A cada dois anos, o ritual segue um protocolo rígido, Há uma competição internacional de futebol. Portugal em peso entra em histeria «patriótica». Algumas almas queixam-se do massacre e são imediatamente suspeitas de conspirar contra o «povo». Preparam-se as fogueiras.
Ainda há dias, coube ao director de «A Bola», Vítor Serpa, acusar Pacheco Pereira do terrível crime de «elitismo». Evidencias? Pacheco Pereira tem fama de «intelectual» e, não satisfeito, escreve artigos em que insinua desinteresse por Cristiano Ronaldo, pelas condições sanitárias da selecção em estagio e pelo futebol em geral. Que a lenha arda devagar.
Entretanto, gostaria apenas de sugerir que «elitismo» não me parece a acusação adequada. Desde logo, o nosso senso comum mostra-nos que as nossas «elites» são altamente sensíveis ao futebol. O prof. Marcelo inventou as bandeirinhas. O dr. Sampaio é um fervoroso adepto. E não têm em conta as «altas personalidade» da política, da cultura e das finanças que trocam o expediente pela sedução de uma final. Mais: os 725 programas sobre o assunto estão atafulhados de romancistas, realizadores de cinema, académicos e restantes espécimes a que, por conforto ou generosidade, podemos chamar de «intelectuais». Como se nota, nem é preciso sair do país e invocar o recorrente aval de Camus, de certos romancistas britânicos, espanhóis e argentinos e, sobretudo, das letras brasileiras, as quais, de Gilberto Freyre a Drummond de Andrade, reverenciam amiúde o dito desporto-rei.
A bem dizer, tirando referências pontuais (e muito classe média: o meu pai, o meu avô paterno, os meus melhores amigos), só vi indiferença generalizada pela bola no Interior rural, que talvez não seja um exemplo nítido de elitismo. Quando eu era uma criança benfiquista e fanática, as viagens à aldeia, inúmeras que fossem, eram sempre acompanhadas de um ligeiro choque: aquelas pessoas, da minha geração, e das gerações acima, não falavam de futebol. No máximo, alguns jogavam-no. Infelizmente, melhor que eu.
Elitismo? O prof. Nuno Crato lembra que o futebol, no qual o sucesso é reservado a pouquíssimos (afinal milionários), é mais elitista que a matemática. O elitismo não é o problema. O problema é que, à semelhança do que sucedeu com Timor, ou com a Expo (ambos com resultados brilhantes), os «desígnios nacionais», na falta de legitimação real, valem-se da unanimidade cega e não admitem excepções. Hoje, não apreciar futebol já é doentio: não venerar a selecção constitui uma violação da paz social, merecedora das piores torturas e insultos. Dentre estes, «elitista» soa bem, mexe nos cordelinhos exactos e serve a grotesca propaganda oficial. Embora não signifique coisa nenhuma.
Até porque há os casos complicados. Como o meu, que gosto de futebol mas prefiro um bom livro, que verei o Mundial mas sem ardores nacionalistas, que delirava com Futre mas não perco tempo com Figo, que tenho uma sogra que foi amiga de Garrincha mas não falo com ela. Eu sou o quê? Elitista? Populista? Esquizofrénico? Aguardo, ansioso, que Vítor Serpa me esclareça.
Alberto Gonçalves in Correio da Manhã
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