antes da data deste dia serão observados religiosamente de uma e outra parte, até que a vontade Sua Alteza Real o Príncipe Regente se já conhecida; bem entendido que este acordo não prejudique no futuro de modo algum os direitos respectivos das duas partes contratantes e que não contenha alguma cláusula que derrogue a soberania de Sua Alteza Real nas ilhas acima ditas.
Estes artigos secretos terão a mesma força e valor que se fossem insertos entre os outros artigos assinados hoje e serão ao mesmo tempo ratificados.
Em fé do que nós, abaixo assinados, plenipotenciários de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, em virtude de nossos plenos poderes respectivos, assinámos os presentes artigos secretos e lhes pusemos o sinete de nossas armas.
Feito em Londres, a 16 de Março de 1808. – O Cavalheiro de Sousa Coutinho – George Canning.
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* Coronel de Infantaria. Mestrando em História Militar. Director do Jornal do Exército.
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1 A Aliança Inglesa: Subsídios para o seu estudo, compilados e anotados por José de Almada, Lisboa: Impressa Nacional, Lisboa, 1946. (Vd. Anexo I).2 Local onde estava a Corte imperial.3 Tendo ficado “a ver navios”.4 Vd. BRAZÃO, Eduardo – Relance da História Diplomática de Portugal. Porto: Livraria Civilização, 1940, p. 201.5 Vd. F. T. D. – Elementos de História do Brasil. Rio de Janeiro, São Paulo: Livraria Paulo de Azevedo & C. (s. d.).6 Rei de Espanha.7 Vd. PEREIRA, Angelo – D. João VI Príncipe e Rei: A Retirada da Família Real para o Brasil, 1807. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1953. p. 174.8 Vd. IDEM, Ibidem, pp. 173‑174.9 Vd. IDEM, Ibidem, p. 174.10 Vd. F.T.D., – Ob. cit., pp. 312‑313.11 Vd. PEREIRA, Angelo, – Ob. cit., pp. 174‑175.12 Vd. IDEM, ibidem, p. 181.13 Vd. IDEM, ibidem, p. 181.14 Vd. IDEM, ibidem, p. 180.15 Vd. NEVES, Accursio José das – Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1810. Vol. 1, pp. 170‑175.16 In BRANDÃO, Raul – El‑Rei Junot. Lisboa: Livraria Brazileira, 1912, pp. 106‑107.17 BRANDÃO, Raul – El‑Rei Junot. Lisboa: Livraria Brazileira, 1912, pp. 96‑99.18 BALBI, Adrien – Essai Statistique sur Le Royaume de Portugal et D’Algarve. Paris: Chez Rey et Gravier, Libraires, 1822. Tomo Premier, pp. 27‑28. (Fac‑símile: Imprensa Nacional‑Casa da Moeda,SA, Lisboa; Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2004).19 Vd. RUDERS, Carl Israel – Viagem em Portugal: 1798‑1802. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1981.20 Vd. IDEM, Ibidem, p. 7.21 Vd. IDEM, Ibidem, p. 19.22 Vd. IDEM, Ibidem, p. 163.23 Vd. IDEM, Ibidem, p. 164.24 Vd. IDEM, Ibidem, p. 165.25 NEVES, José Acúrsio das – Obras Completas de José Acúrcio das Neves, vol. 1: História Geral das Invasões dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomos I e II. Porto: Edições Afrontamento, [s. d.]. p. 242.26 IDEM, Ibidem, p. 109.27 Thomaz de Mello Breyner na sua obra – Memorias de um Professor, p. 176, “Pode dizer‑se que o velho Eusebio foi um almoxarife de carreira, pois começou ainda muito novo por ser varredor do palacio, passando a moço de salla, a reposteiro, ajudante d’almoxarife e por fim almoxarife. Tinha muita cultura e contava muitas historias. Lembrava‑se dos soldados francezes e dos inglezes habitando o palacio e falando com horror no fuzilamento d’um saloio chamado Jacinto Corrêa contra o muro da Tapada junto á fachada norte do palacio.”28 Administrador actual dos palácios e tapadas reais.29 Vd. Diário de Eusebio Gomes.30 PEREIRA, José Rodrigues – Campanhas Navais – 1807‑1823: A Marinha Portuguesa na Época de Napoleão. Lisboa: Tribuna da História, 2005, Vol. II, p. 15.31 Acúrsio José das Neves refere no seu livro, acima descrito, 84 peças.32 Transportava os elementos da Academia Real dos Guardas‑Marinhas.33 José Acúrsio das Neves (J. A. N.) considerava que a nau tinha 74 peças.34 J. A. N. considerava que a nau tinha 74 peças.35 J. A. N. considerava que a nau tinha 74 peças.36 J. A. N. considerava que a fragata tinha 44 peças.37 J. A. N. considera que o comandante deste navio foi o Capitão‑de‑fragata D. João Manuel.38 J. A. N. não considerava este navio.39 J. A. N. atribuía‑lhe 22 peças.40 J. A. N. considerava Capitão‑de‑fragata.41 J. A. N. atribuía‑lhe 20 peças.42 J. A. N. considerava Capitão‑de‑fragata.43 J. A. N. atribuía‑lhe 22 peças.44 J. A. N. não considerava este navio.45 J. A. N. não considerava este navio.46 J. A. N. atribuía‑lhe 16 peças.47 J. A. N. não considerava este navio.48 Transportava 100 passageiros e 9 carruagens reais no porão.49 J. A. N. não considerava este navio.50 J. A. N. não considerava este navio. Transportava o material e biblioteca da Academia Real dos Guardas‑Marinhas.51 F. T. D. – Ob. cit., p. 313.52 Vd. IDEM, Ibidem, p. 313.53 D. Marcos de Noronha, conde dos Arcos de Val‑de‑Vez, segundo Rocha Martins, em “O Último Vice‑Rei” é caracterizado com os mais nobres atributos “[...] fidalgo da melhor estirpe, soldado que já vira o fogo, administrador louvado por seus engenhosos planos quando dirigia a capitania de Grão Pará e Rio Negro, grave, ponderado e firme, que, contando apenas trinta e sete anos, estava ali comandando, encaminhando um país, [...]”.54 Vd. MARTINS, Rocha – O Último Vice‑Rei do Brasil. Lisboa: Edição do Autor, Oficinas Gráficas do ABC, 1922, p. 15.55 Vd. IDEM, Ibidem, p. 15.56 Vd. IDEM, Ibidem, pp. 15‑16.57 Vd. IDEM, Ibidem, p. 16.58 Papa grossa de farinha de mandioca, geralmente escaldada.59 Vd. IDEM, Ibidem, pp 17‑18.60 Vd. SAMPAIO, Theodoro – Historia da Fundação da Cidade do Salvador. Bahia: Tipografia Beneditina LTDA., 1949.61 Vd. IDEM, Ibidem, p. 106.62 Vd. SAMPAIO, Theodoro – Ob. cit., p. 105.63 Vd. IDEM, Ibidem, p. 107 – “Sabbado, 25, pela manhã entrou a armada e lançou ancora em cinco e seis braças de fundo, deoarando‑se‑lhe então ancoragem tão grande, tão formosa e tão segura que ao logar se ficou chamando desde esse dia – Porto Seguro.”64 Vd. IDEM, Ibidem, p. 107.65 Que depois se chamou de Todos‑os‑Santos.66 Vd. IDEM, Ibidem, pp. 19‑20.67 Vd. F. D. T. – Ob. cit., pp.314‑315.68 In Collecção das Leis, Decretos, e Alvarás, que Comprehende a Feiz Regencia de Sua Alteza Real O Principe D. João. Nosso Senhor, Desde 28 do Mez de Janeiro de 1808 até 16 do Mez de Dezembro de 1812, Tomo 1.69 Vd. MARTINS, Rocha – Ob. cit., p. 20.70 Vd. F. D. T. – Ob. cit., p. 315.71 Vd. MARTINS, Rocha – Ob. cit. p. 21.72 Funcionário eclesiástico que dirige o coro, entoa salmos em igrejas, conventos. etc.73 Vd. MARTINS, Rocha – Ob. cit. p. 21.74 Vd. MENESES, Angela Dutra de – O Português que nos Pariu: Uma Viagem ao Mundo de nossos Antepassados. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará,. 2000. p. 141: “No Rio, capital do império a turma reagiu na galhofa, velho jeito carioca. Em 1807, no desembarque dos nobres sem‑teto, resolveram o problema expulsando os moradores das velhas residências. O cidadão acordava e via pintado no muro PR, príncipe‑regente. Sinal de que, rapidinho, deveria cair fora, a elite lusitana desejava sua casa. Em protesto bem‑humorado, o carioca traduziu o PR por Ponha‑se na Rua. Simpático, melhor do que sair dando tiros.”75 Vd. F. D. T. – Ob. cit., p. 318.76 Vd. MARTINS, Rocha – Ob. cit., pp. 22‑23.77 Vd. IDEM, Ibidem, p. 23.78 Segundo F. D. T., in Ob. cit., “ex‑ governador da Baía, 6.º vice‑rei do Brasil, tomou posse em 1801, governou durante cinco anos e voltou com a família real em 1808, foi este o que mais se distinguiu pela sua clarividência no tocante ao futuro do Brasil.”79 Vd. F. D. T. – Ob. cit., p. 318.80 Vd. IDEM, Ibidem, pp. 318‑319, numa narrativa por P. Raphael GALANTI.81 In F. T. D. – Ob. cit., pp. 316‑318.82 Vd. IDEM, Ibidem, p. 325.83 Proclamação da Independência do Brasil – 07 de Setembro de 1821, reconhecida por Portugal em 1825.84 Vd. MENESES, Angela Dutra de – O Português que nos Pariu: Uma Viagem ao Mundo de nossos Antepassados. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará,. 2000. p. 145.
-Revista Militar @ 1849 - 2007
Introdução
Introdução
Prevendo a invasão francesa iminente, preparou‑se com a maior urgência a retirada da Família Real portuguesa para a sua maior colónia de então. A 22 de Outubro de 1807 era assinada uma convenção secreta1 entre o nosso Príncipe Regente D. João e o rei inglês Jorge III e que estabelecia a transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil. Estava ainda prevista a ocupação da ilha da Madeira pelas tropas inglesas, o compromisso de fazermos um tratado de comércio com a Inglaterra, logo após o Governo português se instalar no Brasil.
A 27 de Outubro de 1807, diversos representantes franceses e espanhóis assinaram o tratado de Fontainebleau2, onde foi estipulado que o reino português seria dividido entre a França e a Espanha, do seguinte modo: ao Rei da Etrúria, que passaria a designar‑se Rei da Lusitânia Setentrional, caberia a região entre os rios Douro e Minho; a Manuel de Godoy caberia o Alentejo e o Algarve, recebendo o título de Príncipe dos Algarves; Napoleão ficaria com as províncias da Beira, Trás‑os‑Montes e Estremadura. Assinavam este tratado, Duroc, em nome do Imperador e D. Eugénio Izquierdo, em representação do Rei Católico.
Sem saberem do tratado franco‑espanhol, os nossos representantes em Paris e Madrid foram expulsos, pois Napoleão já havia decidido invadir Portugal em virtude de D. João não cumprir as cláusulas do ultimatum. Enquanto Junot marchava com as suas tropas em direcção a Lisboa, chegava ao rio Tejo uma armada inglesa sob o comando do almirante Sydney Smith com a missão de escoltar a Família Real portuguesa para o Brasil. O embarque deu‑se a 27 de Novembro de 1807, mas os navios só zarparam no dia 29, em virtude de uma tempestade no mar.
No dia 30 de Novembro de 1807, Junot chegou a Lisboa só com parte do seu exército, limitando‑se a ver recortados no horizonte os últimos navios da Armada portuguesa3 e inglesa que levavam para outras terras “a nossa soberania”4. Tinha começado a I Invasão Francesa, das três que Napoleão havia de arquitectar para tentar ocupar o território português.
Este artigo para a Revista Militar surge na sequência dos trabalhos desenvolvidos para a dissertação de mestrado em História Militar, cujas provas decorrerão na Academia Militar e na Universidade dos Açores. Este tema, não incluído na estrutura da tese, parece‑nos oportuno pela ocasião do Bicentenário da Guerra Peninsular e da ida da Família Real para o Brasil, que ora se evoca.
Propomo‑nos relatar, sem pretensões de pormenor, a retirada da Família Real para o Brasil e da Corte portuguesa, alguns dos actos de D. João em terras brasileiras e, ainda parte das consequências benéficas que esta empresa teve para a construção do grande país irmão – o Brasil.
1. Diligências antes da Partida da Família Real
Depois de ter assinado a Convenção secreta de 1807 com Jorge III de Inglaterra, o Príncipe Regente D. João decide‑se pela transferência da sede da monarquia portuguesa para o Brasil. Naquela Convenção, assinada a 22 de Outubro em Londres, ratificada em Portugal a 8 de Novembro e pela Grã‑Bretanha a 19 de Dezembro de 1807, também se decidia a condição das tropas de Sua Majestade na Ilha da Madeira.
Tempos difíceis para Portugal e para os portugueses, nomeadamente para aqueles que não puderam embarcar com destino ao Brasil. Ao tomar o partido da Grã‑Bretanha, como estava previsto na Convenção, esta dispunha‑se a auxiliar o Príncipe Regente na retirada para o Brasil.
Esta ideia já era antiga, tendo sido sugerida a D. António, Prior do Crato, e, posteriormente, a D. João IV pelo Padre António Vieira.5 “O príncipe conservou até à última extremidade a esperança de evitar o golpe fatal, não se convencendo de que o seu sogro6 quisesse ligar‑se sinceramente a Bonaparte para destronar sua filha.”7
Cremos que D. João desconhecia a existência do Tratado de Fontainebleau e o seu conteúdo, pelo qual a Família Real portuguesa deixava de reinar em Portugal e previa o desmembramento do reino. D. João acabou por saber atempadamente, mas, in extremis, as intenções de Napoleão. O imperador, contando com a marcha forçada de Junot e ignorando que este se visse obrigado a estacionar em Alcântara e Abrantes, o que lhe fez perder alguns dias além do previsto, ordenou que se publicasse no periódico francês Moniteur, de 11 de Novembro, o famoso decreto de 27 de Outubro e pelo qual a Casa de Bragança deixava de reinar em Portugal, imaginando que apenas seria conhecido em Lisboa, depois da entrada do seu exército em Lisboa.
“Aquele decreto, porém, chegou rapidamente ao conhecimento do governo britânico. O ministro de Portugal em Londres, D. Domingos de Sousa Coutinho, receando que as suas comunicações atingissem o seu destino tardiamente, já depois da entrada em Lisboa das tropas francesas, expediu um correio extraordinário com um exemplar do Le Moniteur para o Príncipe Regente.
Ao mesmo tempo o governo inglês deu instruções a Sir Sidney Smith, que cruzava com a sua esquadra a embocadura do Tejo, para escoltar a Família Real, no caso de retirar‑se de Lisboa. Por um feliz acaso, que pareceu um milagre, o correio demorou na sua viagem apenas quatro dias e muito a tempo de salvar o Príncipe e a sua Família da sorte que os esperava.”8
Com a publicação daquele decreto, o factor‑surpresa esvaiu‑se, pois com a iniciativa daquele diplomata português prestou‑se um valioso e oportuno serviço à Pátria. “Infelizmente ainda há quem chame à retirada do Príncipe para o Brasil fuga, quando afinal foi esta inteligente resolução que salvou o trono dos Braganças, ou melhor, a soberania nacional de ser abatida e espezinhada por Napoleão.”9
Na sucessão dos acontecimentos, havia D. João de encetar vários esforços e “Determinou que partiriam todos os membros da família real, os ministros de Estado e os empregados do Paço, sem excepção; decidiu que a sede do governo do Paço, se estabeleceria provisoriamente no Rio de Janeiro, ficando o territorio portuguez sujeito a uma regencia de cinco fidalgos, que nomeou, a qual governaria em seu nome com os poderes que costumavam conceder ás regencias os antigos reis de Portugal quando iam pelejar na Africa.” 10
Esta decisão foi, contudo, bem sucedida na sua execução, uma vez que o grande objectivo de evitar o encontro da Família Real com Junot foi conseguido. No entanto, este foi recebido amistosamente por ordem do Príncipe Regente. “Apenas foi conhecida em Lisboa a entrada das tropas francesas em território nacional, o Conselheiro de Estado, D. José de Noronha, Marquês de Angeja, sugeriu ao Príncipe a necessidade de mandar alguém ao encontro de Junot, a fim de se saber da boca do general as suas intenções.
O conselho foi aceite, não demorando o Príncipe a dar‑lhe execução. Pensou‑se de começo, em Braamcamp para se desempenhar de tão melindrosa e delicada missão; mas, depois, pôs‑se de lado este indivíduo, recaindo a escolha em José de Oliveira Barreto, negociante na praça de Lisboa, com estabelecimento na Calçada da Estrela, possivelmente da intimidade do General, durante a sua embaixada junto do Príncipe Regente.
Simultaneamente, foi encarregado pelo Governo o coronel Carlos Frederico Lecor, um dos oficiais mais distintos do exército português, de observar as posições e movimentos das divisões de Junot.”11
Podemos dizer que o sistema de informações estava montado para as eventuais contingências. Os documentos que se seguem relatam os resultados das diligências de que foram incumbidos, nas cópias que se transcrevem:
“LECOR INFORMA O SECRETÁRIO DE ESTADO DA GUERRA DO RESULTADO DAS SUAS OBSERVAÇÕES
Illmo. E Exmo. Senhor
Depois q. tive ontem a honra de escrever a V.Ex.ª de Sattarem, marchei para a Golegam a certificarme da verdadeira pozição do Exerçito Francez, e ali vim no conheçimento que ainda se achavam em Punhete: assim não he provavel que possão chegar a Sattarem antes de amanhãa, acresendo o embaraço q. lhe cauzara para a sua marcha o estado quase inpraticavel dos campos da Golegam. He quanto por ora se me offresse q. possa participar a V.Exª. Ds.Gde. a V.Exª. Cartacho 27 de Novembro 1807.
Carlos Frederico Lecor” 12
“A ENTREVISTA DO EMISSÁRIO, OLIVEIRA BARRETO, COM O GENERAL JUNOT
Illmo. E Exmo. Snr.
O General Junot me respondeu em data de ontem dizendo‑me que me veria hoje com muito gosto e que fosse eu encontralo a Punhete, ou a Tancos: assim o faso porque recebendo a carta do General no caminho para aqui afim de adiantar a jornada, apezar do mao tempo espero portanto hoje anoute verme com elle, e fazer quanto me for possivel por cumprir com as insinuacções de V.Exª. Posso já assegurar a V.Exª. que aquele General ignorava inteiramte. que os Inglezes tivessem partido de Portugal, e que os Portos se lhe fixassem; alem disto tãobem ignoravão da entrada no Tejo da Esquadra Russiana; e parece que desconfião de como serão recebidos daqui em diante athé Lxª. he certo que o seo dezignio hé este, veremos se o suspendem pois que he impossivel que hajão mantimentos pª. tanta gente, esta e outras razoens que o exercito já experimenta; poderão ao menos rezolvelos a mudar em parte de rezolução, finalmente nada posso dizer com certeza emq.to não me avistar com o General. Tãobem digo mais a V.Ex.ª que a tropa vem mizeravel, e falta de tudo, mas não cometem desordem maior exceto as de contribuiçoens pª. o sustento que em parte lhe tem faltado, dos sapatos que exigem poucos tem obtido. Encontrei o corrº. Aleixo Je. dos Santos nos campos desta villa que me buscou falar de ordem de V.Exª. pois tendo vindo despachado para o corror. De Santarem veio encontralo nesta villa; e como poderá ser que depois de falar com o General que me seja precizo expedilo a V.Exª. com alguas noticias, pedilhe que quizesse acompanhar‑me, e com efeito vay comigo. De repente me ocorre não levar na mª. Compª. este corrº. por não cauzar suspeita e no cazo de precizão expedirey outra Pessoa. Esta he feita apressa não tenho mais tempo. Ds. Gde. a V.Exª.
Golegam 26 de Novbro. De 1807.
De V. Exª. Revte. Vr.Jozé de Oliveira Barreto” 13
Estas preciosas notícias de Oliveira Barreto e de Carlos Frederico Lecor foram já recebidas a bordo da esquadra que se preparava para a partida:
“SENHOR
Tenho aonra de remeter a V.A.R. a carta incluza que verifica oque disse ontem Lecor na carta queremeti a V.A.R.
Estimarei, quanto devo que V.A.R. passe bem anoite, e lhe beijo respeituozamte. aMão; a carta de Barreto chegou pela uma orada manhan.
Náo Meduza 28 de Novro.Antonio de Araujo de Azevedo” 14
Depois de esgotados todos os esforços para conseguir a neutralidade, não restava outra alternativa a D. João senão a partida para o Brasil. Tentou minimizar as perdas levando quase todas as riquezas que Portugal foi acumulando ao longo dos séculos, ficando algumas misérias que os franceses se encarregariam de levar no seu regresso a casa. A maioria dos portugueses não puderam embarcar, pois só houve lugar para cerca de quinze mil pessoas, mas eram convidados a receber os invasores como amigos, mais uma vez, para evitar sangue e a guerra.
2. O Embarque, segundo José Acúrcio das Neves
Importa que fiquemos com uma ideia do que se passou naquele que se tornaria, talvez, o embarque mais dramático da História portuguesa, com consequências estratégicas que vamos ter oportunidade de ir referindo ao longo do nosso trabalho. O testemunho de José Acúrsio das Neves, que assistiu aos acontecimentos, retrata bem o momento como podemos observar:
“Logo que o embarque foi resolvido, o Principe Regente tinha dado ordens, para que toda a Real Familia se transferisse de Mafra ao palacio de Quéluz, onde ficava mais proxima, e mais livre de algum desastre; pois que o inimigo caminhava a marchas forçadas com direcção á capital. Tudo se executou promptamente, e a 26 S. A. R. passou tambem áquelle palacio, para dar algumas disposições, e provavelmente, para confortar as mais pessoas Reaes neste triste lance; mas talvez era elle o proprio, que mais precisava de ser confortado. Queria fallar, e não podia; queria mover‑se, e convulso não acertava a dar hum passo: caminhava sobre hum abysmo, e apresentava‑se‑lhe à imaginação hum futuro tenebroso, e tão incerto, como o oceano, a que hia entregar‑se. Patria, capital, reino, vassallos, tudo hia abandonar repentinamente, com poucas esperanças de tornar a pôr‑lhes os olhos em cima, e tudo erão espinhos, que lhe atravessavão o coração.
O golpe o tinha apanhado tão desprevenido, que dous, ou tres dias antes tinha proferido com toda a satisfação, que com as providencias, que havia dado, estava em fim tranquillo da parte dos Francezes. As disposições estavam feitas, he verdade, havia muito tempo; pois não passavam de méra precaução, para hum perigo, que se julgava muito remoto. Tanto isto he certo, que as provisões da esquadra se tinhão consumido em grande parte, humas com o tempo, outras por descaminhos: os proprios toneis da aguada de algumas naos se tinham extraviado, sendo agora preciso mandarem‑se fazer outros de madeira nova, muito improprios para hum semelhante uso, e tudo foi confusão, e desarranjo, para se apromptar em poucos dias o puro indispensavel para huma viagem tão dilatada.
Amanheceo finalmente o dia 27 de novembro, aprazado para o embarque, e a aurora perdeo todos os seus encantos sobre o horizonte de Lisboa neste dia funesto. [...]. Apparecerão com o dia pelas ruas, e pelas praias de Belém bandos errantes de pessoas de ambos os sexos, e de todas as idades, em cujos rostos estavão pintadas a mágoa, e a desesperação: chegou a temer se, que no excesso da sua dôr rompessem em algum desatino contra os que julgavão culpados na desgraça pública. Na verdade o ajuntamento não era demasiado, quando appareceo a primeira carruagem da Casa, na qual erão conduzidos S. A. R. o Principe Regente, e o Infante d’Hespanha o Senhor D. Pedro Carlos; tanto em razão da distancia da cidade a Belém, como por se ignorarem as horas, em que as pessoas Reaes devião embarcar; mas foi crescendo; e quando aquelle Augusto Senhor se apeou sobre o cáes, tudo parecia querer precipitar‑se sobre elle, de fórma que na descida dos degráos lhe era necessario ir fazendo com o braço a acção de desviar o povo, que o rodeava. O largo não estava ainda guarnecido de tropa, e até o piquete de cavallaria, que acompanhava a S. A. R. se demorou alguns minutos: servirão‑lhe de guarda dous soldados do corpo da policia, que alli se achavão.
Ao aspecto deste Principe adorado dos seus vassallos, e agora tão consternado e abatido, todos emmudecêrão, e as proprias lagrimas lhes ficárão tolhidas, mas a dor bem pintada nos seus semblantes. Não era menos tocante a atidão do Principe: os seus pés tremulos, e sem firmeza mal podião sustentar o seu corpo vacillante: o fysico sentia as impressões violentas da moral. Seu rosto nadava em lagrimas; porque os seus olhos eram duas torrentes: e he assim que foi levado ao escaler, e neste à esquadra, sendo os adeoses, que dava ao seu povo, mais, e mais lagrimas, que lhe cahião.
A multidão não apartou os olhos deste espectaculo, senão para os fixar em outro não menos doloroso. Todas as mais Pessoas Reaes, tendo sahido de Quéluz junto ao meio‑dia, apparecem no largo de Belém, e seguem os passos do Principe Regente. Havia 16 annos que a Rainha N. S. tinha sido roubada, pelo estado da sua saude, ás vistas do seu povo: apparece‑lhe agora, mas em que terriveis circumstancias! Em outro tempo nunca se mostrava em público, senão entre applausos, inspirando prazer e derramando graças; agora não pode a sua presença inspirar senão saudade, e amarguras. Esta Augusta Soberana mostrou huma grande resignação no seu infortunio: foi a primeira das Pessoas Reaes, que sahio de Queluz, e dizem, que vendo correr o seu coche com pressa, clamára, que a levassem devagar, porque não fugia: demorou‑se hum pouco sobre o cáes, por não ter chegado a cadeirinha, em que a conduzirão ao escaler.” 15
Outro documento precioso a que tivemos acesso, foi o Diario de Euzebio Gomes, na posse do Senhor José Medeiros que gentilmente nos facultou o conteúdo que transcrevemos e que nos permite uma visão complementar do que foi o embarque, tal como ele presenciou:
“Novembro 27. Hoje embarcou toda a Familia Real no Caes de Bellem tendo dado alli Beijamão ás pessoas que alli concorreram entre lagrimas e suspiros geraes, e no dia 29 com bom vento se fez á vella a Esquadra Portugueza que condusio o nosso Amabilissimo Principe e toda a Familia Real para o Brazil, cuja Esquadra se compunha de 8 Naus, tres Fragatas, dois Brigues, uma Escuna e uma charrua de mantimentos; e com ella 21 Navios de commercio nacional. Nesta noite de 29 para 30 houve um temporal tão violento que causou grandes estragos por varias partes, e no mar foi elle tão violento que a Esquadra se dispersou por tal forma que cada uma das embarcações tomou seu rumo e navegou como pôde sem jamais se avistarem na viagem, mas todos foram a salvamento.
He impossivel descrever o que se passou no Caes de Bellem na occasião do embarque da Real Familia, que sahio de Mafra a toda a preça para embarcar, o caes amontoado de caixas, caixotes, bahus, malas, malotoeus e trinta mil cousas, que muitos ficaram no caes tendo seus donos embarcado. outras foram para bordo e seus donos não poderam hir. Que desordem e confuzão; A rainha sem querer embarcar por forma alguma, o Principe aflito, por este motivo!!! Foi o Laranja, (Francisco Laranja capitão de fragata e patrão mór das galeotas reaes) quem fez que a Rainha embarcase. E então o Principe deo Beijamão às pessoas que alli estavão e entre lagrimas e suspiros começam a embarcar, e não se pode descrever o que aqui se passou.” 16
3. Palavras do Príncipe Regente aos Portugueses
Tudo parecia ir dar certo ao lermos os textos que se seguem, primeiro as palavras de D. João aos portugueses e depois as palavras de Junot aos lisboetas:
“Tendo procurado por todos os meios possiveis conservar a Neutralidade, de que até agora tem gozado os Meus Fiéis e Amados Vassallos, e apezar de ter exhaurido o Meu Real Erario, e de todos os mais Sacrificios, a que Me Tenho sujeitado, chegando ao excesso de fechar os Portos dos Meus Reinos aos Vassallos do Meu antigo e Leal Alliado o Rei da Grãa Bretanha, expondo o Commercio dos Meus Vassalos á total ruina, e a soffrer por este motivo grave prejuizo nos rendimentos da Minha Corôa: Vejo que pelo interior do Meu Reino marchão Tropas do Imperador dos Franceses e Rei de Italia, a quem Eu Me havia unido no Continente, na persuasão de não ser mais inquietado; e que as mesmas se dirigem a esta Capital: E Querendo Eu evitar as funestas consequencias, que se podem seguir de huma defesa, que seria mais nociva, que proveitosa, servindo só de derramar sangue em prejuízo da humanidade, e capaz de acender mais a dissenção de humas Tropas, que tem transitado por este Reino, com o annuncio, e promessa de não commeterem a menor hostilidade; conhecendo igualmente que ellas se dirigem muito particularmente contra a Minha Real Pessoa, e que os Meos Leaes Vassallos serão menos inquietados, ausentando‑me Eu déste Reino: Tenho resolvido, em beneficio dos mesmos Vassallos, passar com a Rainha, Minha Senhora e Mãe, e com toda a Real Família para os Estados da America, e estabelecer‑Me na Cidade do Rio de Janeiro até á Paz Geral. E Considerando mais quanto convem deixar o Governo d’estes Reinos n’aquella ordem, que cumpre ao bem d’elles, e de Meus Povos, como cousa a que tão essencialmente estou obrigado, Tenho n’isto todas as Considerações, que em tal caso Me são presentes: Sou servido Nomear para na Minha Ausencia governarem, e regerem estes Meus Reinos, o Marquez de Abrantes, Meu Muito Amado e Prezado Primo; Francisco da Cunha de Menezes, Tenente General dos Meus Exercitos; o Principal Castro, do Meu Conselho, e Regedor das justiças; Pedro de Mello Breyner, do Meu Conselho, que servirá de Presidente do Meu Real Erario, na falta e impedimento de Luiz de Vasconcellos e Sousa, que se acha impossibilitado com as suas molestias; Dom Francisco de Noronha, Tenente General dos Meus Exercitos, e Presidente da Meza da Consciencia e Ordem; e na falta de qualquer d’elles, o Conde Monteiro Mór, que Tenho nomeado Presidente do Senado da Camara, com a assistencia dos dous Secretarios, o Conde de Sampaio, e em seu lugar Dom Miguel Pereira Forjaz, e do desembargador do Paço, e Meu Procurador da Corôa, João Antonio Salter de Mendonça, pela grande confiança, que de todos elles tenho, e larga experiencia que elles tem tido das cousas do mesmo Governo; Tendo por certo que os Meus reinos, e Povos, serão governados, e regidos por maneira que a Minha Consciencia seja desencarregada, e elles Governadores cumprão inteiramente a sua obrigação, em quanto Deus permittir que Eu esteja ausente d’esta Capital, administrando a Justiça com imparcialidade, distribuindo os Prémios e Castigos conforme os merecimentos de cada hum. Os mesmos Governadores o tenhão assim entendido, e cumprão na fórma sobredita, e na Conformidade das Instrucções, que serão com este Decreto por Mim assignadas; e farão as participações necessarias ás Repartições competentes. Palacio de Nossa Senhora da Ajuda em vinte e seis de novembro de mil oitocentos e sete.Com a Rubrica do Principe Regente N. S.1807, Novembro 26
INSTRUÇCÕESA QUE SE REFERE O MEU REAL DECRETODE 26 DE NOVEMBRO DE 1807
Os governadores, que Houve por bem nomear pelo Meu Real Decreto da data d’estas, para na Minha Ausencia governarem estes Reinos, deverão prestar Juramento do estilo nas Mãos do Cardeal patriarca; e cuidarão com todo o desvelo, Vigilancia e actividade na administração da Justiça, distribuindo‑a imparcialmente; e conservando em rigorosa observancia as Leis d’este Reino.
Guardarão aos Nacionaes todos os Privilegios, que por Mim, e Senhores Reis Meus Antecessores se achão concedidos.
Decidirão a pluralidade de votos as Consultas, que pelos respectivos Tribunaes lhes forem apresentadas, regulando‑se sempre pelas Leis e costumes do Reino.
Proverão os Lugares de Letras, e os Officios de Justiça, e Fazenda, na fórma até agora por Mim praticada.
Cuidarão em defender as Pessoas e bens dos Meus Leaes Vassallos, escolhendo para os Empregos Militares as que d’elles se conhecer serem benemeritas.
Procurarão, quando possivel fôr, conservar em paz este Reino; e que as Tropas do Imperador dos Francezes e Rei da Italia sejão bem aquarteladas e assistidas de tudo que lhes fôr preciso, em quanto se detiverem n’este Reino, evitando todo e qualquer insulto que se possa perpetrar, e castigando‑o rigorosamente, quando aconteça; conservando sempre a boa harmonia, que se deve praticar com os Exercitos das Nações, com as quaes nos achamos unidos no Continente.
Quando succeda, por qualquer modo, faltar algum dos ditos Governadores, elegerão a pluralidade de votos quem lhe succeda. Confio muito da sua honra e virtude, que os Meus Povos não soffrerão incommodo na Minha Ausencia; e que, permittindo Deus que volte a estes Meus Reinos com brevidade, encontre todos contentes, e satisfeitos, reinando sempre entre elles a boa ordem e tranquilidade, que deve haver feito do Meu Paternal Cuidado.
Palacio de Nossa Senhora da Ajuda em Vinte e seis de Novembro de Mil oitocentos e sete.
PRINCIPE,” 17
Eram boas as intenções do Príncipe!
4. Breve Caracterização de Portugal e dos Portugueses à época
Importa reter uma breve ideia do país de que D. João se despedia por mais de uma dúzia de anos e, principalmente, sobre as mulheres e os homens que ficavam, porque a esquadra apenas comportaria transportar cerca de 2% da população que residia em Portugal Continental.
Desde que D. João assumiu a regência em 1799, por motivo da demência da rainha sua mãe, segundo Adrien Balbi, o país desenvolveu‑se em algumas áreas de modo significativo, nomeadamente a agricultura, o comércio e a indústria, como nos relata o autor: “Grande prosperité du Portugal jusqu’en novembre 1807. Le prince régent encourage l’agriculture, le commerce et l’industrie; crée plusiers fabriques, une chaire de métallurgie dans l’université de Coimbra, l’académie de marine et de commerce à Porto, et quelques autres établissements littéraires.”18
Outro autor estrangeiro que retratou Portugal e os portugueses foi o diplomata sueco Carl Israel Ruders19. Escolhemos alguns excertos da obra Viagem em Portugal – 1798‑1802, uma colectânea de cartas, prefaciada orgulhosamente por Castelo Branco Chaves: “Não conheço livro escrito por forasteiro acerca do nosso país, onde Portugal e os portugueses sejam observados e descritos com maior objectividade e mais leal propósito de equidade”.20 Como estava longe a fotografia e o cinema, eram as gravuras da época e as descrições dos autores que nos transportam a épocas passadas como essa: “O homem português que, no geral, era descrito pelos viajantes estrangeiros como trigueiro, amulatado, de má formação, quanto ao físico, era, também, considerado pouco atreito à instrução e até às inovações artesanais. Fisicamente, Ruders parece tê‑lo considerado tão europeu como qualquer francês, qualquer inglês ou qualquer sueco. Quanto a aptidões, considerou os portugueses com verdadeira aptidão para as belas‑artes, bem como para qualquer indústria. Quanto à falta de cultura, de pequeno número de artistas, etc., considerou que tudo isso resultava, não de inaptidão ingénita, mas da falta de condições e incentivos, culpando disso os diversos governantes.” 21
Como observador atento não se esqueceu de dar a sua opinião sobre as mulheres portuguesas, com a qual concordamos e pensamos manter‑se actual: “[...] as mulheres em Portugal, possuem qualidades que, em regra, são apanágios do sexo – quer dizer, são belas, amáveis, sensuais e ternas.” 22 E continua: “Os homens em geral adoram‑nas, e os autores de livros de viagens celebram‑nas. Pode dizer‑se alguma coisa de melhor em seu louvor? [...] A fisionomia das mulheres portuguesas, falando em geral, não tem aquela delicadeza, de tão natural e perfeita inocência, de graça tão profundamente tocante, que se revela no rosto das raparigas inglesas. É mais majestosa e imponente. Mas se este grande ar incute respeito as linhas voluptuosas da sua figura também despertam apetites sensuais. Os seus belos e eloquentes olhos negros, onde flameja uma labareda, que em vão elas se esforçam por esconder, os seus formosíssimos cabelos, as suas grandes sobrancelhas pretas, o seu nariz bem talhado, os seus lábios frescos, onde paira um sorriso atraente, os seus dentes tão brancos que parecem polidos, e a sua pele branca e rosada, hão‑de produzir sempre uma impressão lisongeira.
O corpo é, em geral, cheio, mas bem proporcionado, os movimentos fáceis, desembaraçados e cheios de graça; os pés pequenos; o andar lento e solene. Nos seus vestidos de que elas sabem tirar partido dão preferência às coisas vistosas, ao contrário das inglesas, que se fazem notar pela agradável simplicidade dos seus enfeites.” 23
Neste verdadeiro tributo à mulher portuguesa, Ruders descreve ainda o seu comportamento e a sua sensibilidade: “Comovem‑se, profundamente, com as desgraças alheias, são compassivas e caridosas com os pobres, altamente dedicadas aos parentes e amigos, afáveis com os inferiores, e bem educadas com toda a gente.
De conduta honesta e recatada no mais alto grau, são ao mesmo tempo de um convívio alegre, espirituoso e vivo, contentes com a sua sorte e até resignadas com a desgraça.
Em casa, tranquilas e pacíficas, mostram‑se cheias de respeito filial pelos pais de idade provecta, rodeando‑lhes os últimos dias de vida, quando eles disso carecem, de cuidados e carinhos. São ao mesmo tempo tolerantes para com os caprichos dos maridos, devotadas maternalmente aos seus filhos, generosas para com os velhos servidores, e reconhecidas às pessoas de quem receberam obséquios.” 24
É claro que o autor se refere às portuguesas em geral, com certeza que houve excepções, mas estas confirmam a regra. E é com a regra que nós nos orgulhamos!
5. Chegada dos Franceses a Lisboa; A Proclamação dos Franceses
O comandante das tropas invasoras, entretanto chegado, Junot dirigia‑se aos lisboetas com aquela que ficou conhecida como proclamação dos francezes.
Esta proclamação tinha sido mandada afixar pelas ruas e praças de Lisboa na madrugada daquele dia 30 de Novembro de 1807, tanto em francês como em português, para que não restassem dúvidas. Fazemos nossas as palavras de José Acúrcio das Neves e transcrevemos também a proclamação em francês: “[...] a peça é tão interessante, tão extraordinária [...] que eu não posso dispensar‑me de a transcrever toda inteira, [...].” 25: Vejamos o que disse Junot:
A proclamação dos franceses 26
A proclamação dos franceses 26
Até chegarem a Lisboa, a 30 de Novembro de 1807, foi longo e doloroso o percurso dos invasores. Eusebio Gomes27, almoxarife28 do Palácio de Mafra, descreve a chegada a Lisboa de Junot com os seus homens e faz referência também às outras forças invasoras pelo norte de Portugal e pelo Alentejo, descrevendo, ainda, as condições climatéricas desse dia: “No dia 30 entraram em Lisboa os franceses, comandados por Junot; constava o Exército de 28 mil homens, apoiados por 11 mil Espanhóis e 62 peças de Artilharia; e ao mesmo tempo entrou pelo Minho um corpo de 10 mil homens Espanhóis e pelo Alentejo entrou outro de 6 mil homens. Acompanhava o Exército Francês muitos Generais Franceses; tais como Loison, Delabord, Kellerman, Thomier, Thiabout, Delagarde, Murgançon, Quesnel, Solignac, Maurin, Pilé e outros mais. Neste dia 30 houve um grande temporal, tanto no mar como em terra e seria longo descrever os estragos que causou e em Mafra foram eles muito grandes, pois como era dia de feira, as barracas foram todas destruídas.” 29
6. A Esquadra e a Viagem
Segundo José Acúrsio das Neves, a esquadra portuguesa era composta de oito naus, três fragatas, três brigues, uma escuna e o seu comandante‑em‑chefe era o Vice‑Almirante. Este número de navios não é unânime para todos os autores onde o assunto é debatido, conforme iremos ver na tabela30 que se segue:
A Família Real dividia‑se pelas diversas naus que constituíam a esquadra, o Príncipe Regente seguiu na Principe Real, D. Carlota Joaquina, juntamente com as suas filhas e D. Miguel, com apenas 5 anos, embarcaram na Rainha de Portugal, as irmãs da Rainha seguiram na nau Príncipe do Brasil.
Como é defendido por vários autores, embarcaram nos navios disponíveis cerca de 15 000 pessoas, representando todas as classes, “Os fidalgos, os ministros, os conselheiros, e tantos outros [...]: alguns regimentos de linha acompanháram.” Rumavam agora para a maior e mais rica colónia portuguesa – O Brasil. Por ironia do destino, as riquezas, nomeadamente o ouro, que tinham vindo do Brasil para financiar as grandes construções nacionais, como o Monumento de Mafra, Aqueduto das Águas Livres, etc…, eram como que devolvidos à colónia, pois as classes mais abastadas faziam‑se acompanhar dos seus haveres, ouro, prata, pedras preciosas, obras de arte, livros, tudo embarcava. “[...] em mais de 80 milhões de cruzados orçam alguns o dinheiro que partiu para o Brasil, ficando no regio erario apenas 10.000 cruzados, sem que se houvessem pago os empregados e credores do Estado.” 51 Eram pedaços de História portuguesa que partiam, algumas delas para não mais voltarem ao seu território de origem. Cremos que este foi o primeiro passo para a independência do Brasil.
A frota zarpava finalmente ao amanhecer de 29 de Novembro, com ventos favoráveis os navios despediam‑se de Lisboa e por volta do meio‑dia ouviam‑se “as ultimas saudações das fortalezas que guarnecem a barra.” 52 A Esquadra Portuguesa, composta pelos navios acima descritos, era seguida por mais de três dezenas de navios mercantes, escoltados por navios ingleses, como fazia parte do Acordo Secreto de 1807. Se o embarque de tanta gente e a partida da esquadra não foram pacíficas, a viagem também não se pode dizer que foi calma, pois no dia 7 de Dezembro, uma tempestade dispersou a frota na rota do Rio de Janeiro. Alguns dos navios foram “parar” à Baía a 22 de Janeiro de 1808.
7. A Chegada ao Brasil
Os relatos que nos chegam da chegada da Família Real ao Rio de Janeiro transparecem o júbilo do povo e o empenhamento das entidades locais, nomeadamente o empenho do último Vice‑Rei53 do Brasil que se preparava para entregar o poder “a governança” ao Seu Senhor. Antes de desembarcar no Rio, D. João passou pela Baía.
7.1. Chegada de Parte da Família Real ao Rio de Janeiro
“Quando o brigue Voador chegou ao Rio de Janeiro, [...] sucedeu um levante de júbilo e cantou‑se nas ruelas, desde a da Afândega à do Sabão, dançou‑se nos bêcos dos Tambôres ao dos Cachorros e iluminaram‑se os edifícios, da Lampadosa ao Capim e ao Castelo.” 54 Uma verdadeira cidade engalanada que se assustou com boatos de tropas hostis: “É que em vez dos franceses com as naus altaneiras, encanhonadas de peças de bom tiro, em logar das tropas ameaçadoras, cujo anúncio causára o levante e o artilhamento da cidade, chegava a nova de que, em som alegre, a esquadra portuguesa, flamulada de signas, engalanada, viria fundear no formoso lagamar do Guanabara e desembarcaria dela, como duma florida frota de mágica, toda a família real.” 55
Finalmente a Família Real estava a salvo, o mar poupou mais uma vez a lusa gente e manifestou‑se como um verdadeiro aliado. “O inimigo entrara em Lisboa; o Brasil estava longe em demasia para as suas tentativas; Napoleão dominaria só na Europa e aqueles que buscava aprisionar, soberanos, príncipes, grandes fidalgos – as aves de boa heráldica, dignas de encher os seus viveiros, as suas doiradas gaiolas de Fontainebleau e Valançay – escapavam‑se às garras da águia e vinham procurar o seu abrigo na sombra das grandes árvores coloniais como bandos acossados pelos tiros numa arribação feliz.” 56
Os preparativos para receber os soberanos portugueses e toda a sua Corte não foram deixados ao acaso, mas, em face da numerosa comitiva, foram muitas as casas a desalojar e a comodidade não abundava. Uma sombra do que tinham deixado para trás, em Lisboa! No entanto, a boa vontade do povo brasileiro não faltou, vejamos o que se passou: “Não se parava um instante; improvisavam‑se as comodidades, vinham obedientemente os moradores intimados entregar as chaves das residências jubilosos até, veniando o senhor vice rei, mais alegre que todos eles, dando ordens formais, exercendo uma acção intensa, muito à altura da sua reputação.” 57
D. Marcos de Noronha pensou em todos os pormenores para agradar ao Príncipe Regente, a toda a Família Real e aos demais visitantes prestes a chegar. “Ia entrar no Rio de Janeiro a melhor gente portuguesa em nascimento e honrarias e êle, vice‑rei, não lhe podia oferecer um pouco de pirão58, umas tiras rijas de carne, umas mãos cheias de mau arroz. Carecia‑se muito gado, frutas, galinhas, cereais, géneros regionais e europeus – dos armazenados – e pacas, espécies de leitões, peixes salmourados, aves ribeirinhas de bom sabor, e doçarias, e pipas de vinho do continente, licôres suaves, àlém da cachaça destinada aos soldados, que já fardara de novo, para atalaiarem os régios paços. [...] Fazia‑se a entusiástica festividade, num Domingo, a dezassete de Janeiro, e toda a gente entrajada de gala, falando alto, radiante, corria a vêr as tropas formadas, de uniformes pimpantes, empenachadas, os milicianos buscando o seu aprumo, as armas scintilantes ao sol intenso e perturbante após a grande tempestade, tam forte e tam pouco acolhedora, que dispersara os vasos de guerra nos quais os monarcas velejavam para a sua capital colonial.” 59
7.2. Chegada de D. João à Baía
D. João desembarcou na cidade da Baía60 a 22 de Janeiro de 1808, tendo recebido provas de muita estima e admiração por todos os habitantes que se dirigiram para o saudar ou simplesmente a vê‑lo, saudado pelo capitão‑general da colónia – o conde da Ponte e pelo arcebispo, por entre as mais vibrantes aclamações do povo. “A armada, desviada do caminho ordinario dessas navegações, o que visou foi verificar de passagem o que de real e positivo havia nas conjecturas dos entendidos, e essas conjecturas se confirmaram plenamente.” 61
A História tem destes acasos, a armada comandada por Pedro Álvares Cabral, a maior e mais poderosa até então, treze navios entre caravelas e navios redondos, que partira de Lisboa com a missão de assentar paz e amizade com o soberano de Calecut com vista a “estabelecer ali uma feitoria, aonde recolher as mercadorias europeas de mór procura no paiz com o producto das quaes havia de carregar de especiarias as naus, quando tornassem.” 62 Não é de acreditar que o desvio da rota tanto para Ocidente tenha sido por acaso, mas sim de forma deliberada de modo a descobrir terras dentro do hemisfério português, conforme os tratados previam.
A 21 de Abril de 1500 os navegadores portugueses deparavam‑se com sinais de terra e a 22 avistavam terra brasileira, a 23 os portugueses vão a terra e trocam presentes com os nativos, a armada ruma para Norte até darem com um “Porto Seguro”63 onde vão ancorar para “[...] tomar agua e lenha e principalmente acertar onde se estava.” 64 Passados sete dias a Armada seguiu o seu destino rumo à Índia. No mesmo dia voltou para Lisboa o navio dos mantimentos para dar a boa nova a El‑Rei, com a Carta de Pero Vaz de Caminha, datada de 1 de Maio, que descreve minuciosamente o “Achamento do Brasil”. O navio mensageiro passou pela Bahia65 provavelmente a 5 de Maio de 1500. D. Manuel recebeu a carta de Pedro Vaz de Caminha, ficou contente pelas novidades, logo mandou aparelhar três navios para zarparem e reconhecerem aquelas Suas novas terras. Passados mais de dois séculos, D. João lembrar‑se‑ía deste episódio.
A euforia também aqui se fazia sentir e o povo apareceu em massa às audiências públicas que D. João fez questão de presenciar para receber todos quantos quisessem beijar a sua mão papuda. No dia seguinte à tarde, mais pela fresca:
“[...] seguira as carruagens de gala, pela Gameleira até ao teatro, onde os camaristas o aguardavam com o pálio alçado, entre alas de soldados para o Te‑Deum da Sé. Sua altesa, muito guloso da música sacra, escutou‑a tocada por todos os instrumentistas da cidade. Começaram, então, as festas sem conta, delírios, loucuras em que corriam rios de oiro em honra da família real que se acolhia à generosidade dos habitantes do Brasil. Imaginavam‑se banquetes, que duravam horas, para agradar a gulotoneria dos recem chegados; faziam‑se exercícios militares que enchiam as ruas de animação guerreira, organizavam‑se cortejos, bailes populares, cantatas nas quais embalavam D. João e o queriam captar:
Meu príncipe regente,Não saias daqui,Cá ficamos chorandoPor Deus e por ti…
As vozes lentas, bem sotaqueadas, dôsse enlanguescência brasileira, subiam até ao varandim do paço todo iluminado; numa quebreira delicada, soavam as violas em lunduns doloridos, aiados, vagos e o principe sentia‑se bem e dizia‑o. Custava‑lhe arrancar da Baía, [...].” 66
Importa referir que, ainda na Baía, D. João publicou um importante decreto, datado de 28 de Janeiro, que abria os portos brasileiros às nações amigas, mediante o pagamento de um imposto. “Foi José da Silva Lisbôa, o futuro visconde de Cayrú, um dos maiores jurisconsultos da Bahia e do Brasil, quem primeiro aconselhou esta medida, extremamente útil á nossa patria; foi uma das cousas que mais contribuiram para nossa independência e riqueza publica.” 67
“Conde da Ponte, do Meu Conselho, Governador, e Capitão General da Capitania da Bahia, Amigo. Eu o PRINCIPE REGENTE vos Envio muito saudar, como aquelle que Amo. Attendendo á representação, que fizestes subir á Minha Real Presença sobre se achar interrompido, e suspenso o Commercio desta Capitania com grave prejuizo dos Meus Vassallos, e da minha Real Fazenda, em razão das criticas, e públicas circunstancias da Europa; e querendo dar sobre este importante objecto alguma providencia prompta, e capaz de melhorar o progresso de taes damnos: Sou Servido Ordenar interina, e provisoriamente, em quanto não consolido hum Systema geral, que effectivamente regule semelhantes materias, o seguinte Primo: Que sejão admissiveis nas Alfandegas do Brazil todos, e quaesquer Generos, Fazendas, e Mercadorias transportados, ou em Navios Estrangeiros das Potencias, que se conservão em Paz, e Harmonia com a Minha Real Coroa, ou em Navios dos Meus Vassallos, pagando por entrada vinte e quatro por cento; a saber: vinte de Direitos grossos, e quatro do Donativo já estabelecido; regulando‑se a cobrança destes Direitos pelas Pautas, ou Aforamentos, porque até o presente se regulão cada huma das ditas Alfandegas, ficando os Vinhos, e Aguas Ardentes, e Azeites doces, que se denominão Molhados, pagando o dobro dos Direitos, que até agora nellas satisfazião. Secundo: Que não só os Meus Vassallos, mas tambem os sobreditos Estrangeiros possão exportar para os Portos, que bem lhes parecer a beneficio do Commercio, e Agricultura, que tanto Desejo promover, todos, e quaesquer Generos, e Producções Coloniaes, á excepção do Páo do Brazil, ou outros notoriamente estancados, pagando por sahida os mesmos Direitos já estabelecidos nas respectivas Capitanias, ficando entre tanto como em suspenso, e sem vigor todas as Leis, Cartas Regias, ou outra Ordens, que até aqui prohibião neste Estado do Brazil o reciproco Commercio, e Navegação entre os Meus Vassallos, e Estrangeiros. O que tudo assim fareis executar com zelo, e actividade, que de vós Espero. Escrita na Bahia aos vinte e oito de Janeiro de mil oitocentos e oito. = PRINCIPE.= Para o Conde da Ponte.”68
Depois de assinado o decreto, “[...] e logo houve mais festas religiosas, jantares opíparos, como os oferecidos em casa de Vilela e de Antunes Guimarães, merendas de pompa na Itaparica e, finalmente, as iluminações com que se antecedeu a despedida. Parecia uma nuvem rasteira, loira e vermelha, de labaredas lambendo as águas e a cidade de Todos‑os‑Santos.” 69 Embora houvesse esforços para o Príncipe Regente ficar na Baía, este não se demoveu do seu destino e a 26 de Fevereiro rumou para o Rio de Janeiro, ao som de cantatas de despedida.
7.3. Chegada de D. João ao Rio de Janeiro
“Aportou na Guanabára a 07 de março, sendo‑lhe preparado, na capital, o Palacio dos governadores, ligado por um passadiço, á igreja do Carmo. No meio da alegria da recepcção, já se ouviam uns «vivas» dados ao imperador do Brasil.” 70 Se uma imagem vale por mil palavras, existem palavras que conseguem representar muitas imagens. Eis a chegada de D. João ao Rio de Janeiro descrita entusiasticamente por Rocha Martins: “Os céus toldavam‑se no fumo dos foguetes lançados de todos os môrros, da orla da água, do topo dos edifícios, estralejando com o ribombar cavo dos tiros de salva das naus e fortalezas; festivamente os bronzes badalavam nos campanários quando ainda mal se avistavam as velas. Fôra beijar a mão ao regente o intendente da marinha, Caetano Lima, à entrada da barra. D. João acolhera‑o com graça e bondade e dos seus lábios começaram a sair as palavras gratas quando distinguiu os numerosos escaleres, toldados de todas as côres, empavesados, atraentes de músicas vivas, trazendo as pessoas mais importantes e as quais rodeavam a Príncipe Real, num fetichismo, soltando as suas aclamações.” 71
Não podemos deixar de referir o contraste desta chegada com a partida de Lisboa nos finais de Novembro de 1807, contrastanto o contentamento no Rio de Janeiro e as lágrimas em Portugal.
“Era no momento em que o vice‑rei, de joelhos, levava aos lábios a mão do soberano a quem entregava o poder, o mando, a governança. Daquela hora em diante não era mais do que seu súbdito, um vassalo, despojado de toda a sua pompa e da sua hierarquia na colónia.
No dia seguinte, quando a família real desembarcou, já o príncipe estava de ânimo tranquilo. Deixava a mãe a bordo; gravemente punha o pé em terra e logo redobrava a retumbância da pólvora, o barulho das aclamações, os retimtim repetidos dos sinos alagando os espaços de alegrias, hossanas, aleluias. As vozes subiram misturadas de entusiasmo e de fé, um hino religioso dominou‑as num instante; a população prostrara‑se e, junto do altar, armado na rampa do cais, o chantre72 e dois cónegos deram o santo lenho a beijar ao primeiro homem de sangue real que pisava a terra de Santa Cruz.
Passou sobre os arcos triunfais cheios de alegorias e, na luz dos cinco mil brandões acêsos, apesar do esplendôr do céu dessa tarde de Março, o re-gente ia entrar no palácio com os seus, quando o povo começou a aclamá‑lo:– Viva o nosso soberano!… Viva o nosso imperador!…” 73
D. João respondia a esta prova de carinho por parte dos seus súbditos, com amabilidade e cortesia. A todos tentando agradar e com gestos e com palavras delicadas granjeou a simpatia e amor destas gentes, as quais lhe faziam ofertas de grande valor, delas se destacando a Quinta da Boa Vista, que lhe foi ofertada por Elias Lopes.
8. A Corte no Brasil
8.1. Os Primeiros Tempos
Os ânimos, porém, iriam arrefecer devido às poucas habitações disponíveis e necessárias para alojar tanta gente. Cerca de quinze mil pessoas para alojar e outras tantas para desalojar. “Do dia para a noite, o vice‑rei fazia evacuar muitos prédios, para neles se alojar a comitiva do regente; bastavam duas simples letras – P. R.74 (Principe Regente) – postas de ordem superior em qualquer casa, para os moradores terem de mudar‑se in continenti [a fim] de cederem a moradia aos fidalgos e criadagem palaciana.” 75
“Dificilmente as tropas continham a populaça; chegaram a ser rôtas as fileiras do regimento de Bragança e as peças, retumbando sempre, os sinos revolteando sons, atordoavam a gente do séquito que, sob uma chuva de flôres e de hervas aromáticas, no litaniar dos sacerdotes, ía, procissionalmente, deixar os soberanos nos seus paços.
Depois, emquanto o Rio de Janeiro iluminava soberbamente e as solenidades religiosas se sucediam, começaram as bulhas por causa das aposentadorias. As habitações da cidade eram pequenas para tanta gente vinda de imprevisto e a própria família rial mal cabia nos logares que o vice rei lhe destinara ignorando divergências, questões, ciumes existentes entre personagens régias e favoritos, políticos e oficiais da Casa Real.
Desalojados os carmelitas e os bordadinhos dos seus conventos deu‑se êsse edifício à rainha D. Maria I e a sua filha D. Mariana, para se alojarem com uma centena de damas, açafatas, curvilheiras e retretas.
Ao rez da rua, nas salas térreas, fumegavam as cosinhas, atochavam‑se a manutenção e a ucharia. Transformara‑se em armazem de comedorias a antiga cadeia cidadã e agora, como antigamente, não se calavam as disputas, os clamôres, as fúrias, os ralhos, os gritos histéricos das portuguesas, das negras, das empregadas régias, furiosas, umas com saùdades dos namorados, outras dengosas já em amavios, ciosas, influenciadas pelo clima e pelas comidas, atordoando o paço, atravancando o passadiço que se armara, em derretes e em balbúrdias.
Para as bandas da baía magnífica, olhando as àguas, miravam os aposentos de D. João, os salões, a casa de jantar, onde êle gostava de comer com os pequenos príncipes, os quartos destinados às suas cousas íntimas, mas logo os invadiram os camaristas, os Lobatos, o paraty, os outros, ficando quase sem pompa aquele que o povo aclamava de imperador.
D. Carlota Joaquina instalara‑se com as filhas em cúbiculos distantes, a marcar bem a sua separação do marido; D. Maria Benedicta tambem mal encontrara guarida decente.
A família real vivia numa grande promiscuidade com a gente de libré, faltavam as magníficas casas de Mafra e da Ajuda, onde para se chegar junto dos soberanos era necessário atravessar inúmeras salas; os infantes brincavam num pátio em cuja sombra a criadagem acirrava os macacos das gaiolas e os pássaros exóticos soltavam os seus gritos, abrindo os bicos recurvos e as asas variegadas, azuis, vermelhas, amarelas, de tons lindos mesmo naquela luz plumbea de poço.
Os da côrte, êsses evocavam precedências e qualidades para escorraçarem os moradores das melhores residências e acomodarem‑se sem mais detença.76 [...]
Assim se ia instalando a corte no Brasil, os cerca de quinze mil portugueses que viajaram para o Brasil evitando o confronto com os soldados franceses e espanhóis às ordens de Napoleão, desalojavam agora aqueles portugueses indígenas de suas casas e em vez de seguir o exemplo do príncipe regente, com palavras acolhedoras e de gratidão, muitas vezes “só encontravam depois de os despojar, frases soezes para os maldizer. Riam‑se dos hábitos brasileiros, das suas modinhas e dos seus sotaques, troçavam da sua existência simples, dos seus usos patriarcais, das suas maneiras de vestir, continuavam, dentro das carruagens apreendidas, seges, coches e cadeirinhas, a vida faustosa de Lisboa, recebendo do tesouro réditos e pensões e para que em tudo se assemelhasse o seu viver ao levado em Portugal, dentro em pouco as ruas cariocas estavam empestadas de detrictos, de lôdos imundos, lançados no grito porco do «àgua vai!»” 77
O que parecia o céu no início estava a tornar‑se num problema social!
8.2. Os Primeiros Actos de D. João
Um dos primeiros actos do Príncipe Regente foi, apenas passados três dias de se ter estabelecido a sede da monarquia portuguesa, nomear os seus ministros: “Para a pasta da Fazenda foi indigitado D. Fernando de Portugal, marquês de Aguiar, penúltimo vice‑rei; para a pasta da Marinha nomeou João de Sá e Menezes, visconde de Anadia e para a pasta da Guerra e Negocios Estrangeiros foi encarregue Rodrigo de Souza, conde de Linhares78.
Contrastando com as medidas tomadas para manter a neutralidade com a França, até ao dia do embarque para o Brasil, querendo evitar a guerra a todo o custo aconselhou os seus súbditos a receberem as tropas invasoras como amigas, D. João mudaria de opinião face aos acontecimentos que se estavam a passar na sua mãe‑pátria e toma uma atitude que dá a conhecer ao mundo, a 01 de Maio de 1808 é publicado um manifesto, com a sua assinatura, que termina com uma declaração de guerra contra Napoleão, “protestando que não consentiria em caso algum na cessão de Portugal, e não deporia as armas sem que precedesse accôrdo inteiro com Inglaterra.” 79
Este documento, publicado em edição bilingue português e francês, digno de uma leitura atenta, com a designação de Manifesto, explica a conduta de Portugal em relação à França desde a Revolução até à Invasão daquela e as razões que levaram a declarar a guerra a Napoleão.
Por uma questão de palavra e de coerência, como para responder à letra do que se estava a passar no Portugal europeu, D. João ordenou a conquista da Guiana Francesa80. Ao governador do Pará foi dada esta missão e o governador de Pernambuco apoiaria a acção com tropas e artilharia. No esforço concertado para a campanha da Guiana Francesa, entendida em jeito de retaliação contra o invasor francês de Portugal, vejamos as iniciativas tomadas nesse sentido:
“[...] Formou pois, o governador do Pará uma divisão de 900 praças ao mando do tenente coronel de artilharia Manuel Marques de Elvas Portugal, que seguiu por terra, bem como uma flotilha composta de algumas embarcações pequenas e de uma corveta ingleza. Dirigida pelo capitão inglez Jayme Lucas Jéo ou Hyó como outros escrevem; levando além da tripulação, uns 500 homens de desembarque, velejou a escotilha ao longo da costa, de conserva e concerto com as forças terrestres.
A 3 de dezembro de 1808, surgiu a flotilha á vista da bahia do Oyapoc, onde acabava de chegar igualmente Manuel Marques, que, depois de rebater diversas partidas de inimigos, se apresentou diante da cidade de Cayenna.
Commandava na praça em que havia uma pequena fortaleza e diversos reductos, o francez Victor Hugo, que dispunha de 511 soldados, de 200 paisanos armados, de artilharia e de um brigue de guerra. Defendeu‑se com denodo o Francez; quando, porém, viu que tinha perdido quasi todas as trincheiras, e os nossos bravos iam chegando à fortaleza para a tomar de assalto, julgou ser já tempo de pedir uma honrosa capitulação, dirigindo suas propostas ao chefe portuguez e ao comandante da flotilha.
Como, todavia, essas propostas parecessem exageradas, estipularam um armisticio emquanto um expresso ia consultar sobre este ponto o governador do Pará. – Afim de levar prontamente ao principe estas bôas noticias, despachou este outro expresso que, subindo pelos Tocantins até Porto Real, e passando por Villa Rica, chegou ao Rio de Janeiro com noventa e poucos dias de viagem (março, abril, maio).
Consentiu o governador do Pará na capitulação, modificando as propostas excessivas do Francez e concedendo aos rendidos todas as honras da guerra comtanto que se comprometessem a não pegarem em armas, durante um anno, nem contra Portugal, nem contra os seus alliados.
Concedeu igualmente que a Guyana continuasse a reger‑se pelas leis francezas com a condição de ser governada por um Portuguez e em nome do principe D. João.
Tendo o commandante Victor Hugo acceitado estas condições, embarcou para a França com todos os seus soldados, pelo meio de fevereiro de 1809, emquanto os nossos occupavam a praça, e Manoel Marques tomava posse de Cayenna e de toda a Guyana Franceza.
Cuidou sem demora o governo do regente em estabelecer o seu direito sobre todo o território, enviando para Cayenna, no caracter de intendente geral, o desembargador João Severiano Maciel da Costa, futuro marquez de Queluz, senador e ministro do imperio, revestido de plenos poderes para governar o paiz. Augmentou o governo as forças militares da Guyana mandando a Maciel mais de 800 praças de linha.
Acharam os nossos em Cayenna duas typografias, que funcionavam regularmente, e, no seu territorio, diversas plantas finas da India e arvores preciosas inteiramente desconhecidas no Brasil; o desembargador Macial enviou‑nos algumas dessas plantas que, propagadas pelas diversas capitanias, augmentáram a riqueza nacional, melhorando a agricultura.”
8.3. Consequências da Família Real no Brasil
Depois de 14 anos muitos acontecimentos tiveram lugar no Brasil e em Portugal. Não é nosso encargo desenvolver em demasia este capitulo, pese embora ser um tema apaixonante, pelo que apenas apontaremos algumas das vantagens que a estada da Família Real e da Corte trouxeram ao Brasil. O que Portugal continental perdeu, o Brasil ganhou. A Família Real e as suas riquezas deslocaram‑se para o ultramar e o desenvolvimento destas novas fortunas haveria de precipitar o processo da independência do Brasil em 1822, sem esquecer as questões ligadas à Revolução Liberal de 24 de Agosto de 1820 em Portugal. O Continente sofreria diversas invasões que tudo de mau lhe trouxe: doenças, mortes, pobreza, as maiores misérias que os homens podem fazer uns aos outros.
Vejamos algumas das vantagens que esta opção estratégica trouxe para este território, então português, visto numa perspectiva brasileira:
“1.º De repente, sem guerra e do modo mais honroso, acabaram‑se os tempos coloniaes; em 1808, o Brasil não somente cessou de ser colonia, mas tornou‑se até o centro da monarchia portugueza e, em 1815, foi officialmente elevado á categoria de Reino Unido ao de Portugal e Algarves.
2.º Nossa patria foi preservada dos horrores das guerras civis e da anarchia, que assolaram todas as republicas da America do Sul quando realizaram a sua independencia; sem a providencial chegada da familia real, os mesmos fagellos podiam nos acabrunhar tambem.
3.º O Brasil todo, desde o extremo norte até o extremo sul ficou unificado num só bloco, adquiriu cohesão em todas as suas partes; até então, a autoridade do vice‑rei extendia‑se pouco além do Rio; separadas umas das outras, as capitanias quasi que não dependiam do vice‑rei e obedeciam, cada uma de seu lado, ao Conselho Ultramarino e á Mesa de Consciencia de Lisbôa. Com a vinda de D. João, a attenção e as vontades dos Brasileiros em peso dirigiram‑se para a nova capital, para o coração do proprio paiz. Foi a mais natural centralização politica, o convergimento das forças sociaes e das actividades para o mesmo foco, a fusão das antigas capitanias numa só nação, homogénea em tudo: lingua, religião, aspirações, tendencias, nação dotada de vida propria e já emancipada da antiga metropole. Essa vinda de D. João foi o acontecimento que mais contribuiu para rematar e intensificar a admiravel e preciosa cohesão do povo brasileiro, apezar da immensidade de nosso rico territorio; para nós, essa união é um dos mais factores de progresso, uma causa de força e um motivo de patriotico jubilo. [...]
4.º O franqueamento completo de nossos portos para o commercio, 1.º decreto assignado por D. João em terra brasileira;
5.º A autorização dada aos navios de Brasil de ir para qualquer paiz extrangeiro, outorgada em 1814;
6.º O livre exercicio de qualquer industria, mesmo a de ourives, permittido a 1.º de abril de 1808;
7.º A protecção para a industria nacional e os inventores de machinas novas e a preferencia concedida aos productos nacionaes para as compras do governo;
8.º O fomento agricola por meio de premios dados aos que aclimatassem no Brasil plantas exoticas uteis á industria ou ao commercio;
9.º No Rio, a creação da Imprensa Régia, com nosso primeiro periodico, um diario, chamado Gazeta; de uma Escola anatomico‑cirurgica e medica, de um laboratorio chimico, de um instituto vaccinico, do Jardim Botanico perto da Lagôa de Rodrigo de Freitas, de uma Bibliotheca Publica, das Academias de marinha, de sciencias e de bellas artes; uma fabrica de polvora, na Lagôa de Rodrigo de Freitas, transferida mais tarde para lugar mais apropriado na raiz da Serra da Estrella; o calçamento e a illuminação das ruas; o augmento da cidade além do Campo de Sant’Anna, etc.
A população do Rio deve a D. João um serviço de grande utilidade para a alimentação publica: foi ele que mandou vir sardinhas da França e povôou os viveiros de sua Quinta do Cajú, donde se espalharam pela bahia e fóra, fornecendo optimo e abundante alimento.
10.º A Relação do Rio foi elevada a Casa de Supplicação; creou‑se uma Junta de Commercio e o Banco do Brasil com o capital de 1200 contos de reis distribuidos em 1200 acções, isentas de penhora, etc.
11.º As provincias melhoraram tambem com a fundação de 2 novas Relações, uma no Maranhão e outra em Pernambuco; de uma typografia na Cidade do Salvador e na autonomia local concedida ás capitanias do Espirito Santo (1812), Piauhy (1814), Santa Catharina (1817), Rio Grande do Norte (1817) e Sergipe (1820); etc.”81
Por todas estas medidas e muitas outras que não nos oferece registar neste trabalho, o Brasil e o seu povo sentem uma enorme gratidão por este período histórico, sobretudo por D. João, como se verifica em mais uma passagem que consta no livro didáctico Elementos de História do Brasil, editado em 1925: “Seja como fôr, o Brasil deve ser grato á memoria do principe regente D. João, que o amou, lhe foi util e desejou sel‑o ainda mais, e elevou a tal grau de prosperidade que Thomaz Jefferson, o entrevistado de Nimes com José Mariano Leal, escrevia numa carta a Lafayette, em 1817: «O Brasil é mais populoso, mais rico, mais forte e tão instruido como a mãe‑patria»” 82
Conclusão
O objectivo principal deste artigo foi o de partilhar com os nossos leitores os acontecimentos que levaram a Família Real a transferir‑se para o Brasil, evitando assim a sua captura por parte de Junot, e as consequências que essa decisão estratégica teve, fundamentalmente, para o futuro do Brasil.
Entre a espada e a parede, Portugal decidiu‑se pela Aliança Marítima, tendo conseguido salvar o seu império ultramarino e o seu reino, deslocando a Corte para o Brasil. Quem está convencido que a Família Real fugiu para o Brasil está, na nossa modesta opinião, enganado porque esta atitude ousada foi bem preparada e única no período que foi alvo do nosso estudo. Napoleão preparava‑se para capturar os mais altos dignatários de Portugal e dividir o país em três, conforme consta no Tratado de Fontainebleau. A Convenção Secreta de Outubro de 1807 entre Portugal e a Grã‑Bretanha desmistifica esta controvérsia.
Podemos concluir que a decisão tomada pelo Príncipe Regente foi a mais acertada para Portugal e para o mundo e, sobretudo, para o Brasil, que ganhou com a estada da Família Real portuguesa e da Corte, criando os alicerces para a independência83, proclamada com o Grito de Ipiranga pelo Príncipe D. Pedro, futuro imperador do Brasil, em 1821.
Passados quase dois séculos sobre a ida de tantos portugueses para o Brasil e tantas outras migrações, por dificuldades e razões de vária ordem, não deixa de ser curioso o que Ângela Dutra de Menezes escreve no seu livro84 “Bisavô português é igual a carro a álcool: todo o mundo tem um”, fazendo jus ao espírito alegre e divertido do povo brasileiro. Hoje são dois países irmãos com a mesma língua, com uma parte da História comum, em que as relações de toda espécie, desde a social à económica, se incrementam.
Fontes e Bibliografia
Bibliografia
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ANEXO I
Convenção secreta de 1807
Entre o Príncipe Regente o Senhor D. João e Jorge III, Rei da Grã‑Bretanha, sobre a transferência para o Brasil da sede da Monarquia Portuguesa e ocupação temporária da ilha da Madeira pelas tropas britânicas, assinada em Londres a 22 de Outubro e ratificada por parte de Portugal em 8 de Novembro e pela Grã‑ Bretanha em 19 de Dezembro.
Tendo Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal feito comunicar a Sua Majestade Britânica as dificuldades em que se acha em consequência das exigências injustas do Governo Francês e a sua determinação de transferir para o Brasil a sede e a fortuna da Monarquia Portuguesa, antes do que aceder à totalidade das ditas exigências e especialmente àquelas pelas quais o Governo Francês insiste na apreensão de pessoas dos súbditos de Sua Majestade Britânica residentes em Portugal e na confiscação de todas as propriedades inglesas que ali se achavam, bem como na declaração de guerra por parte de Sua Alteza Real ao mesmo tempo proposto, a fim de evitar (sendo possível) a guerra com a França, a consentir em fechar os portos à bandeira inglesa; e considerando que um tal acto de hostilidade da sua parte poderia justificar Sua Majestade Britânica e acaso induzi‑la a usar de represálias, já pela ocupação da ilha da Madeira ou de outra qualquer colónia da coroa de Portugal, ou já forçando a entrada do porto de Lisboa e empregando os mais meios de hostilidade contra a marinha militar e mercante de Portugal; considerando igualmente que a simples apreensão bem fundada da clausura dos portos de Portugal poderia trazer consigo a ocupação provisória das colónias pelas armas de Sua Majestade Britânica e que um passo ou declaração hostil da França contra Portugal não deixaria de produzir aquele mesmo efeito; e Sua Majestade Britânica, pela sua parte, fazendo justiça aos sentimentos de amizade e boa fé que têm caracterizado as últimas comunicações de Sua Alteza Real o Príncipe Regente, e estando determinado a auxiliar por todos os meios que se acham à sua disposição a nobre resolução, que Sua Alteza Real o Príncipe Regente acaba de anunciar, de transferir a sede da Monarquia Portuguesa para o Brasil antes do que subscrever às exigências da França em toda a sua extensão; e desejando igualmente; e no caso mesmo em que Sua Alteza Real consentisse em fechar os seus portos à Grã‑Bretanha (passo este que Sua Majestade Britânica veria com pesar e a que nunca poderia supor‑se que dera o seu consentimento), conciliar quanto possível os sentimentos e interesses de um antigo e fiel aliado, e proceder para com Portugal com toda a moderação compatível com o que é devido à sua honra e aos interesses dos seus súbditos, e com o objecto essencial que não pode perder de vista, qual é o de impedir que nem as colónias nem a marinha militar e mercante de Portugal, no todo ou em parte, caiam nas mãos da França: as duas Altas Partes Contratantes determinaram em consequência tomar de um comum acordo as medidas e obrigações recíprocas que se julgarem mais convenientes para conciliar os seus interesses respectivos, e para prover em todo o caso à segurança da amizade e boa inteligência que têm subsistido há tantos séculos entre as duas coroas. E a fim de discutir estas medidas e de preencher este saudável fim, Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal nomeou por seu plenipotenciário ao Cavalheiro de Sousa Coutinho, do seu Conselho e seu enviado extraordinário e Ministro Plenipotenciário residente em Londres: e Sua Majestade de El‑Rei do Reino Unido da Grã‑Bretanha e Irlanda nomeou por seu plenipotenciário ao muito honrado Jorge Canning, Conselheiro privado de Sua dita Majestade e seu principal Secretário de Estado na Repartição dos Negócios Estrangeiros; os quais, depois de se terem comunicado os seus respectivos plenos poderes, e achando‑os em boa e devida forma, convieram nos artigos seguintes:
ARTIGO I
Até que haja a certeza de algum passo ou declaração hostil da França contra Portugal ou que Portugal, a fim de evitar a guerra com a França, consinta em cometer de alguma sorte um acto de hostilidade contra a Grã‑Bretanha, fechando os seus portos à bandeira inglesa, nenhuma expedição será feita pelo Governo Britânico contra a ilha da Madeira nem contra qualquer possessão portuguesa, e, quando uma semelhante expedição se julgar necessária, será a mesma noticiada ao Ministro de Sua Alteza Real o Príncipe Regente residente em Londres e com ele concertada.
Pelo seu lado, Sua Alteza Real o Príncipe Regente obriga‑se de ora em diante a não permitir a remessa de reforço algum de tropas (excepto de inteligência e acordo com Sua Majestade Britânica), para o Brasil e para a ilha da Madeira, nem de para ali mandar nem ali permitir a assistência de nenhum oficial francês, seja no serviço da França, seja no serviço de Portugal.
Outrossim se obriga a transmitir sem demora ao governo da ilha da Madeira ordens secretas eventuais para que não faça resistência a uma expedição inglesa cujo comandante lhe anunciar, debaixo de sua palavra de honra, que a dita expedição tenha sido preparada de inteligência e acordo com Sua Alteza Real o Príncipe Regente.
ARTIGO II
No caso em que Sua Alteza Real o Príncipe Regente se visse obrigado a levar a pleno e inteiro efeito a sua magnânima resolução de passar para o Brasil, ou se, mesmo sem ser a isso forçado pelos procedimentos dirigidos contra Portugal, Sua Alteza Real se decidisse a empreender a viagem do Brasil ou a mandar para ali um Príncipe de sua família, estará pronto Sua Majestade Britânica a ajudá‑lo nesta empresa, a proteger o embarque da Família Real e a escoltá‑los à América. Para este fim obriga‑se Sua Maestade Britânica a mandar aprestar imediatamente nos portos de Inglaterra uma esquadra de seis naus de linha, a qual partirá logo para as costas de Portugal, e de ter neles igualmente, pronto a embarcar‑se, um exército de cinco mil homens, que partirá para Portugal ao primeiro pedido do Governo Português.
Uma parte deste exército ficará de guarnição na ilha da Madeira, mas não entrará ali senão depois que Sua Alteza Real tiver tocado na mesma ou passado a ilha indo para o Brasil.
ARTIGO III
Mas, no caso infeliz em que o Príncipe Regente, a fim de evitar a guerra com a França, se visse obrigado a fechar os portos de Portugal às embarcações inglesas, o Príncipe Regente consente que as tropas inglesas sejam admitidas na ilha da Madeira, imediatamente depois da troca das ratificações desta convenção, declarando o comandante da expedição inglesa ao Governo Português que a ilha será guardada em depósito para Sua Alteza Real o Príncipe Regente até à conclusão da paz definitiva entre a Grã‑Bretanha e a França.
As instruções que se derem ao dito comandante inglês para o governo da ilha durante a sua ocupação pelas armas de Sua Majestade Britânica serão concertadas com o Ministro de Sua Alteza Real o Príncipe Regente residente em Londres.
ARTIGO IV
Sua Alteza Real o Príncipe Regente promete de jamais ceder em caso algum, seja no todo seja na parte, a sua marinha militar ou mercante ou de as reunir às da França ou de Espanha ou de outra qualquer potência.
Obriga‑se outrossim, no caso de passar para o Brasil, a levar consigo a sua marinha militar e mercante, seja perfeita ou incompletamente aparelhada, ou, não podendo executar‑se isto, de transferir como depósito para a Grã‑Bretanha aquela parte que não puder levar imediatamente consigo; e Sua Alteza Real ajustará depois com Sua Majestade Britânica os meios de mandar ir estas embarcações para o Brasil com toda a segurança.
ARTIGO V
No caso de clausura dos portos de Portugal, obriga‑se Sua Alteza Real a mandar sair incessantemente para o Brasil metade da sua marinha de guerra e a conservar a outra metade em número pouco mais ou menos de cinco ou seis naus de linha e de oito ou dez fragatas, em meio armamento (pelo menos), no porto de Lisboa, de sorte que, à primeira indicação de uma intenção hostil da parte dos franceses ou dos espanhóis, aquela força naval possa reunir‑se à esquadra britânica destinada a este serviço e servir ao transporte de Sua Alteza e da Família Real para o Brasil. Com o fim de melhor assegurar o bom êxito deste acordo, obriga‑se o Príncipe Regente a dar o comando da sua esquadra no porto de Lisboa, bem como o comando da que enviar para o Brasil, a oficiais cujos princípios políticos sejam aprovados pela Grã‑Bretanha.
As duas Altas Partes Contratantes convieram em autorizar os comandantes português e inglês, nas respectivas estações de Lisboa por um lado e das costas de Portugal pelo outro, a corresponderem‑se secretamente sobre tudo que possa ter relação com a reunião eventual das esquadras inglesa e portuguesa.
Quanto à metade da marinha militar que possa ser enviada para o Brasil será a mesma ali desarmada à sua chegada, a não ser que os dois governos decidem outra coisa.
ARTIGO VI
Uma vez que se ache estabelecida a sede da Monarquia Portuguesa no Brasil, obriga‑se Sua Majestade Britânica, em seu nome e no de seus sucessores, a não reconhecer jamais como Rei de Portugal Príncipe algum que não seja o herdeiro e representante legítimo da Família Real de Bragança; e mesmo a renovar e manter com a regência que Sua Alteza Real puder deixar estabelecida em Portugal, antes de partir para o Brasil.
ARTIGO VII
Quando o Governo Português estiver estabelecido no Brasil proceder‑se‑á à negociação de um tratado de auxílio e de comércio entre o Governo Português e a Grã Bretanha.
ARTIGO VIII
Esta convenção será tida secreta para o presente e não se publicará sem o consentimento das duas Altas Partes Contratantes.
ARTIGO IX
Será ratificada de uma e outra parte, e as ratificações trocadas em Londres no prazo de seis semanas, ou antes, se puder ser, a contar do dia da assinatura.
Em fé do que, nós abaixo assinados, plenipotenciários de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, em virtude de nossos respectivos plenos poderes, assinámos a presente convenção e lhe pusemos o sinete de nossas armas.Feita em Londres, a 22 de Outubro de 1807. O Cavalheiro de Sousa Coutinho – George Canning.
Declaração
O abaixo assinado, Principal Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de Sua Magestade Britânica, consentindo em subscrever ao artigo II desta convenção, recebeu as ordens de El‑Rei para declarar que a execução daquela parte do dito artigo pela qual se estipula o mandar‑se uma esquadra e tropas de Sua Majestade para o Tejo, a fim de proteger o embarque da Família Real de Portugal, depende da segurança, que será dada, de que os fortes sobre o Tejo, a saber: os fortes de S. Julião e do Bugio, serão previamente entregues ao comandante das tropas britânicas, bem como o forte de Cascais, se o embarque tiver lugar daquele sítio, ou então do de Peniche, no caso de que a Família Real se tenha retirado àquela península; e ficarão em poder do dito comandante até que o objecto para o qual as tropas são mandadas estiver preenchido ou que Sua Alteza Real tiver determinado a quem as tropas inglesas devem restituí‑lo.
O Cavalheiro de Sousa Coutinho, plenipotenciário de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal, não se achando autorizado, pelas instruções de que actualmente está munido, a contratar obrigação alguma a tal respeito, o abaixo assinado recebeu ordem de acompanhar o tratado com esta declaração explicativa e de pedir que a sua segurança acima mencionada seja enviada com a ratificação do Príncipe Regente.
Feita em Londres, a 22 de Outubro de 1807. – George Canning.
Artigos adicionais
ARTIGO I
No caso da da clausura dos portos de Portugal à bandeira inglesa será estabelecido um porto na ilha de Santa Catarina ou em qualquer outro lugar da costa do Brasil, aonde todas as mercadorias inglesas, que ao presente são admitidas em Portugal, serão importadas livremente em embarcações inglesas, pagando os mesmos direitos que se pagam actualmente pelos mesmos artigos nos portos de Portugal, e este arranjamento durará até novo acordo.
Este artigo adicional terá a mesma força e valor como se fora inserto palavra por palavra na convenção assinada hoje e será ratificada ao mesmo tempo.
Em fé do que nós, abaixo assinados, plenipotenciários de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, em virtude de nossos respectivos plenos poderes, assinámos a presente convenção e lhe pusemos o sinete de nossas armas.
Feita em Londres, a 22 de Outubro de 1807. O Cavalheiro de Sousa Coutinho assino sub spe rati, declarando que não tenho instruções a tal respeito, e conquanto que Sua Alteza Real, tornando a abrir os portos de Portugal, possa reconsiderar ou alterar este artigo) – George Canning.
ARTIGO II
Fica plenamente entendido e ajustado que desde o momento em que os portos de Portugal forem fechados à bandeira inglesa, e por todo o tempo que assim continuem, os tratados existentes entre a Grã‑Bretanha e Portugal devem considerar‑se como suspensos, pois que concedem à bandeira portuguesa privilégios e isenções de que as outras nações neutrais não gozam e que, segundo o direito das gentes, não pertencem ao estado de simples neutralidade.
Este artigo adicional terá a mesma força e valor como se fora inserto palavra por palavra na convenção assinada hoje e será ratificada ao mesmo tempo.
Em fé do que nós, abaixo assinados, plenipotenciários de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, em virtude de nossos respectivos plenos poderes, assinámos a presente convenção e lhe pusemos o sinete de nossas armas.
Feita em Londres, a 22 de Outubro de 1807. ‑O Cavalheiro de Sousa Coutinho (assino sub spe rati, declarando que não tenho instruções a tal respeito, e conquanto que o efeito desta suspensão não seja retroactivo e não cause a perda das propriedades portuguesas confiadas à fé dos tratados existentes) – George Canning.
Ratificação à Convenção secreta de 1807Do Príncipe Regente e Senhor D. João, dada a 8 de Novembro.
D. João, por Graça de Deus, Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar, África, da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pércia e da Índia, etc.. Faço saber a todos os que a presente carta de confirmação, aprovação e ratificação virem que em 22 de Outubro do corrente ano se concluiu e assinou na cidade de Londres uma convenção entre mim e o sereníssimo e potentíssimo Príncipe Jorge III, Rei do Reino Unido da Grã‑Bretanha e da Irlanda, meu bom irmão e primo, com o fim de conservar intacta à Monarquia Portuguesa a ilha da Madeira e as mais possessões ultramarinas, sendo Plenipotenciários para esse efeito da minha parte D. Domingos António de Sousa Coutinho, do meu Conselho, Fidalgo da minha Casa e meu Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário naquela Corte, e da parte de Sua Majestade Britânica o muito honrado Jorge Canning, Conselheiro Privado de Sua dita Majestade e seu Principal Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, da qual convenção o teor é o seguinte:
(Segue‑se a convenção)
E sendo‑me presente a mesma convenção, cujo teor acima fica inserto, e bem visto, considerado e examinado por mim o que nela se contem, a aprovo, ratifico e confirmo, assim no todo como em cada uma das suas cláusula e estipulações, exceptuando algumas expressões de preâmbulo, o § I.º do artigo V, a declaração ao artigo II, que se ratifica com restrição, e o artigo I adicional, pelas razões indicadas nas observações que a esta convenção vão juntas, assinadas pelo meu Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra: prometendo em fé e palavra real observá‑la e cumpri‑la inviolavelmente e fazê‑la cumprir e observar sem permitir que se faça coisa alguma em contrário, por qualquer modo que possa ser. E em testemunho e firmeza do sobredito fiz passar a presente carta, por mim assinada, selada com o selo grande das minhas armas e referendada pelo dito meu Ministro e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, abaixo assinado.
Dado no Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, a 8 de Novembro de 1807. – O Príncipe com guarda – António de Araújo de Azevedo.
Observações a que se refere a ratificação supra
O preâmbulo da convenção de 22 de Outubro de 1807 principia por uma suposição, qual é a que se acha nas seguintes palavras « ayant fait à Sa Majesté Britannique sa détermination de transférer au Brésil le siège et la fortune de la Monarchie Portugaise, plutôt que d’accéder à la totalité de ces demandes»; Sua Alteza Real prometeu sempre a Sua Majestade Britânica, já directamente, já por meio dos respectivos Ministros, não aceder à proposição da apreensão das pessoas e confiscação de bens; mas nunca disse que antes queria transferir para o Brasil o assento da Monarquia Portuguesa do que aceder a todas as proposições.
Os lugares em que se acha feita e repetida esta promessa são os que se seguem:
Um ofício para o Ministro de Sua Alteza Real em Londres de 12 de Agosto de 1807.Disse nele:Ordena‑me Sua Alteza Real que expresse a V. S.ª a sua firme resolução de não assentir jamais à confiscação dos bens dos vassalos ingleses; isto deve V. S.ª segurar ao Ministério Britânico, mas Sua Alteza Real espera, em reciprocidade desta tão justa como decorosa acção, que esse Governo não dê ordens aos seus comandantes das forças marítimas para fazer hostilidades sobre navios portugueses. Qualquer procedimento desta natureza serviria para que a França e a Espanha clamassem altamente contra a nossa renitência sobre a sua proposição.
Outro ofício de 20 de Agosto para o mesmo Ministro:Os bens ingleses não hão‑de ter perigo algum, e quando seja preciso comboiá‑los ou transportá‑los, não se faz necessária uma esquadra ou divisão de esquadra para esse fim; um ou dois navios de guerra fora ou dentro do Tejo parece ser quanto basta; mas torno a segurar a V. S.ª que Sua Alteza Real está determinado mais depressa a perder o seu domínio neste País do que a sacrificar os sujeitos britânicos e os seus cabedais.
No mesmo ofício acrescenta:Por esta mesma razão reservo a escrever a V. S.ª em outra ocasião, para V. S.ª tratar nessa Corte sobre o modo com que ela poderá contribuir para a segurança da Família Real, protegendo com as suas forças navais a sua retirada. No caso que as circunstâncias obriguem a esta mesma resolução, tomarei as ordens de Sua Alteza Real a respeito deste triste e importante negócio, que interessa tanto os nossos corações, pois que só por este modo poderá salvar uma parte da Monarquia Portuguesa e transmiti‑la aos seus descendentes.
Finalmente em outro ofício para o dito Ministro, de 7 de Setembro, disse:Devo participar a V. S.ª, para que o comunique verbal e confidencialmente a esse Ministério, que Sua Alteza Real tomou a resolução de mandar aprontar a sua marinha para o caso de ser urgente a sua retirada e da Real Família. Dois acontecimentos podem obrigar a esta resolução: o primeiro a determinação de uma conquista; e o segundo a pretensão de introduzir tropas no País para guarnecer as costas, debaixo do pretexto de amizade, o que seria para a Monarquia mais perigoso do que a conquista.
Em outro ofício de 23 de Setembro se confirma esta mesma nos seguintes termos:Sua Alteza Real está firme em não assentir à proposição a respeito da apreensão de pessoas e confiscação de bens;
e outrossim acrescenta:Contudo não é justo precipitar‑se esta partida da Família Real para os Estados do Brasil, porque Sua Alteza Real não deve mostrar que abandona sem justa causa os seus vassalos na Europa.
Sua Alteza Real, escrevendo directamente a Sua Majestade Britânica, lhe deu seguranças análogas ao que ordenou ao seu Ministro em Londres, para ser participado ao Governo Britânico.
Ultimamente, na nota dirigida a Lord Strangford, em 17 de Outubro, se diz o seguinte:Sua Alteza Real, não havendo assentido à totalidade das proposições de parte das duas potências aliadas, de que resultou o retirarem‑se desta Corte os seus agentes, tem a íntima satisfação de que, não obstante o perigo a que se expôs, os súbditos de Sua Majestade Britânica ficarão ilesos na sua liberdade pessoal e nas suas propriedades.
Sua Alteza Real cumpriu quanto lhe foi possível a sua palavra, dando todo o tempo para os súbditos ingleses se retirarem e exportarem os seus efeitos com a isenção completa de direitos; agora porém, instando a França pela execução da sua proposição a este respeito, com ameaças e com a marcha do exército de Bayona para o interior de Espanha, foi Sua Alteza Real obrigado, bem que muito a seu pesar, a fazer a demonstração exigida, a fim de ver se ainda por este modo evita o ataque de Portugal; e Sua Majestade Britânica pode estar certa de que os súbditos britânicos experimentarão nas suas pessoas, e em algum resto dos seus bens, os efeitos possíveis da sua Real protecção.(Os que ficaram em Portugal são aqueles que por sua livre vontade, e apesar das reiteradas instâncias dos agentes de Sua Majestade Britânica, preferiram não deixar os seus estabelecimentos).
Em nenhum dos lugares acima citados se diz que Sua Alteza Real prefereria transferir‑se para o Brasil, ao aceder à proposição feita pela França; mas antes positivamente se afirma e repete que só em última extremidade é que tomaria partido de abandonar este Reino.
Tão‑pouco considerou jamais Sua Alteza Real que a clausura dos portos pudesse justificar Sua Majestade Britânica a excitá‑la a usar de represália, ocupando a ilha da Madeira ou qualquer outra colónia portuguesa. Sua Alteza Real, em todas as ocasiões desta negociação, mostrou sempre estar persuadido de que sua Majestade Britânica reconheceria de que só circunstâncias mui imperiosas e irresistíveis é que poderiam obrigá‑lo à clausura dos portos aos navios ingleses; e o exemplo de 1801, em que a Grã‑Bretanha assentiu a um igual passo, tranquilizava a Sua Alteza Real, assim como o reconhecido carácter de justiça e moderação de Sua Majestade Britânica, e não menos o comum interesse de ambas as Monarquias: como pois podem ter lugar os termos do prâmbulo «et considérant qu’un tel acte d’hostilité» até às palavras «ne pouvait manquer ce même effect» e como podem ter lugar os termos «demande à laquelle Sa Majesté Britannique ne pourrait jamais être censée avoir donné sont consentement?» Quando ainda que Sua Majestade Britânica não expresse este consentimento, ele se devia presumir tacitamente dado, pois que a presente convenção deve ser fundada neste motivo! É pois evidente que estas expressões do preâmbulo não podem servir de base à convenção, que tem por objecto conservar intacta à Monarquia Portuguesa a ilha da Madeira e as mais possessões ultramarinas.
ARTIGO I. – Este artigo não é concebido conforme as instruções dadas ao Ministro de Sua Alteza Real em Londres. Nelas se declara que, enquanto não houvesse certeza de passo algum ou declaração de hostil da França a Portugal, não poderia o Governo Britânico intentar expedição alguma contra a Madeira ou qualquer outra possessão portuguesa; e do artigo estipulado entende‑se que terá lugar esta expedição logo que Portugal cometer de qualquer modo um acto de hostilidade contra a Grã‑Bretanha, fechando os seus portos à bandeira inglesa. O grande perigo a que esta ocupação da Madeira arriscaria se acha claramente exposto nas instruções sobre o artigo III, e por isso aqui se não repete.
Contudo, no momento presente, não por hostilidades da parte de Portugal, mas pela marcha das tropas francesas e espanholas que se aproximam às fronteiras, pode a Inglaterra pôr em prática o que se estipula no dito artigo I, sem ser preciso participá‑lo ao Ministro de Sua Alteza Real em Londres, que dali se deve retirar.
O último parágrafo deste artigo «Il s’engage» até ao fim está muito bem concebido e se aprova, mas é preciso que o comandante inglês guarde sobre ele o mais inviolável segredo.
ARTIGO II. – É aprovado.
ARTIGO III. – Este artigo fica aprovado, em consequência do que se disse no fim das observações sobre o artigo I; reflectindo sòmente que não é justo alegar para isto a clausura dos portos, mas o que estava apontado no projecto da convenção, como já acima se disse.
ARTIGO IV. – O primeiro parágrafo deste artigo, que diz respeito a obrigar‑se Sua Alteza Real a não ceder em caso algum a marinha de guerra ou mercante, nem tão‑pouco a reuni‑la às de França ou de Espanha, não se pode estipular; e a este respeito repito as instruções que foram dadas (artigo V).É do interesse de Sua Alteza Real que em nenhum caso a marinha portuguesa de guerra e mercante passe a poder dos franceses, e cuidará muito em fazer partir a marinha real para o Brasil, impedindo, quanto lhe seja possível, a sua reunião à de França ou Espanha. Tanto a marinha real como a mercante se retirará quando Sua Alteza Real for obrigado a sair de Portugal. Neste sentido pode V. S.ª traçar este artigo. No caso porém de se achar alguma parte da marinha real neste porto, a Inglaterra pode impedir a sua saída por meio de forças de observação.
Sua Alteza Real, ainda que persista nestas mesmas intenções, não deve estipular uma cláusula a que pode ser forçado a faltar para o futuro, ao menos por uma promessa, porque não haveria outro meio de fazer cessar instâncias apoiadas pela força. A Inglaterra tem meios de evitar o efeito desta violenta condescendência.
O parágrafo deste mesmo artigo que principia «Il s’engage en outre» até ao fim é aprovado, pois que esta é a intenção de Sua Alteza Real.
ARTIGO V. – O primeiro parágrafo deste artigo não pode ser tratado pela razão de ser preciso que toda a marinha portuguesa esteja sempre à disposição de Sua Alteza Real, para a contingência de ser necessário transportar para o Brasil os efeitos preciosos, assim como as pessoas e bens dos que o seguirem.
Esta foi a razão, por causa dos comboios, que obrigou Sua Alteza Real a desistir da partida do Príncipe da Beira para o Brasil, e a reservá‑la para quando toda a Real Família se ausentasse, e para este fim têm sempre continuado os preparos da marinha.
A pretendida aprovação, da parte do Governo Britânico, dos oficiais que houveram de comandar a esquadra no porto de Lisboa, assim como a que for para o Brasil, é indecorosa, e mesmo de alguma sorte impraticável, porque só a Sua Alteza Real compete esta aprovação; e quando Sua Majestade Britânica tivesse que opor aos princípios políticos de tais oficiais, Sua Alteza Real nenhuma dúvida teria em removê‑los destes destinos e empregar outros em seu lugar, posto que não tem suspeita alguma contra os oficiais da sua marinha que a faça vacilar sobre a escolha.
O parágrafo que principia «Les deux hautes parties contractantes sont convenues» até «des escadres anglaise e portugaise» é aprovado.
O parágrafo que principia «Quant à la moitié de la marine militaire» até «par les deux Gouvernements» fica sendo inútil, visto que Sua Alteza Real reserva em totalidade para se retirar, quando as circunstância o exijam.
ARTIGO VI. – Este artigo é aprovado.
ARTIGOS VII, VIII e IX. – Estes artigos são aprovados.
Declaração assinada por S. Ex.ª George Canning
ARTIGO II (da convenção). – Sua Alteza Real não tem dúvida em dar ordem para que as fortificações de qualquer porto donde saia sejam entregues ao comandante britânico; mas isto só deve ser no momento da saída, porque antecedentemente a ela seria isso indecoroso a Sua Alteza Real, e por isso é ratificada com esta restrição.
ARTIGO I adicional). – Sua Alteza Real tinha concebido o projecto de estabelecer na ilha de Santa Catarina um porto para o comércio do Brasil, quando intentou mandar para aquela colónia seu filho primogénito, o Príncipe da Beira; mas como não se efectuou a sua partida, não se pode por ora estabelecer um plano de comércio, instituindo uma alfândega geral para esse fim. Se acaso Sua Alteza Real partir com toda a Real Família, fica tirada toda a dúvida; quando não será preciso convir com a Inglaterra de algum meio (o que é possível) de dirigir o comércio, que o mesmo Senhor quer favorecer, tanto para comprazer com Sua Majestade Britânica como porque as manufacturas inglesas permitidas são de primeira necessidade para os habitantes daquela colónia.
Mas no momento actual o estabelecimento na ilha de Santa Catarina faria irritar as duas potências aliadas do continente, o que Sua Alteza Real quer por último remédio evitar.
Resta pois a convir com a Inglaterra em um meio mais disfarçado para se fazer este comércio, para o que se tratará com o Governo Britânico quando ele queira; e esta é a razão de não ser ratificado este artigo.
Para a execução de qualquer plano a este respeito é preciso termos a certeza de haver comunicações com o Brasil, a fim de se poderem dar ordens competentes aos governadores, porque presentemente não existe comunicação com aquele continente, estando o comércio na maior incerteza.
Necessita‑se também de estipular a segurança de Navios que forem avulsos e a concessão para se cruzar contra os argelinos para a protecção deste comércio, como já foi ordenado ao Ministro de Sua Alteza Real em Londres, o que requereu.
ARTIGO II (adicional). – É aprovado.
Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 8 de Novembro de 1807. – Em conformidade do original. – Araújo.
Artigos adicionais à convenção secreta de 1807
Tocantes aos arranjamentos definitivos para o governo da ilha da Madeira enquanto ali residissem as tropas britânicas, assinados em Londres a 16 de Março de 1808 e ratificados por parte de Portugal em 5 de Setembro do dito ano e pela da Grã‑Bretanha em 14 de Janeiro de 1809.
Como se tornou necessário fazer‑se novos e definitivos arranjamentos de acordo com o Ministro de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal para o governo da ilha da Madeira durante o tempo que as tropas de Sua Majestade Britânica ali permanecerem, os abaixo assinados plenipotenciários de Sua Alteza Real o Principe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, tendo‑se novamente comunicado os plenos poderes em virtude dos quais concluíram e assinaram a convenção de 22 de Outubro de 1807, convieram nos seguintes artigos, a saber:
ARTIGO I
As duas Altas Partes Contratantes convêm em declarar, de um comum acordo, a capitulação assinada a 26 de Dezembro de 1807 pelo governador português, o Sr. Pedro Fagundes Bacelar Dantas e Meneses, de uma parte, e o almirante Sir Samuel Hood, e bem assim o general Beresford, da outra, nula e de nenhum efeito, e se for necessário aqui a revogam e anulam no todo e em todas as suas partes. E sua Majestade Britânica, em seu nome e de seus sucessores, promete de nunca fundar direito algum ou formar qualquer pretensão derivada da sobredita capitulação e a cargo de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de seus sucessores.
ARTIGO II
Expedir‑se‑ão ordens sem demora ao actual comandante das tropas britânicas na ilha da Madeira a fim de que ele entregue ao governador português o Sr. Pedro Fagundes Bacelar Dantas e Meneses, o governador da ilha, com as formalidades do costume; logo o estandarte de Sua Alteza Real ou a bandeira portuguesa se tornará a colocar em todos os seus fortes e baterias da ilha.
ARTIGO III
O comandante militar inglês da ilha será reconhecido desde agora pelo governador português como se tivesse recebido de Sua Alteza Real o Príncipe Regente o comando das tropas portuguesas e, nesta qualidade, reunirá o comando absoluto das tropas das duas nações, de sorte que todos os oficiais e soldados, de qualquer graduação que sejam, serão inteiramente sujeitos às suas ordens e não existirá força alguma militar na ilha que seja independente da sua autoridade; porém, não se ingerirá de modo algum na administração civil, nem das alfândegas, nem das rendas públicas, nem da sua cobrança e aplicação, não publicará em seu nome proclamação ou ordem dirigida às autoridades civis nem aos habitantes da ilha, entendendo‑se sempre que o governador português será obrigado a ordenar sem demora, por uma proclamação em nome de Sua Alteza Real o Príncipe Regente, qualquer medida militar que o comandante das tropas das duas nações lhe representar como indispensável para a defesa militar da ilha, tal como a reunião das milícias (sendo necessário), feita de um modo conforme aos regulamentos publicados por ordem de Sua Alteza Real o Príncipe Regente, e sem a tal respeito inovar coisa alguma, e que, no caso de dúvida entre as duas autoridades, o governador português se conformará provisoriamente com o pedido do sobredito comandante militar e dará a sua parte a Ministro de Sua Alteza Real o Príncipe Regente em Londres o qual se concertará para este efeito com os Ministros de Sua Majestade Britânica, e ordens recíprocas serão reexpedidas de Londres para terminar a diferença.
ARTIGO IV
O sustento das tropas inglesas estará inteiramente a cargo do Governo de Sua Majestade Britânica, excepto o aquartelamento, que lhe será designado, como o é actualmente, à custa do Governo Português. O governador português será obrigado a fazer com que o sobredito comandante militar tenha as provisões e géneros necessários preços correntes na ilha.
ARTIGO V
Ao militar não será permitido fazer requisições de víveres; mas o governador português será obrigado a dar‑lhe, livre dos direitos de entrada na alfândega, segundo a relação assinada pelo comandante militar, as quantidades e artigos seguintes que forem necessários para o alimento das tropas, a saber: farinha de toda a espécie, porco, toucinho, carne fresca e salgada e manteiga, e em geral tudo o que for necessário para o provimento das tropas; bem entendido que essa franquia não se estenderá aos outros habitantes da ilha, quer nacionais, quer ingleses, sem uma expressa e nova ordem de Sua Alteza Real o Príncipe Regente.
ARTIGO VI
Este arranjamento subsistirá até à conclusão da paz definitiva entre a Grã‑Bretanha e a França.
ARTIGO VII
Conveio‑se em que estes artigos terão a mesma força como se tivessem sido insertos na convenção secreta concluída e assinada em Londres a 22 de Outubro de 1807 e serão considerados como fazendo parte da mesma.
ARTIGO VIII
Estes artigos serão ratificados por Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e Sua Majestade Britânica no espaço de seis meses, ou antes se se puder fazer.
Em fé do que, nós abaixo assinados, plenipotenciários, de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, em virtude dos nossos plenos poderes respectivos, assinámos os presentes artigos e lhes pusemos o sinete de nossas armas.
Feito em Londres, a 16 de Março de 1808. – O Cavalheiro de Sousa Coutinho. – George Canning.
Artigos secretos
ARTIGO I
Serão expedidas ordens ao comandante actual das tropas britânicas na ilha da Madeira, a fim de que ele se concerte com o governador português, o Sr. Pedro Fagundes Bacelar Dantas e Meneses, sobre os termos e teor da proclamação que se publicar, na qual o comandante actual das tropas britânicas revogue a proclamação de 31 de Dezembro e declare que Sua Majestade Britânica desliga os habitantes da ilha da Madeira, individualmente e em massa, do juramento de fidelidade à Grã‑Bretanha (oath of allegiance) que se exigiu deles. Recomendar‑se‑á expressamente ao governador português, o Sr. Pedro Facundes Bacelar Dantas e Meneses, que tome todas as medidas de prevenção a fim de que esta nova proclamação não excite efervescência alguma nos habitantes, nem animosidade recíproca entre os súbditos das duas Nações.
ARTIGO II
O palácio do governo será restituído ao governador português tal qual o habitava antes de ser do mesmo desapossado. Todos os corpos administrativos ou indivíduos (portugueses e funcionários públicos) entrarão na posse das casas e efeitos de que puderem ter sido desapossados, salvo os conventos destinados ao aquartelamento das tropas, de que acima se fez menção, e bem entendido que o comandante militar será hospedado de um modo conveniente à sua categoria.
ARTIGO III
Se algum oficial britânico se tiver apresentado diante das ilhas dos Açores ou de Cabo Verde e intimado uma ou mais daquelas ilhas para se entregar e obrigado a capitular, o oficial britânico será retratado, as tropas inglesas se retirarão à Madeira e a capitulação será considerada de nenhum valor; mas qualquer disposição tomada pelo governador e capitão general das ilhas dos Açores ou pelo governador das ilhas de Cabo Verde e qualquer acordo feito pelos mesmos governadores com oficiais britânicos relativamente ao comércio das mesmas ilhas antes da data deste dia serão observados religiosamente de uma e outra parte, até que a vontade Sua Alteza Real o Príncipe Regente se já conhecida; bem entendido que este acordo não prejudique no futuro de modo algum os direitos respectivos das duas partes contratantes e que não contenha alguma cláusula que derrogue a soberania de Sua Alteza Real nas ilhas acima ditas.
Estes artigos secretos terão a mesma força e valor que se fossem insertos entre os outros artigos assinados hoje e serão ao mesmo tempo ratificados.
Em fé do que nós, abaixo assinados, plenipotenciários de Sua Alteza Real o Príncipe Regente de Portugal e de Sua Majestade Britânica, em virtude de nossos plenos poderes respectivos, assinámos os presentes artigos secretos e lhes pusemos o sinete de nossas armas.
Feito em Londres, a 16 de Março de 1808. – O Cavalheiro de Sousa Coutinho – George Canning.
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* Coronel de Infantaria. Mestrando em História Militar. Director do Jornal do Exército.
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1 A Aliança Inglesa: Subsídios para o seu estudo, compilados e anotados por José de Almada, Lisboa: Impressa Nacional, Lisboa, 1946. (Vd. Anexo I).2 Local onde estava a Corte imperial.3 Tendo ficado “a ver navios”.4 Vd. BRAZÃO, Eduardo – Relance da História Diplomática de Portugal. Porto: Livraria Civilização, 1940, p. 201.5 Vd. F. T. D. – Elementos de História do Brasil. Rio de Janeiro, São Paulo: Livraria Paulo de Azevedo & C. (s. d.).6 Rei de Espanha.7 Vd. PEREIRA, Angelo – D. João VI Príncipe e Rei: A Retirada da Família Real para o Brasil, 1807. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1953. p. 174.8 Vd. IDEM, Ibidem, pp. 173‑174.9 Vd. IDEM, Ibidem, p. 174.10 Vd. F.T.D., – Ob. cit., pp. 312‑313.11 Vd. PEREIRA, Angelo, – Ob. cit., pp. 174‑175.12 Vd. IDEM, ibidem, p. 181.13 Vd. IDEM, ibidem, p. 181.14 Vd. IDEM, ibidem, p. 180.15 Vd. NEVES, Accursio José das – Historia Geral da Invasão dos Francezes em Portugal, e da Restauração deste Reino. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1810. Vol. 1, pp. 170‑175.16 In BRANDÃO, Raul – El‑Rei Junot. Lisboa: Livraria Brazileira, 1912, pp. 106‑107.17 BRANDÃO, Raul – El‑Rei Junot. Lisboa: Livraria Brazileira, 1912, pp. 96‑99.18 BALBI, Adrien – Essai Statistique sur Le Royaume de Portugal et D’Algarve. Paris: Chez Rey et Gravier, Libraires, 1822. Tomo Premier, pp. 27‑28. (Fac‑símile: Imprensa Nacional‑Casa da Moeda,SA, Lisboa; Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2004).19 Vd. RUDERS, Carl Israel – Viagem em Portugal: 1798‑1802. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1981.20 Vd. IDEM, Ibidem, p. 7.21 Vd. IDEM, Ibidem, p. 19.22 Vd. IDEM, Ibidem, p. 163.23 Vd. IDEM, Ibidem, p. 164.24 Vd. IDEM, Ibidem, p. 165.25 NEVES, José Acúrsio das – Obras Completas de José Acúrcio das Neves, vol. 1: História Geral das Invasões dos Franceses em Portugal e da Restauração deste Reino, Tomos I e II. Porto: Edições Afrontamento, [s. d.]. p. 242.26 IDEM, Ibidem, p. 109.27 Thomaz de Mello Breyner na sua obra – Memorias de um Professor, p. 176, “Pode dizer‑se que o velho Eusebio foi um almoxarife de carreira, pois começou ainda muito novo por ser varredor do palacio, passando a moço de salla, a reposteiro, ajudante d’almoxarife e por fim almoxarife. Tinha muita cultura e contava muitas historias. Lembrava‑se dos soldados francezes e dos inglezes habitando o palacio e falando com horror no fuzilamento d’um saloio chamado Jacinto Corrêa contra o muro da Tapada junto á fachada norte do palacio.”28 Administrador actual dos palácios e tapadas reais.29 Vd. Diário de Eusebio Gomes.30 PEREIRA, José Rodrigues – Campanhas Navais – 1807‑1823: A Marinha Portuguesa na Época de Napoleão. Lisboa: Tribuna da História, 2005, Vol. II, p. 15.31 Acúrsio José das Neves refere no seu livro, acima descrito, 84 peças.32 Transportava os elementos da Academia Real dos Guardas‑Marinhas.33 José Acúrsio das Neves (J. A. N.) considerava que a nau tinha 74 peças.34 J. A. N. considerava que a nau tinha 74 peças.35 J. A. N. considerava que a nau tinha 74 peças.36 J. A. N. considerava que a fragata tinha 44 peças.37 J. A. N. considera que o comandante deste navio foi o Capitão‑de‑fragata D. João Manuel.38 J. A. N. não considerava este navio.39 J. A. N. atribuía‑lhe 22 peças.40 J. A. N. considerava Capitão‑de‑fragata.41 J. A. N. atribuía‑lhe 20 peças.42 J. A. N. considerava Capitão‑de‑fragata.43 J. A. N. atribuía‑lhe 22 peças.44 J. A. N. não considerava este navio.45 J. A. N. não considerava este navio.46 J. A. N. atribuía‑lhe 16 peças.47 J. A. N. não considerava este navio.48 Transportava 100 passageiros e 9 carruagens reais no porão.49 J. A. N. não considerava este navio.50 J. A. N. não considerava este navio. Transportava o material e biblioteca da Academia Real dos Guardas‑Marinhas.51 F. T. D. – Ob. cit., p. 313.52 Vd. IDEM, Ibidem, p. 313.53 D. Marcos de Noronha, conde dos Arcos de Val‑de‑Vez, segundo Rocha Martins, em “O Último Vice‑Rei” é caracterizado com os mais nobres atributos “[...] fidalgo da melhor estirpe, soldado que já vira o fogo, administrador louvado por seus engenhosos planos quando dirigia a capitania de Grão Pará e Rio Negro, grave, ponderado e firme, que, contando apenas trinta e sete anos, estava ali comandando, encaminhando um país, [...]”.54 Vd. MARTINS, Rocha – O Último Vice‑Rei do Brasil. Lisboa: Edição do Autor, Oficinas Gráficas do ABC, 1922, p. 15.55 Vd. IDEM, Ibidem, p. 15.56 Vd. IDEM, Ibidem, pp. 15‑16.57 Vd. IDEM, Ibidem, p. 16.58 Papa grossa de farinha de mandioca, geralmente escaldada.59 Vd. IDEM, Ibidem, pp 17‑18.60 Vd. SAMPAIO, Theodoro – Historia da Fundação da Cidade do Salvador. Bahia: Tipografia Beneditina LTDA., 1949.61 Vd. IDEM, Ibidem, p. 106.62 Vd. SAMPAIO, Theodoro – Ob. cit., p. 105.63 Vd. IDEM, Ibidem, p. 107 – “Sabbado, 25, pela manhã entrou a armada e lançou ancora em cinco e seis braças de fundo, deoarando‑se‑lhe então ancoragem tão grande, tão formosa e tão segura que ao logar se ficou chamando desde esse dia – Porto Seguro.”64 Vd. IDEM, Ibidem, p. 107.65 Que depois se chamou de Todos‑os‑Santos.66 Vd. IDEM, Ibidem, pp. 19‑20.67 Vd. F. D. T. – Ob. cit., pp.314‑315.68 In Collecção das Leis, Decretos, e Alvarás, que Comprehende a Feiz Regencia de Sua Alteza Real O Principe D. João. Nosso Senhor, Desde 28 do Mez de Janeiro de 1808 até 16 do Mez de Dezembro de 1812, Tomo 1.69 Vd. MARTINS, Rocha – Ob. cit., p. 20.70 Vd. F. D. T. – Ob. cit., p. 315.71 Vd. MARTINS, Rocha – Ob. cit. p. 21.72 Funcionário eclesiástico que dirige o coro, entoa salmos em igrejas, conventos. etc.73 Vd. MARTINS, Rocha – Ob. cit. p. 21.74 Vd. MENESES, Angela Dutra de – O Português que nos Pariu: Uma Viagem ao Mundo de nossos Antepassados. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará,. 2000. p. 141: “No Rio, capital do império a turma reagiu na galhofa, velho jeito carioca. Em 1807, no desembarque dos nobres sem‑teto, resolveram o problema expulsando os moradores das velhas residências. O cidadão acordava e via pintado no muro PR, príncipe‑regente. Sinal de que, rapidinho, deveria cair fora, a elite lusitana desejava sua casa. Em protesto bem‑humorado, o carioca traduziu o PR por Ponha‑se na Rua. Simpático, melhor do que sair dando tiros.”75 Vd. F. D. T. – Ob. cit., p. 318.76 Vd. MARTINS, Rocha – Ob. cit., pp. 22‑23.77 Vd. IDEM, Ibidem, p. 23.78 Segundo F. D. T., in Ob. cit., “ex‑ governador da Baía, 6.º vice‑rei do Brasil, tomou posse em 1801, governou durante cinco anos e voltou com a família real em 1808, foi este o que mais se distinguiu pela sua clarividência no tocante ao futuro do Brasil.”79 Vd. F. D. T. – Ob. cit., p. 318.80 Vd. IDEM, Ibidem, pp. 318‑319, numa narrativa por P. Raphael GALANTI.81 In F. T. D. – Ob. cit., pp. 316‑318.82 Vd. IDEM, Ibidem, p. 325.83 Proclamação da Independência do Brasil – 07 de Setembro de 1821, reconhecida por Portugal em 1825.84 Vd. MENESES, Angela Dutra de – O Português que nos Pariu: Uma Viagem ao Mundo de nossos Antepassados. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará,. 2000. p. 145.
-Revista Militar @ 1849 - 2007
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