quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Dura praxis sed praxis: Em Évora e comigo foi assim

Muito se falou nas últimas semanas em praxes académicas. O tema do momento em Portugal foi desencadeado devido aos trágicos acontecimentos na praia do Meco, onde morreram sete estudantes da Universidade Lusófona, no passado mês de Dezembro. E porque de uma tragédia se tratou, o caso emocionou o país e tem motivado as mais diversas reacções e discussões, a maioria delas apaixonadas e algumas completamente desprovidas de bom senso como é o caso de algumas notícias e artigos que têm vindo a lume. Muito tem sido o ruído e a contra-informação em redor do tema, que mais do que dar a conhecer a realidade mais confunde a opinião pública. Muitos foram aqueles que nos últimos dias vociferaram cobras e lagartos contra a praxe em particular e mesmo contra a tradição académica em geral - e que vai muito para além da praxe - e contra aqueles estudantes, quiçá a maioria, que a organizam, executam e defendem e dos quais se faz passar a imagem de maus estudantes, cábulas, libertinos, falhados e frustrados; outros, mais dados a fantasias, lá vão imaginando irmandades, sociedades e rituais secretos e de tal forma que a coisa parece que está a ganhar estatuto de mito urbano que até já se fala em rituais iniciáticos de cariz exotérico, já se comparam as praxes com rituais maçónicos (quem o faz conhecerá por acaso o pesado e formal ritual bem como os códigos e graus maçónicos?) e com jeito ainda iremos ao delírio de se imaginar no meio académico português rituais satânicos: A Praxe Satânica - confesso que o nome até tem classe e certamente atrairia muita curiosidade e muitos amantes do estilo.
 O que é assombroso é que muitas destas fantasias partem de jornalistas e pessoas com formação superior e que, por terem frequentado o meio académico, mais do que ninguém deveriam ter conhecimento de facto do que se passa nas universidades. Ora assim sendo, o assunto tinha que ser também aflorado aqui no nosso espaço. Em primeiro lugar para relatar a minha experiência pessoal. Em segundo para desmistificar e «revelar os segredos» dos tais «rituais secretos». E em terceiro lugar para dar a conhecer a Tradição Académica de Évora, numa das mais mais antigas universidades do país. Na verdade, relativamente ao assunto só poderei falar por mim e por aquilo que se passa na minha universidade.
Confesso que a princípio não via com bons olhos a praxe. Não que eu tivesse medo, simplesmente achava aquilo uma palhaçada e uma parvoeira pegada.
 Quando fui fazer a matrícula na Universidade de Évora (UE) fui logo brindado por um grupo de estudantes trajados que se limitaram a fazer umas pinturas na cara com baton e isto porque eu deixei - «Posso pintá-lo, bicho? Vá, é rápido e não custa nada».
Depois disso, e já com as aulas a decorrer, a única praxe que tive foi a chamada «aula de praxe» na qual apenas os alunos do nosso curso participam. A aula de praxe dura o dia inteiro e termina com a escolha por parte dos «bichos» de um «padrinho» ou «madrinha». Começa nas instalações da UE, percorre-se as ruas, locais e monumentos emblemáticos da cidade, em cantorias, fazem-se jogos, o cortejo pára nos ditos locais e os praxantes acabam a fazer de guias turísticos, perguntam-nos de onde somos, dizem umas gracinhas, eles próprios dizem de onde são. Quando uma aula de praxe de um curso se cruza com outra, os praxantes de ambos os lados incitam os «bichos» a cantar ao despique em altos berros «qual é o melhor, qual é o melhor curso da UE...». As praxes, que, atente-se bem, são apenas uma componente da tradição académica, são um ex-libris de Évora que trazem boa disposição, alegria e cor à cidade alentejana e que muito encanta e diverte as centenas de turistas que visitam a «cidade-museu» mas também os habitantes locais. Perguntem aos eborenses o que acham das praxes. Quando ía para a praxe levava a ideia de que só iria até onde eu quisesse e ninguém faria o que quer que seja que eu não quisesse e não fariam mesmo pois eu sempre fui irreverente, rebelde e de antes quebrar que torcer e, apesar de baixinho, já tinha uma compleição física de respeito, na altura não tanto de ginásio mas mais de cozinha.
Quando tudo terminou, só fiz o que quis, ninguém me obrigou a nada, afinal passei um dia engraçado, conheci muitos colegas e não me senti humilhado de tal forma que mudei a opinião sobre as praxes. E depois, meus caros, ninguém se sente humilhado, apesar de mascarado, pois ali está porque quer da mesma forma que ninguém se sente humilhado quando anda a brincar ao entrudo.


Imagem: Revista Visão

A revista Visão também aborda inevitavelmente o tema das praxes e em particular descreve alguns «instrumentos do poder» tais como mocas, colheres de pau e tesouras (ver imagem acima).
Comecemos pelas tesouras. Cortar cabelo, nem pensar. Em primeiro lugar porque sempre tive o cabelo curto pois o meu cabelo sempre foi rebelde como o seu dono e deixá-lo crescer seria uma catástrofe, em segundo lugar porque simplesmente eu não deixaria. Acontece porém que em Évora ninguém corta o cabelo (tonsura) a ninguém. Nunca vi ninguém usar tal instrumento. Nem corte de cabelo, nem de barba, nem depilação, nem nada.
Mocas na Universidade de Évora também foi coisa que nunca vi ou usei. Já relativamente a outro tipo de mocas não ponho as mãos no lume.
Quanto a colheres de pau, de facto existem na tradição académica eborense e medem 1,50m de altura mais coisa menos coisa mas não são «instrumento de poder», ao invés disso, é onde se penduram as fitas e são usadas na Queima - se não estou em erro.
O único «instrumento do poder» é o «Potentíssimo Gajado Universitário» que é usado pelo «Geraldo Sem Pressa» (Ver Código Estudantil de Graus Académicos, Regulamentos e Regras de Exegese e Gírias Académicas da Universidade de Évora vulgo CEGARREGA da UE ou simplesmente CEGARREGA). Nem um nem outro tive o prazer de conhecer.
Quanto a códigos secretos, e que eu me lembre, nem enquanto «Bicho», nem enquanto «Caloiro», nem enquanto «Aluno» nem enquanto «Estudante» e nem enquanto «Digníssimo Estudante» e mesmo «Muy Ilustre e Digníssimo Estudante» nunca ninguém me ordenou, exigiu ou pediu sigilo sobre o que quer que fosse, de tal forma que penso não estar a cometer nenhum sacrilégio ao publicar aqui a CEGARREGA, que tem que fazer obrigatóriamente parte do traje académico e do qual ninguém pode alegar desconhecimento e onde está bem explícito que a praxe tem que ser feita com bom senso, respeitando a integridade física, moral e psicológica do praxado entre outras situações (ver artigo 25º). Faço-o aqui e agora para que todos afinal vejam e conheçam o «código secreto» na Universidade de Évora que de secreto não tem nada e onde para adquir um exemplar basta ir às instalações da Associação de Estudantes da Universidade de Évora (AEUE) onde estão à venda e onde aliás ninguém pergunta antes de vender um exemplar qual o «grau académico» do comprador.
































Muito se tem falado também em graus académicos e hierarquias. Mas aí devo também dizer que tais coisas são informais e não acarretam nem poder, nem prestígio nem obdiência nem o que quer que seja. Todos somos colegas. No período de praxes - entre o início das aulas e o dia 1 de Novembro - alguns trajam, outros não e na brincadeira mesmo entre os «bichos» e «caloiros» ou não necessariamente, os trajados, devido ao facto do traje ser negro e à forma da capa ao estar pendurada sobre os ombros, também são conhecidos por «morcegos» ou «vampiros» este último por razões obvias; porque «querem o sangue dos bichos».  Alguns praxantes chegam inclusive a ter aulas com os praxados, fazerem trabalhos juntos e irem da mesma forma fazer frequências e exames uns com os outros.  Há sempre quem tenha uma ou outra cadeira em atraso nomeadamente as análises matemáticas e a álgebra linear. 
A aula de praxe só dura um dia pois há trabalhos e frequências para fazer e organizar uma aula de praxe não é fácil e depois do Dia Solene da Universidade de Évora e da Abertura das Aulas, é proibido praxar e os «Bichos» passam a «Caloiros».
Quando cheguei ao 3º ano («grau»: «Estudante») foi a minha vez de trajar, de me vestir de «morcego» ou «vampiro» e praxar. Na verdade se trajei 5 vezes enquanto tirei a licenciatura, já foi muito.
Na verdade eu, e muitos outros colegas estamos ali para estudar e não para perder tempo. Outros, enfim... Mas cada um sabe de si.
Porém, muitos daqueles que são praxados e praxam têm boas notas e são bons ou muito bons alunos. Não são todos os que se dão a isto das praxes e mesmo da tradição académica em geral, como se quer fazer passar, que são cábulas, burros, etc. No que a mim diz respeito tenho resultados para apresentar e como gosto de apresentá-los, ei-los aqui.
Infelizmente diaboliza-se agora a praxe e os abusos (e há-os de facto e têm que ser condenados e combatidos) devido àquela tragédia imensa no Meco mas ninguém condena as Queimas onde também já aconteceram incidentes e mortes e onde a bebedeira infelizmente é quem mais ordena e onde o grau de humilhação (auto-infligida), decadência e estado lastimoso atingem proporções bíblicas e são infinitamente superiores ao de qualquer praxe. E enquanto em outros países como os EUA, por exemplo, mas não só, o desporto universitário é a base do seu sistema desportivo e de onde saem muitos atletas que representam o país nos Jogos Olímpicos e onde muitos deles sobem inclusive ao podium, em Portugal o desporto universitário por excelência é a bebedeira de caixão à cova. Mas isso são contas de outro rosário e dariam outro artigo. Voltemos à praxe e ao meu testemunho agora para abordarmos a questão das famosas reuniões (secretas, claro) que, dizem, existirão por aí.
Afirmo já que só fui a uma reunião. Estamos no terceiro ano, é a minha vez de praxar. Tivemos, eu e os meus colegas, uma reunião preparatória de praxe. Lamento desiludir mas apenas e tão só isso. A reunião decorreu numa sala na UE pois as salas estão abertas e os alunos podem ir para as salas estudarem ou reunirem. A reunião teve lugar pelas 18 horas e terminou, se não estou em erro, pelas 19.30. O que ali se fez não foi nenhum ritual mas simplesmente preparar a nossa aula de praxe que iria decorrer no dia seguinte, e entre outros assuntos, combinar a hora e o local onde nos encontraríamos, o sítio onde iriamos buscar os «bichos» - estavam num anfiteatro a ter análise ou qualquer coisa do género comum a todos do curso (Física e Ensino de Física e Química praxavam juntos) pois tinhamos que os apanhar todos. Fizemos uma «espera» aos «bichos» espalhando-nos e cobrindo todas as saidas do anfiteatro para a «bicheza» não fugir, juntamo-los e levamo-los para outro local combinado onde os mascaramos e pintamos e organizamos o cortejo.
Portanto, hora e local onde nós, os praxantes nos encontraríamos, hora e local onde iríamos proceder à «captura dos bichos», materiais a adquirir, quem e onde se iriam fazer as vestes dos «bichos» e pouco mais.
E finalmente, e se da mesma forma não me senti humilhado quando fui praxado, também não senti qualquer espécie de superioridade ao praxar. Nunca senti que tivesse qualquer espécie de poder - aliás, diz-se que o poder só sobe à cabeça de alguém quando esta não tem nada lá dentro - ou autoridade e adoptei um low-profile indo na cauda do cortejo (os «bichos» vão à frente e os praxantes atrás) a falar com os colegas e umas vezes participando outras não. Muitos no entanto procuram destacar-se não tanto para humilharem ou exercerem poder mas simplesmente para dar nas vistas e geralmente aqueles que mais puxam pelos «bichos» são aqueles que mais «afilhados» têm (curioso hein?)
Uma das coisas que se diz aos «bichos» é que estes olhem para baixo, quando se dirigem a um «doutor» ou «engenheiro» ou «Estudante» ou o que for - «Olhe pra baixo bicho», «Não olhe pra mim bicho, olhe para o chão». Ninguém é insultado, os «bichos» são tratados por «você» e ninguém grita com ninguém. O ambiente, ao invés de ser tenso, aterrador e pesado, é divertido, descontraído e pacífico tanto para quem praxa como para quem é praxado. Quando fui praxado também mo diziam mas diziam a sorrir e calmamente e não aos berros e eu também levava aquilo na brincadeira - até porque a brincar e a bem todos têm tudo de mim mas quando há «porra»... 
Nem isso eu exigi a ninguém mesmo sabendo que era brincadeira. Eram os «bichos» que olhavam para baixo e eu dizia, quando me falavam qualquer coisa para olharem para mim.
Resumindo e concluindo, a tradição académica não se resume só às praxes. Em Évora a tradição é salutar, está bem e recomenda-se, ninguém é ou se sente humilhado (embora possam haver infelizmente excepções) e ninguém (salvo excepções mais uma vez) vai praxar com a intenção de gozar, humilhar ou dominar seja quem for. Pelo menos comigo foi assim.









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